O direito à saúde na União Europeia em perspectiva diacrónica: elementos para
uma genealogia do artigo 35.º da CDFUE (cont.)
O DIREITO À SAÚDE NA UNIÃO EUROPEIA
1. As raízes do artigo 35º da CDFUE
A UE consagra um direito(de solidariedade) à saúdeno artigo 35.º da CDFUE.
Vale isto por dizer que, à semelhança do que sucede nos planos
jusinternacionais universal e regional, geral e sectorial (ONU, CE, OMS),
também no contexto do sistema jurídico da União, o direito à saúdeassinala uma
profícua intersecção da socialidadecom a jusfundamentalidadee a tutela da
saúdepropriamente dita. Ora, pressupostos estes três referentes e os seus
desdobramentos históricos, resulta delimitado o tema(saúde), afinada a
perspectiva(de direitos humanos) e indicado o pendorou a tónica(socializante)
da nossa reflexão sobre o artigo 35º.
1.1. A Europa da Saúde
1.1.1. A saúde na UE
O Tratado da CEE começou por não conferir poderes específicos à comunidade
europeia em matéria de saúde1. Ao abrigo do Tratado de Roma, a protecção da
saúde pública não figurava no direito primário como uma missão comunitária, nem
como uma acção per se, tendo apenas lugar através das directivas sobre política
sanitária progressivamente adoptadas e aparecendo, por norma, sob a alçada da
liberdade de circulação de mercadorias. No demais, as preocupações reportavam-
se à protecção social de trabalhadores migrantes e respectivas famílias, cujos
seguros de saúde e acesso aos cuidados sanitários precisavam de ser garantidos,
de modo a permitir a liberdade de circulação do factor trabalho.
As primeiras grandes alterações foram introduzidas com o Tratado de Maastricht,
no qual se consagrou um mandato genérico da UE em matéria de saúde (no então
artigo 129º), criando condições propícias ao desenvolvimento de uma política
comunitária para o sector, se bem que marginal (flanking policy). Acresce que
os artigos 2º e 3º foram modificados de maneira a incluir uma menção à melhoria
da qualidade de vida entre as tarefas comunitárias e a integrar o concurso para
a obtenção de um elevado nível de saúde no lote das actividades a desenvolver
pela comunidade.
Contudo, a competência comunitária permaneceu reservada a questões de saúde
pública, enquanto os direitos individuais relativos à saúde resultavam
indirectamente protegidos no contexto da liberdade de movimento.
Com efeito, embora não recebessem protecção a nível comunitário, a liberdade de
circulação de bens e serviços (prestados e recebidos) e a liberdade de
estabelecimento permitiram a atribuição de direitos relativos à saúde, como o
de adquirir produtos médicos noutro Estado-Membro (Acordão Decker), de receber
tratamento médico além-fronteiras (Acordão Kohl) ou de desenvolver actividade
médico-profissional num outro país da UE (Directiva 93/16/CEE sobre a livre
circulação de médicos e o reconhecimento mútuo dos seus diplomas, certificados
e outros comprovativos das qualificações formais).
O mesmo vale por dizer que se confiava aos Estados-Membros a competência para a
organização dos respectivos sistemas de saúde e de segurança social, cabendo-
lhes determinar as condições de acesso aos cuidados e às prestações sociais e o
âmbito de cobertura dos sistemas, e regular as relações médico-paciente e
outras questões médicas correlacionadas, como as que se prendem com a eutanásia
ou a medicina reprodutiva.
O cenário começou a alterar-se mais rápida e significativamente já ao abrigo do
Tratado de Amesterdão e do seu insípido sucessor, assinado em Nice.
De facto, com o dealbar do século, em resultado de um debate lançado pela
Comissão [Comunicação da Comissão sobre a evolução da política em matéria de
saúde pública(15/04/1998)] e da experiência já adquirida com programas de acção
e actividades anteriores, iniciou-se uma nova fase no tratamento europeu da
saúde, marcada pelo propósito de conceber e levar à prática uma estratégia
global integrada no sector. Definiu-se um novo quadro de acção no domínio da
saúde públicaaté 2008 (que incluía um novo programa de acção, no lugar dos
antigos programas especializados) e uma estratégia geral da comunidade em
matéria de saúde(que obrigava a uma integração com as iniciativas adoptadas nas
políticas relativas ao mercado único, à protecção social, ao emprego e ao
ambiente). Uma Comunicaçãoda Comissão, de Maio de 2000, veio apelar à
concentração dos recursos da União naqueles aspectos em que a intervenção
comunitária pudesse trazer um valor adicional efectivo, sem duplicar esforços
que os Estados Membros, ou até certas organizações internacionais, se achassem
em melhores condições de empreender.
Em Dezembro de 2001 a Comissão Europeia deu o seu acordo a uma análise da
provisão de cuidados de saúde e de cuidados para os mais idosos, na qual se
concluiu que, embora diferentes em termos de desenho, prestação e financiamento
os sistemas nacionais estão confrontados com desafios semelhantes. Em
consequência, apontaram-se-lhes três objectivos comuns: acessoaos cuidados de
saúde, qualidade, e sustentabilidade. A Comunicaçãoem apreço tem de ser vista
em conexão com as conclusões do Conselho Europeu de Lisboa, que teve lugar em
Março de 2000, e da Cimeira de Gotemburgo, realizada em Janeiro de 2001,
durante os quais se lançou um apelo à modernização dos sistemas de protecção
social na União Europeia e se exigiu a preparação de um relatório progressivoe
de guidelinesno campo dos cuidados de saúde.
Em 2002, foram estabelecidas directrizes políticas gerais neste campo, através
do novo conceito de Europa da Saúde,e, para reforçar o combate às ameaças de
saúde, criou-se o Centro Europeu para a prevenção e Controlo de Doenças, que,
desde então, vem desenvolvendo meritórias acções de cooperação
transfronteiriça, no tocante aos sistemas de saúde e às determinantes de saúde.
