Fasceíte necrotizante e síndrome de choque tóxico estreptocócico numa criança
com varicela
INTRODUÇÃO
A varicela na criança é habitualmente uma doença benigna e autolimitada.
Contudo, pode associar-se a complicações fatais. A varicela constitui o factor
de risco mais importante para a aquisição de doença invasiva por Streptococcus
pyogenes. Esta relação parece dever-se ao facto da varicela lesar a integridade
da barreira cutânea, criando assim uma porta de entrada, bem como à
imunodepressão causada pelo próprio vírus da varicela.(1)
Também alguns autores defendem um maior risco desta complicação associado ao
uso de anti-inflamatórios não esteróides em crianças com varicela.(2,3)
A fasceíte necrotizante é uma doença invasiva causada habitualmente por
Streptococcus pyogenes, embora o Staphylococcus aureus também possa estar
implicado.(4) Caracteriza-se por uma destruição rápida e consequente necrose da
fáscia muscular e tecido subcutâneo, atingindo por vezes a epiderme. Pode
complicar-se de Síndrome de choque tóxico (SCT) que se caracteriza por início
súbito de choque, falência multiorgânica e uma elevada mortalidade (30-60%).(5)
O seu reconhecimento atempado e o tratamento com antibioterapia sistémica com
cobertura anti-estreptocócica e anti-estafilocócica, bem como o desbridamento
cirúrgico precoce, são fundamentais para redução da morbilidade e mortalidade.
Os autores pretendem alertar para a importância do diagnóstico precoce das
potenciais complicações da varicela, nomeadamente da fasceíte necrotizante,
pois a precocidade da actuação é determinante para o prognóstico.
CASO CLÍNICO
Criança de oito anos, sexo feminino, raça branca, com antecedentes de asma,
medicada habitualmente com budesonido e formoterol, sem vacinas extra-
calendário. Irmão de quatro anos com varicela duas semanas antes da sua
admissão hospitalar.
Cinco dias antes da admissão, iniciou febre associada a exantema
vesiculopapular generalizado. Foi observada no segundo dia de doença pelo seu
médico assistente, que diagnosticou varicela e medicou com aciclovir oral.
Para o controlo da febre recorreu ao uso de ibuprofeno alternado com
paracetamol. Ao quinto dia de evolução, mantinha febre elevada e surgiram
lesões de celulite na parede torácica anterior direita, registandose um
agravamento clínico, com mal-estar geral, períodos de confusão e agitação,
dispneia, diarreia e noção de baixa diurese, pelo que recorreu ao serviço de
urgência.
Na admissão, apresentava-se febril com temperatura axilar 40,4ºC, consciente,
mas desorientada (Escala de Glasgow de 13). Tinha um aspecto tóxico com sinais
de má perfusão periférica, taquipneia (FR 60 cmp), taquicardia (FC 150-180
bpm), tensão arterial não mensurável e saturação transcutânea de O2 de 90% em
ar ambiente. A auscultação cardiopulmonar não apresentava alterações. Eram
evidentes lesões de varicela dispersas pelo corpo e sinais de celulite na
região torácica anterior direita. Iniciou oxigenioterapia com O2 a 15 l/min por
máscara com reservatório, volemização com soro fisiológico (4 bólus de 20 ml/
kg) e antibioterapia com ceftriaxone e clindamicina endovenosos. Por
deterioração do estado de consciência e hipotensão refractária, iniciou suporte
ventilatório e suporte inotrópico com dopamina, tendo sido transferida para o
Serviço de Cuidados Intensivos Pediátricos (SCIP).
Na avaliação analítica apresentava: hemoglobina 13.5 g/dl; leucócitos 14200/µl
com 71.2% de neutrófilos, plaquetas 158000/µl; APTT 67.6, TP 20.6,
fibrinogénio 394 mg/dl, D-dímeros 13,56µg/ml, glicose 37 mg/dl, ureia 1.36 g/l,
creatinina 36.2 mg/ dl, sódio 127 mEq/l,potássio 5,1 mEq/l, CPK 1440 U/l. TGO
1061 U/l, TGP 122U/l. Proteína C reactiva 319.2 mg/l. A gasometria venosa
revelou: pH: 7.17, pCO2 37.2 mmHg, pO2 22.4 mmHg, HCO3 14.4 mmol/l, lactatos
6.81 mmol/l. Perante a hipótese de sindroma de choque tóxico associou-se
vancomicina.