O Sistema de Informação da Saúdetambém foi chamado a desempenhar uma função
nuclear na nova atitude de consciencialização europeia neste domínio, enquanto
com o Fórum Europeu de Saúdese visou permitir a participação dos diferentes
agentes de saúde pública na elaboração das políticas do sector. Em 15 de Julho
de 2004, a Comissão lançou um Processo de reflexão acerca da promoção da saúde
para todos, no âmbito da revisão da Estratégia de Saúde, definida em 2000.
Foram convidados grupos de interesse, instituições públicas e cidadãos
individuais, tendo-se gerado um aceso debate, que extravasou das fronteiras
comunitárias, para envolver diálogos com países como a Noruega e a Suíça, os
EUA e Israel.
A 23 de Outubro de 2007, a Comissão Europeia adoptou uma Nova Estratégia de
Saúde, designada Together for Health: A Strategic Approach for the EU 2008-
2013, cuja intenção pioneira consistia em fornecer um enquadramento
estratégico abrangente às questões nucleares da saúde e demais aspectos que, no
âmbito de outras políticas sectoriais, com elas contendam. Para o efeito,
propôs-se estabelecer objectivos claros, orientadores dos futuros trabalhos a
nível europeu, e pôr de pé um mecanismo de implementação que garantisse a
respectiva consecução, em parceria com os Estados-Membros. Segundo os
responsáveis da União, a Estratégia, ainda em vigor, encontra-se focada em
quatro princípios e três temas estratégicos.
Os princípios requerem: uma abordagem axiológica(baseada na universalidade, no
acesso a cuidados de saúde de qualidade, na equidadee na solidariedade,
fazendo, assim, da capacitação dos indivíduos, da redução das desigualdades
evitáveis e injustase da comprovação científica da qualidadetarefas
verdadeiramente fundamentais); o reconhecimento das conexões entre a saúde e a
prosperidade económica(assumindo o lema virgiliano de que a saúde é a maior
riqueza, de modo a encarar as despesas no sector como um investimento na
prevenção de custos futuros e nos factores de uma maior prosperidade); a
integração da saúde em todas as políticas(uma vez que as condições de saúde se
encontrarem na dependência de uma multiplicidade de factores); e o reforço do
papel da UE no debate sobre a saúdeglobal (conferindo-lhe um papel de liderança
na matéria).
Por seu turno, os objectivos estratégicos incluem: a Promoção da Boa Saúde numa
Europa em Envelhecimento; a Protecção dos Cidadãos face às Ameaças à Saúdee a
Dinâmica dos Sistemas de Saúde e Novas Tecnologias.
A União mostra-se particularmente cuidadosa com a forma como as políticas de
saúde são definidas, levadas a cabo e monitorizadas, e excogitou já alguns
mecanismos de consideração do seu impacto, como é o caso das Commission's
integrated impact assessment guidelines.
Sobressai também, neste âmbito, o trabalho realizado pelo Grupo de Alto Nível
sobre os Cuidados de Saúde e Cuidados Médicosum conjunto de peritos, criado na
sequência da Comunicaçãoda Comissão de 20 de Abril de 2004 e que iniciou
funções em Julho do mesmo ano. A sua actividade cobre sete áreas: aquisição e
provisão de cuidados de saúde além-fronteiras, profissionais de saúde, centros
de referência, avaliação da tecnologia de saúde, informação e e-saúde,
impacto da saúde e sistemas de saúdee segurança dos pacientes), tendo
concorrido igualmente para outros trabalhos relevantes em matéria de saúde e
cuidados médicos, como é o caso do Método Aberto de Cooperação2 em cuidados de
saúde e cuidados de longa duração, delineado pela Comissão em 2004.
A evolução não parou desde então, assistindo-se, nomeadamente, à reforma do
regime instituído pelo Regulamento 1408/71, à introdução do Cartão da Saúde, ao
desenvolvimento de novos programas e estratégias da UE (como o Programa
comunitário no campo da protecção do consumidor e da saúde), ao lançamento da
Carta Europeia dos Direitos dos Pacientese ao delineamento mais aturado dos
serviços de interesse geral (de índole económica ou propriamente social)3.
Em 20 de Outubro de 2009, em resultado do trabalho conjunto dos comissários
responsáveis pelas áreas da saúde e da política social, a Comissão produziu uma
Comunicaçãodesignada «Solidariedade na saúde: reduzir as desigualdades no
domínio da saúde na União Europeia» [COM (2009), 567], que apontava uma série
de objectivos ambiciosos: integrar a ideia de distribuição equitativa na noção
de desenvolvimento económico e social geral; melhorar as formas de colaboração
com os Estados-Membros, os diversos stakeholderse as regiões; aumentar o apoio
da União à investigação sobre as desigualdades na saúde; organizar auditorias
às políticas para verificar do seu impacto na redução das desigualdades de
saúde; incentivar o Estados-Membros a utilizarem melhor a política de coesão,
os fundos estruturais e a política de desenvolvimento rural, para influenciarem
positivamente as principais determinantes da desigualdade na saúde; dirigir
actividades a certos grupos vulneráveis (como minorias étnicas, migrantes e
ciganos); explorar as possibilidades de uma combinação fecunda da ajuda ao
desenvolvimento da Comissão com o trabalho sobre as desigualdades na saúde;
melhorar a aferição e o controlo das desigualdades na saúde, prevendo-se que o
primeiro relatório seja publicado em 20124.
Já em 2011, a Directiva sobre os cuidados de saúde transfronteiriços [Directiva
2011/24/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 9 de Março de 2011 (JO L88/
46 de 4.4.2011)] veio prescrever um conjunto de regras acerca da autorização e
reembolso da prestação de cuidados ou aquisição de produtos de saúde num
Estado-Membro diferente do Estado-de-afiliação, tendo aproveitado para fazer um
ponto de situação em matéria de tratamento jurídico da saúde no seio da União.
Com efeito, aclarou as relações da nova legislação com o sistema dogmático em
que deverá integrar-se e forneceu mesmo um conjunto de noções que, apesar de
terem um significado meramente funcional (por restrito ao âmbito e à finalidade
do novo diploma), de modo algum devem ver subestimada a sua valia (pelo menos,
heurística). Institui-se agora um regime dual, uma vez que o Regulamento 1408/
71 continua a aplicar-se, com as alterações entretanto sofridas, aos casos para
que foi inicialmente pensado. Basicamente, o Estado-de-tratamentofica impedido
de discriminar os cidadãos de outros Estados-Membros no acesso à saúde e o
Estado-de-afiliaçãoproibido de discriminar os cuidados transfronteiriços em
matéria de reembolso, a não ser mediante a introdução de restrições com algum
dos fundamentos indicados na directiva. No entanto, a autorização préviapassa a
ser excepção em vez de regra, indicando-se os casos em que é permitida, e as
razões admissíveis para a sua recusa (cf. art. 8º).
Actualmente as atribuições em matéria de saúde estão ancoradas no artigo 152º
(título XIII) do TUE (consagrado à saúde pública), que não confere à UE senão
poderes funcionais para agir em complemento das políticas nacionais, na
realização de um nível elevado de protecção da saúde (art. 3º).
As competências na matéria pertencem, pois, em princípio, aos Estados-Membros,
prevendo o §2 uma coordenaçãodos seus programas e políticas e uma competência
partilhada, quanto à legiferação sobre assuntos comuns (de segurança, saúde
pública e melhoria da saúde humana), que requer da UE uma mera acção de apoio,
coordenação ou complemento. De um modo muito particular, há-de reparar-se que a
União respeita plenamente as responsabilidades dos Estados-Membros em matéria
de organização e fornecimento dos serviços de saúde e cuidados médicos.
a)Conclui-se do exposto que, no âmbito das diferentes políticas e práticas
públicas5 adoptadas nas muitas áreas do sector6, as principais instituições
comunitárias desde a Comissão Europeia ao Conselho, passando pelo PE (com
destaque para as Comissões Parlamentares do Ambiente, da Saúde Pública e da
Segurança Alimentar) e pelos órgãos consultivos (como o Conselho Económico
Social), sem falar nas inúmeras agências especializadas (EMEA, ECDC, EFSA,
PHEA, etc.) tiveram já ocasiões de sobejo para se pronunciarem sobre (ou
interferirem n')a saúde (e sua defesa, protecção e realização jurídicas), no
exercício das respectivas competências (exclusivas, partilhadascom os Estados-
Membros ou de complemento, coordenação e apoiodas políticas e acções destes
últimos), com vista à realização das atribuições que lhes estão cometidas, e
desencadeando, desta feita, uma considerável panóplia de efeitos, com extensão
e intensidade diferenciadas7, em redor de um conjunto de intenções precípuas,
escoradas nas fundações axiológiconormativas da UE.
Neste último caso, pensamos no acervo de valores e princípios considerados
comuns aos diferentes sistemas de saúde da UE, talqualmente foram proclamados
pelo Conselho e convocados em diversas estratégias e em intervenções normativas
no sector8. Entre os valorescontam-se a universalidade, a solidariedade e a
equidade. Quanto aos princípios de funcionamento ou operativosque todos os
cidadãos esperam poder encontrar em qualquer sistema de saúde da UE incluem a
qualidade, a segurança, a confidencialidade, a participação dos pacientes, o
acesso à justiça e a exigência de uma base ética e empiricamente rigorosa para
a acção.
1.1.2. O direito da saúde na UE9
No enquadramento assim definido, a União Europeia tem procurado objectivar
normativo-juridicamente as suas fundações axiológicas gerais e os princípios
normativos que as precipitam, aos mais diferentes níveis e sob diversas formas
e meios, desta feita permeando a multifacetada actuaçãodesenvolvida, na esfera
socialvertente, pelos actores, em redor dos temase com os efeitosmencionados.
De modo meramente epitomático, destacaríamos, ao nível do direito material
primário, os artigos 2º, 3º, 5º, e 6º do TUE, que vertem efeitos importantes
sobre a matéria, bem como os dispositivos 9º, 16º, 18º, 56º, 57º e 168º do
TFUE, sem esquecer obviamente os preceitos números 1, 2, 3, 8, 20 a 26 e 31 da
CDFUE, que se referem explícita ou implicitamente à saúde.
No que concerne ao direito secundário, multiplicam-se os diplomas de
uniformização e harmonização, a que se somam ainda os actos jurídicos
(normativos ou não) e para-jurídicos dos principais órgãos e instituições
europeias, como sejam as Resoluçõesdo Parlamento, as Conclusõesdo Conselho, as
Comunicaçõesda Comissão ou as Opiniõese Pareceresdo Comité Económico e Social
Europeu.
O activismo e construtivismo dos tribunais, que têm lentamente cerzido a malha
normativa sustentadora da ordem jurídica da União, bem como da policyque sobre
ela se edifica, não estiveram ausentes da esfera da saúde10, restando bem
patente o seu contributo para a densificação do direito e política europeias do
sector através de uma série de arestos famosos (Duphar, Kohl, Decker, Smits e
Peerbooms, Vanbraeckel, Keller, Watts, Acereda Herrera, Stamatelaki,
Elchinov)11.