Inicialmente no SCIP, apresentou choque refractário a aminas, que respondeu
bem fl hidrocortisona (100 mg/dia, três dias). Necessitou de suporte
politransfusional com plasma fresco congelado, antitrombina III, plaquetas e
concentrado eritrocitário.
No segundo dia de internamento, por insuficiência renal aguda (oligoanúria,
hipercaliémia e anasarca) necessitou de hemodiafiltração veno-venosa contínua,
que manteve durante 33 dias.
Dado o agravamento dos sinais inflamatórios/infecciosos da parede torácica
anterior sugestivos de fasceíte necrotizante, foi realizada fasciotomia ao
sétimo dia de internamento. Posteriormente necessitou de desbridamento
cirúrgico regular, três vezes por semana, e tratamento local com sistema de
pressão negativa (Sistema EZCare). (Figura 1)
FIGURA 1 - Ferida torácica em fase de cicatrização (Sistema de EZCare)
Na hemocultura foi isolado um Streptococcuspyogenessensível ao tratamento
instituído.
O aparecimento de um exantema com descamação das mãos (Figura 2) na segunda
semana de internamento constituiu mais um dado a favor de SCT estreptocócico.
FIGURA 2 - Descamação das mãos em criança com SCT estreptocócico
Foi submetida a sedo-analgesia e relaxamento muscular com perfusão de
midazolam, fentanil e vecurónio durante o período em que necessitou de
ventilação mecânica, tendo sido possível a extubação ao 55º dia de
internamento. Necessitou de nutrição parentérica durante cerca de um mês e
meio, tendo posteriormente tolerado alimentação por sonda naso-duodenal, que
manteve durante 25 dias.
Como outras complicações, teve uma pneumonia nosocomial por Stenotrophomonas
maltophilia e outra por Pseudomonas aeruginosa, uma trombose da veia femoral
esquerda (no local de inserção do cateter da hemodiafiltração) e hipertensão
arterial.
Posteriormente teve uma evolução clínica favorável, verificando-se a
normalização da função hepática e da função renal nas terceira e sexta semanas
de internamento, respectivamente. A proteína C reactiva normalizou a partir da
quarta semana de internamento.
Teve alta hospitalar 89 dias após a admissão. FL data da alta encontrava-se
deprimida, sob tratamento com FL uoxetina e com uma fraqueza muscular
generalizada (miopatia dos cuidados intensivos), dependente de cadeira de
rodas. Mantinha necessidade de ventilação não invasiva nocturna, sem
necessidade de aporte suplementar de oxigénio. Encontrava-se normotensa (sob
tratamento com amlodipina) e com diurese preservada.
DISCUSSÃO
A fasceíte necrotizante é um diagnóstico a considerar sempre que uma criança
com varicela se apresente com eritema, calor e induração da pele e tecidos
moles, associado a uma recorrência da febre ou à sua persistência ao quarto dia
após o início do exantema.(6)
As frustres manifestações cutâneas iniciais podem dificultar o seu diagnóstico,
sendo frequentemente subdiagnosticada e confundida com celulite.(7) No entanto,
a rápida progressão e extensão da lesão inflamatória local, a presença de
anestesia central, equimose, crepitações, bolhas ou necrose são sugestivas de
fasceíte necrotizante.(8) Quando estas manifestações se associam a exantema
escarlatiniforme, vómitos, diarreia, mialgias, depressão do estado de
consciência e taquicardia, deve-se suspeitar de SCT estreptocócico.
Alguns autores defendem que o uso de anti-inflamatórios não esteróides em
crianças com varicela aumenta o risco de fasceíte necrotizante, alegando que o
seu uso, ao mascarar os sintomas (dor), pode atrasar o diagnóstico e, ao
suprimir as funções granulocitárias (quimiotaxia e fagocitose), pode aumentar o
risco de infecções mais graves.(2,3)
Esta criança apresentava alguns factores de risco para doença invasiva por
Streptococcus pyogenes, nomeadamente: tratar-se do segundo caso índex de
varicela, o uso crónico de corticóide inalado, a persistência de febre cinco
dias após o aparecimento do exantema e o uso de anti-inflamatório não esteróide
(ibuprofeno).
O caso clínico apresentado, pelo isolamento do Streptococcus pyogenes no
sangue, a presença de choque, falência renal, hepática, coagulação
intravascular disseminada e fasceíte necrotizante preenche critérios de SCT
estreptocócico.
Com a apresentação deste caso, os autores alertam para uma complicação rara,
mas potencialmente fatal da varicela, cujo diagnóstico precoce permite uma
intervenção atempada, fundamental para a redução da sua morbilidade e
mortalidade.