Naturalmente que à solidez da jurisprudência judicial da União não é alheio o
concurso doutrinal dos advogados gerais, em cujas alegações não raro se
descobrem importantes critérios de jurisprudência dogmática, que acrescem às
elucubrações e modelos prático-normativos desenvolvidos por muitos outros
especialistas, no labor de disquisição e redensificação do direito social
comunitário, seja na vertente da saúde pública, seja a respeito da realização
de um elevado nível de protecção de saúde, seja do acesso à prevenção e aos
cuidados comunitários (o mesmo é dizer, no que respeita às várias facetas do
direito à saúde, talqualmente recortado pelo artigo 35º da Carta dos Direitos
Fundamentais e sem prejuízo das muitas outras normas da UE que reverberam no
tratamento jurídico da saúde). Contudo, a perspectivação jusfundamentalda saúde
requer uma alusão, ainda que brevíssima, à ligação da UE com a agenda dos
direitos fundamentais. De facto, se nem tudo na protecção da saúde são
direitos, a verdade é que o artigo 35º emerge de uma Carta de Direitos
Fundamentaise utiliza expressamente a linguagem dos direitos na sua abordagem à
tutela da saúde pelo direito.
1.2. Os direitos fundamentais na UE
1.2.1. Das origens à CDFUE12
Como consabido, a UE nasceu sob o signo das liberdades económicas
funcionalizadas à constituição de um mercado comum. No entanto, o lastro
cultural da jusfundamentalidade, bem vincado em muitos países europeus e cada
vez mais emulado no plano internacional, dificilmente poderia deixar a UE
indiferente, tendo conduzido a um acolhimento progressivo dos direitos
fundamentais no seu seio. Todavia, o reconhecimento e promoção desse património
civilizacional começou por ser sobretudo obra dos tribunais, não obstante
algumas iniciativas desgarradas por parte de outras instituições comunitárias
[como a Declaração Conjunta do Parlamento, da Comissão e do Conselho sobre a
protecção de direitos fundamentais, de 05.04.197713]. De facto, ultrapassada
uma primeira fase em que se recusava pura e simplesmente a aferir a validade do
direito comunitário pelos direitos fundamentais, a jurisprudência comunitária
evoluiu para uma assimilação destes últimos a princípios gerais de direito cujo
respeito incumbiria aos tribunais assegurar (casos Staudere Internationale
Handelsgesellschaft) -, passando, mais tarde (a partir do famoso aresto Nold),
a pressupor e equacionar, nos seus juízos, a CEDH e os instrumentos de direito
internacional pertinentes. A recepção das soluções jurisprudenciais pelo
direito originário ocorreu gradualmente a partir do Acto Único Europeu (no seu
preâmbulo) e sobretudo com o Tratado de Maastricht (nos então artigos F, n.º 2,
J, n.º 2 e K, n.º 1). O Tratado de Amesterdão referiu-se-lhes expressamente no
artigo 6.º, n.º 2. No ínterim, tinham-se multiplicado já as Resoluções sobre o
assunto; porém, nas vésperas da proclamação da Carta dos Direitos Fundamentais,
sendo certo que se reconheciam os direitos fundamentais como bases axiológicas
da UE, nos termos dos artigos 6º, n.º1 e 7º do TUE, continuava ausente um
catálogo de direitos fundamentais próprios da União, faltando-lhe igualmente a
competência para aderir à CEDH.
1.2.2. A CDFUE14
a)A Carta dos Direitos Fundamentais resultou de uma iniciativa da presidência
alemã, que procurou tirar as devidas consequências da panóplia de relatórios
sobre direitos humanos, encomendados pela UE, no final dos anos 90. Acabou por
ver a luz do dia sob a forma de uma solene proclamação do Parlamento, Conselho
e Comissão, pelo que não constituía inicialmente mais do que uma manifestação
de soft law, influenciando o direito da União apenas de modo indirecto.
Todavia, considerou-se ab initioque incorporava e exprimia princípios gerais
pré-existentes no direito da União, defendendo-se inclusive a sua utilização
como critério interpretativo. Para além disso, à importância da clarificação
normativa operada, juntava-se o impacto simbólico do diploma, tanto mais que se
descortinava no preâmbulo um certo compromisso com a vocação
constitucionalizanteque o direito comunitário vinha assumindo. Com efeito, não
só o mesmo se refere explicitamente aos povos da Europa(no lugar das usuais
altas partes contratantes), como coloca declaradamente o ser humano no centro
da sua acção e vê nas pessoas, individualmente consideradas, na comunidade
humana e nas gerações futuras, titulares de responsabilidades e deveres
derivados do gozo dos direitos que enuncia (Ana M. Guerra Martins).
Por tudo o que nos parece avisado esmiuçar ainda que apenas ligeiramente a
génese, fundamentos e justificação, fontes e conteúdo, procedimento de
elaboração e ulterior evolução da CDFUE.
b)A decisão de criação de uma Carta dos Direitos Fundamentais foi tomada no
Conselho Europeu de Colónia, de 3 e 4 de Junho de 1999. Na sua Conclusão n.º
44, o Conselho preconizou o carácter ou intenção meramente declarativa e não
constitutiva do documento, e, na Conclusão seguinte, incumbiu a presidência
europeia de criar as condições de implementação da decisão, até à realização do
Conselho Europeu extraordinário de Tampere, agendado para 15 e 16 de Outubro de
1999. Nessa altura, o Conselho definiu a composição e estabeleceu os métodos de
trabalho do corpo responsável pela redacção do esboço da Carta, o qual viria a
receber o nome de Convenção (tendo o seu gabinete sido denominado de
Presidium).
A 13 de Setembro de 2000, a Comissão Europeia publicou a sua primeira
Comunicaçãosobre o esquiço da Carta, subscrevendo genericamente o seu conteúdo,
apesar de sugerir algumas modificações pontuais; porém, a 11 de Outubro, numa
segunda Comunicação, optou por uma posição mais pragmática quanto à respectiva
natureza jurídica.
Por fim, no Conselho Europeu de Biarritz (13-14 de Outubro) a versão provisória
da Carta foi unanimemente aprovada e remetida para o Parlamento e a Comissão,
tendo obtido a concordância do primeiro em 14 de Novembro de 2000 e a aprovação
da segunda em 6 de Dezembro do mesmo ano. Seguiu-se a assinatura pelos
Presidentes do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão, que proclamaram a
Carta em nome das respectivas instituições, a 7 de Dezembro, em Nice.
c)A elaboração da Carta primou pela pluralidade dos participantes e a
transparência dos procedimentos. Além de representantes dos Chefes de Estado e
de Governo, dos membros do Parlamento Europeu e dos Parlamentos Nacionais e de
um Comissário europeu, estiveram presentes observadores do Tribunal Europeu de
Justiça, e recolheram-se as visões dos enviados do Comité dos DESC, do Comité
das Regiões, de vários grupos sociais e de especialistas. Os serviços de
secretariado foram assegurados pelo Secretariado-Geral do Conselho. Além disso,
a Convenção criou propositadamente um sítio electrónico para divulgar os
materiais que analisou, os documentos que produziu e as diversas versões
provisórias da Carta que discutiu, e manteve as sessões de reunião abertas a
todas as pessoas, levando em conta as críticas de muitas ONG's (mais de 70
associações estiveram envolvidas) e as opiniões das instituições públicas
interessadas (stakeholders).
d)Com a Carta, a protecção dos direitos fundamentais foi genericamente elevada
a princípio fundador e requisito indispensável de legitimidade da UE,
reconhecendo-se assim a obrigação jurídica de respeitá-los ' nos termos
previamente definidos e casuisticamente consolidados pela jurisprudência do
Tribunal Europeu de Justiça. Todavia, o novo Diploma nasceu apenas com o
modesto ensejo de tornar evidentes os direitos que já faziam parte do
património comum dos europeus, numa homenagem mais à segurança jurídica do que
à justiça, o que aumentou as dúvidas acerca do preciso alcance da sua validade
e eficácia, mormente quando estivesse em causa a deficitária dimensão social da
construção europeia (os direitos de entono social ou a sua refracção sobre as
políticas sociais da União).
e)Ainda assim, pretendeu-se que dela constassem os direitos fundamentais: (i)
garantidos pela CEDH, (ii) derivados das tradições constitucionais comuns aos
Estados-Membros (na qualidade de princípios gerais de direito comunitário), e
(iii) exclusivos dos cidadãos da União. No que concerne aos direitos económicos
e sociais contidos na CSE e na Carta dos Direitos dos Trabalhadores, deviam ser
igualmente levados em conta, na medida em que não se limitassem a estabelecer
objectivos para a acção da União.
A CDFUE não visou, pois, a criação de direitos novos, preferindo remeter a
determinação do sentido das suas provisões para a CEDH e a jurisprudência do
TEDH, tomadas como standardsde referência. Apesar de tudo, trouxe algumas
novidades relativamente àqueles parâmetros de referência: o artigo 5º
acrescentou a proibição de tráfico humano à proibição de escravatura e trabalho
forçado; o artigo 10º juntou o direito à objecção de consciência à liberdade de
pensamento, consciência e religião. Por sua vez, os artigos 3º e 8º responderam
aos avanços tecnológicos e científicos e às ameaças que colocam aos indivíduos
(o primeiro, proibindo a clonagem reprodutiva de seres humanos, e o segundo,
referindo-se aos dados pessoais).
No que toca aos direitos sociais, os obstáculos a superar eram bem maiores. A
Carta não quis desempenhar a seu respeito nem um papel propriamente de reforço,
nem muito menos a função de um verdadeiro trampolim, instituindo, no entanto,
uma nova plataforma de estabilização, que possui o ambivalente significado de
todos os limiares. Também quanto à saúde o Estado de Direito a nível
internacional não mudou com a Carta: como é óbvio, não se consagra um direito a
ter saúde, mas um direito à saúde, cingido ao acesso à prevenção em matéria de
saúde e aos cuidados médicos, talqualmente previstos nas legislações nacionais.
f)A verdade, pois, é que a CDFUE deixara muitos problemas por resolver. Daí
que, um ano depois, o Conselho Europeu tenha reunido em Laeken, na Bélgica,
acordando uma convenção sobre o futuro europeu, para decidir se a Carta deveria
ser incluída no direito da UE e se esta deveria assinar a CEDH. Entretanto,
estavam em curso os procedimentos para a redacção de uma Constituição Europeia,
que viria a ser concluída e submetida ao Presidente do Conselho Europeu a 10 de
Julho de 2003. Entrementes, a Convenção Europeia responsável pela elaboração do
Tratado estabelecendo uma constituição para a Europa decidiu incorporar a CDFUE
no texto constitucional.
Em 18 de Julho de 2003, o Chairmanda Convenção Europeia entregou a versão
completa do Tratado à presidência italiana do Conselho Europeu, solicitando-lhe
a condução de discussões produtivas acerca do projecto, de modo a que pudesse
reunir o consenso de todos os Estados-Membros. A 31 de Dezembro, no final da
presidência italiana, faltava ainda um acordo final sobre o projecto, tendo
entretanto sido introduzidas algumas emendas, designadamente com a adição de um
par de parágrafos ao Preâmbulo e de alguns aditamentos aos artigos acerca das
provisões gerais da Carta. No Conclave Ministerial de Nápoles (CIG 2003),
tocou-se mesmo na saúde pública, em alguns aspectos da cláusula de
solidariedade e no problema da adesão à CEDH.
Mal assumiu a presidência, a 1 de Janeiro de 2004, a Irlanda tomou a seu cargo
a prossecução das tarefas. Em 17 e 18 de Junho de 2004, chegou-se finalmente a
um entendimento quanto ao Projecto de Tratado, do qual efectivamente passava a
constar a Carta dos Direitos Fundamentais.
No entanto, como se sabe, o processo de ratificação da Constituição europeia
ficou bloqueado no momento da aprovação pelos Estados-Membros, face às recusas
francesa e irlandesa. A Constituição acabou por ser afastada, surgindo, em seu
lugar, depois de uma longa travessia do deserto, o Tratado de Lisboa de 2009
(que estava longe de ser a Terra Prometida, como se tornou evidente ). Na
verdade, o Mandato de 2007 e o resultado final obtido na capital portuguesa
distanciavam-se bastante do anterior projecto constitucional. No que concerne à
CDFUE, em vez de incorporada, foi objecto de proclamação solene e assinatura
formal (com algumas emendas menores), em Estrasburgo, a 12 de Dezembro de 2007,
pelos Presidentes do PE, do Conselho e da Comissão e publicada depois no jornal
oficial (na véspera da assinatura do Tratado de Lisboa), sendo-lhe atribuído
valor jurídico equiparado ao dos tratados constitutivos (artigo 6.º).
1.3. A Europa Social
1.3.1. A socialidade na UE: políticas, direito e direitos
Não merece disputa que os objectivos primordiais da Euratom, da CECA e da CEE
tinham um cariz essencialmente económico. As instituições comunitárias
originárias achavam-se desprovidas de competências em matéria social,
considerada da exclusiva regedoria dos Estados-Membros.
No momento de arranque da União, o Tratado de Paris era sem dúvida o mais
generoso do ponto de vista social, já que incluía disposições sobre a liberdade
de acesso ao trabalho, a readaptação dos trabalhadores e o fomento do emprego.
Por seu turno, o Tratado Euratom limitava-se a estabelecer algumas condições de
segurança para a vida e a saúde dos trabalhadores. Já o Tratado de Roma
continha normas de direito social comunitário (artigos 48º a 51º) e alguns
programas de política social (como sucedia com os previstos nos dois capítulos
do Título III); as primeiras criavam obrigações jurídicas para os Estados-
Membros relativamente aos trabalhadores comunitários, garantidas pela Comissão
e fomentadas pelo Fundo Social Europeu; as segundas pressupunham um modelo de
cooperação interestadual apontado à instituição de melhores condições de vida e
trabalho no contexto do mercado comum, e conducente a uma gradual harmonização
dos sistemas sociais e à aproximação dos sistemas jurídicos nacionais.
Em geral, o embrionário direito social comunitário servia somente para
formalizar, de modo muito limitado e precário, alguns direitos sociais, sempre
instrumentalizados à garantia da liberdade de circulação dos trabalhadores e
respectivas exigências sociais, com o objectivo último de evitar distorções no
mercado comum (v.g.que lhe diminuíssem a eficiência ou perturbassem a
estabilidade funcional); quanto à política social, visava apenas impulsionar a
harmonização das políticas estatais e orientar os comportamentos das
instituições e interlocutores sociais, com o propósito de remover obstáculos à
concorrência, facilitando a mobilidade do factor trabalho.
O lento vagão da socialidade europeia continuava atrelado à locomotiva
económica, que corria por calhas da política e do direito, forjadas à sua
medida. Os escassos programas, políticas e directivas sociais da época não
chegavam para vencer a tibieza política e a parcimónia da regulação jurídica no
tocante à socialidade e aos direitos sociais, que, por isso, permaneceram
marginais e consequenciais, evoluindo por tímido arrastamento.
Nos anos 70 ainda se esboçou uma aproximação ao tema, através das garantias
instituídas pelas directivas sobre a igualdade, mas, em rigor, parece justo
afiançar que, até ao presente século, só por duas vezes o processo de
integração indiciou intenções de conferir à comunidade uma dimensão social de
maior envergadura: em 1989, com a Carta dos Trabalhadores, e, em 2000, mediante
a tutela autónoma de direitos sociais no capítulo que a CDFUE devotou à
solidariedade.
Claro que a doutrina há muito denunciava este deficitsocial e que os próprios
tribunais vinham urdindo a sua teia, bem mais do que larvar: tendo começado por
não aceitar que os argumentos sociais de natureza económica pudessem justificar
regulações nacionais com consequências restritivas para a livre circulação em
geral (e especialmente de mercadorias), a jurisprudência foi aos poucos
concedendo dignidade jurídica às razões fundadas na solidariedade e na
igualdade sociais; a ponto de alguns especialistas entenderem que, antes mesmo
da viragem do milénio, se havia já formado um núcleo duro de garantias sociais,
construídas a partir do princípio da não discriminação e das exigências de
justiça distributiva e social.
1.3.2. Da política ao direito social
Em 1986, na esteira de vários programas sociais (1974-1980 e 1980-1986), o Acto
único Europeulançou o desafio de conferir ao Mercado Interno uma dimensão
social e assegurar a coesão económica e social. Todavia, segundo Catherine
Goybet, é a partir de 92 que a questão social adquire uma nova centralidade na
Europa. A acta final do Tratado de Maastrichttrouxe consigo três importantes
protocolos sobre o assunto: o n.º 3, relativo ao artigo 119º do TCE, o n.º 14
acerca da política social, e o n.º 15, dedicado à coesão económica e social.
Apesar do boicote da Inglaterra e da Irlanda, que preferiram manter-se à
margem, o protocolo 14 significou um efectivo aprofundamento da Europa Social,
ao incorporar como acervo a Carta Social Comunitária dos Trabalhadores e ao
instigar à sua efectivação, através das instituições, mecanismos e medidas
oferecidas pelo Tratado.
Mais tarde, com o Tratado de Amesterdão, a Inglaterra aceitou finalmente o
Protocolo sobre política social, assegurando uma maior coesão europeia no que
toca aos planos de desenvolvimento da União. Por outro lado, o protocolo e
acordo anexos sobre a política social foram integrados no TCE, cometendo aos
Estados e à UE a prossecução dos objectivos sociais neles fixados, no quadro
definido pela Carta Social de Turim (entretanto revista), e pela Carta de
Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores. A grande inovação do Tratado
consistiu, porém, na previsão de uma política de emprego, correspondente ao
Título VII e que, colocada ao serviço da realização dos objectivos definidos no
artigo 2.º do TUE, visava constituir um terceiro elemento estratégico da futura
União, a par das dimensões económicas e monetárias. Por outro lado, graças aos
artigos 6.º e 7.º, parecia encetar-se um caminho conducente à consideração dos
direitos sociais como verdadeiros direitos fundamentais da União.
Contudo, refreando um pouco os ânimos, Nice representou um certo abrandamento
da dinâmica de progresso social (paulatina que fosse), a despeito de ter dado
lugar à definição da Agenda Social Europeia para 2000 e à formalização dos
direitos de solidariedade na Carta dos Direitos Fundamentais. Com efeito, o
elandava mostras de enfraquecer, como de resto se confirmou aquando das
vicissitudes atravessadas pelo Tratado Constitucional (por complexas e
contraditórias que sejam as causas do seu insucesso). De algum modo, escutou-se
o canto de cisnedas perspectivas mais optimistas, enquanto as divergências mais
ou menos latentes quanto ao modelo social europeu, aos conteúdos do social e ao
próprio ritmo dos avanços sociais intumesceram, rebentando em conflitos
abertos. Como a Agenda Social parecesse menos preocupada com uma política
social global do que com as questões de género, a luta contra a pobreza e
exclusão social e a garantia das condições de trabalho e envolvimento dos
trabalhadores nas transformações laborais em curso, a segurança social
permaneceu remetida aos Estados-Membros, confiando-se na cooperação inter-
estatal para fazer face às necessidades de modernização detectadas.
Em 2001, a cimeira de chefes de Estado e de Governo da União ainda tocou a
reunir em torno de um projectado novo modelo social europeu, segundo um
triângulo estratégico constituído por políticas económicas, sociais e de
emprego; mas perdera-se muito do fôlego anterior. Não se imaginava ainda a
crise do final da primeira década do novo século, que hoje nos força a rever o
próprio projecto europeu, quiçá lamentando a desvalorização do ideal de
desenvolvimento (social e economicamente) sustentável que constituía uma das
suas grandes promissões...
Oficialmente, a União reconhece ainda a existência de três grandes modelos
sociais (numa tipologia que, infelizmente, pouco aproveita da profundidade dos
estudos há muito desenvolvidos por Gosta Espin-Andersen e complementados, com
especial acutilância no que toca aos países meridionais, por Maurizio Ferrera).
Fala-se, portanto, em modelo liberal, modelo meridional(da Europa do sul) e
modelo moderado, usando como critério o grau e extensão da constitucionalização
dos direitos sociais que seria praticamente nulano primeiro caso, globalno
segundo e intermédiano terceiro.
1.3.3. Do direito social aos direitos sociais
1.3.3.1. Evolução
Como vimos, apesar de quanto dispunha nos seus artigos 117º a 119º, o Tratado
de Roma secundarizava quaisquer arremedosde direitos sociais relativamente ao
desiderato de integração económica. A socialidade só encontrava algum abrigo
nos artigos 2º, 6º e 7º do TUE, relativos aos objectivos da União e aos
direitos fundamentais. Já o TCE consagrava os artigos 2º e 3º à igualdade e o
13º à proibição de discriminação e devotava todo um capítulo (136º a 153º) às
políticas e aos direitos económicos e sociais, cuidando ainda do meio ambiente
nos artigos 174º a 176º.
A Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 9
de Dezembro de 1989, representou, por isso, um marco no reconhecimento dos
direitos sociais, em que pese o seu valor meramente simbólico e a debilidade
provocada pela exclusão do Reino Unido. De feito, a Carta continha direitos
individuais e colectivos, de prestação e não auto-exequíveis, que podiam ser
lidos como um acervo de princípios sociais mínimos correspondentes a conquistas
da história política europeia, e que exortavam a um reforço dos compromissos
sociais da UE. Uma finalidade para que apontara o Preâmbulo do próprio Acto
Único ao referir-se à Carta Social Europeia de Turim.
Ainda assim, no cenário descrito, foi sobretudo à jurisprudência do TJC que se
deveu alguma ' muito lenta sedimentação dos direitos sociais no âmbito
comunitário, para o que utilizou a referência a instrumentos internacionais
específicos como os Convénios da OIT, a CEDH, a Convenção de Genebra de 1951, a
CSE, a Carta Comunitária dos Trabalhadores e os precedentes da jurisprudência
de Estrasburgo. Curiosamente, no âmbito da política de desenvolvimento e adesão
' sem imediatas implicações quanto ao relacionamento com os esquemas de
protecção social dos Estados-Membros a União fez sempre questão de evidenciar
que os direitos sociais deviam ser um importante factor de ponderação.
Nesta medida, a previsão de alguns dos mais importantes direitos sociais da
tradição jurídico-constitucional ocidental na CDFUE a maior parte deles
agrupados sob a epígrafe capitular da solidariedade representou sem dúvida um
progresso, pelo menos de um ponto de vista simbólico.
1.3.3.2. Os direitos sociais na Carta15
Os direitos fundamentais da Carta não deixam de constituir um importante
elemento federador da UE (G. Canotilho), pelo que convém não menoscabar a
inclusão, entre eles, dos direitos sociais. Os obstáculos que precisaram ser
superadas para obter esta pequena conquista depõem a favor da sua importância.
De facto, se a Convenção experimentou enormes dificuldades para obter a
concordância geral quanto ao quomodoe ao próprio anda inclusão dos direitos no
catálogo, tal deveu-se essencialmente a três ordens de razões, para muitos
ainda subsistentes: em primeiro lugar, a fragilidade de que padecem as fontes
de inspiração em matéria de direitos sociais, já que o Tratado é parco em
referências, a Carta Comunitária dos Direitos Fundamentais dos Trabalhadores
não possui força vinculativa e a Carta Social Europeia é regida por um
princípio de geometria variável que a sujeita a uma aplicação assimétrica pelos
Estados-Membros16; em segundo lugar, a alegada ausência de uma tradição
constitucional comum suficientemente clara e evidente no que respeita aos
direitos sociais; e, em terceiro lugar, a própria natureza complementar e
subsidiária das atribuições da UE no domínio (do) social.
Conquanto ponderosos, os argumentos não se nos afiguram ainda que à distância
igualmente pagantes. Por outro lado, haveria que sopesá-los com as razões
esgrimidas pelos defensores de uma inequívoca consagração dos direitos sociais.
Assim, enquanto estava a ser elaborada a CDFUE, o Comité dos DESC da ONU, por
exemplo, desenvolveu instâncias junto da Convenção para que esta assegurasse os
direitos económicos, sociais e culturais em pé de igualdade com os direitos
civis e políticos, arguindo que, de contrário, a Carta se traduziria num
inaceitável retrocesso, representando mesmo uma contravenção às obrigações do
PIDESC, nomeadamente a de adoptar medidas progressivas destinadas à promoção
dos direitos.
No final, o mérito da previsão deve ser creditado sobretudo aos franceses que
apoiados por italianos, belgas, espanhóis e pela maioria dos alemães ' tiveram
de vencer a oposição dos países nórdicos, da Holanda, do Reino Unido e da
Irlanda, onde a constitucionalização dos direitos sociais, conotada com uma
certa rigidez regulativa, costuma ser preterida em favor da maior flexibilidade
permitida pelo diálogo e negociação sociais.
A estratégia seguida pelos principais proponentes obedecia a três linhas-de-
força, a saber: o reconhecimento de um princípio da solidariedade (no preâmbulo
e como tête de chapitreautónoma); a inclusão, sob a sua alçada, de um conjunto
de direitos económicos, sociais e culturais; e a garantia de uma protecção
horizontal dos direitos (artigo 53º).
Relativamente ao modusde inserção e previsão eleito, procurou contornar-se a
dificuldade de delimitação dos direitos segundo os critérios tradicionais,
empregando uma sistematização inovadora que os agrupou em cinco categorias
dignidade, liberdade, justiça, solidariedade, igualdadee cidadania. Na prática,
porém, os direitos sociais espraiam-se por todo o catálogo, extravasando da sua
sedeespecífica no capítulo da solidariedade.
Com efeito, nem todos os direitos sociais foram concentrados no capítulo IV,
ficando de fora a liberdade sindical [incluindo o direito de constituir
sindicatos (12º)], o direito de acesso à formação profissional e contínua (14º,
n.º 1), a liberdade profissional e o direito de trabalhar (15º), assim como a
liberdade de empresa (16º). Por outro lado, há direitos no capítulo IV que não
são direitos sociais, mas de terceira geração [protecção do ambiente (37º),
defesa do consumidor (38º)]. Existem ainda direitos sociais aparentemente
esquecidos pela Carta, como o direito das pessoas idosas à protecção social.
Por fim, não se previu nenhum regime específico para os direitos sociais,
aplicando-se-lhes indiscriminadamente as disposições horizontais dos artigos
51º e seguintes, que regem também os direitos civis e políticos.
Não é este o local para uma apreciação mais detida sobre o assunto. Ainda assim
impõem-se duas observações.
A tradicional formulação dos direitos sociais como direitos dependentes de
complementar determinação normativa ' i.e., non self-executing' estribou-se,
aqui, a título suplementar, no próprio princípio da subsidiariedade [que
impedia o alargamento, através da Carta, das tarefas da UE, previstas nos
tratados (51º/2)]; em consequência, a sua concreta configuração e radicação
subjectiva depende das disposições (nacionais ou comunitárias) que os devam
consagrar, bem como das diferentes práticas nacionais. Note-se, contudo, que,
relativamente à protecção da saúde estatuída no artigo 35º, a remissão feita
não abrange o direito comunitário, apontando somente para as práticas e
direitos nacionais.
Mau grado esta dependência de concretização, pelo direito comunitário e
nacional (seja constitucional, seja legislativo), recusou-se a simples
positivação através de normas programáticas ou meramente enunciadoras de fins
gerais (que coincidiriam com os escopos da União), asseverando, assim, a valia
de uma socialidade jussubjectiva. Todavia, cumpre também lembrar, no tocante ao
valorjurídico dos direitos sociais da Carta, que a mesma começou por não ter
efeito vinculativo. Além disso, atenta a vontade e razão do legislador
histórico do diploma, os seus preceitos não deviam ultrapassar de modo algum os
textos que os haviam inspirado. Contudo, no quadro da governancemultinível e do
sistema jurídico de interjuridicidade vigente na UE, tem tido acolhimento a
proposta de uma interpretação em conformidade com o direito, seja da União,
seja internacional, seja ainda dos Estados-Membros, em que se atribua
prevalência ao mais subido nível de protecção de entre os consagrados nas três
fontes indicadas17. Uma proposição metodológica que não deixa de gerar polémica
e tropeçar em imensos escolhos, designadamente quanto a saber em que consiste o
tratamento mais favorável, como se cotejam as diferentes tutelas e de que modo
se procede à necessária aquilatação18. Para além disso, há normas, como a do
35º, que, por dispensarem o superlativo (protecção maiselevada), não devem
admitir a interpretação comparatística de vezo maximizador, por mor de um
raciocínio ex differentiaeou mesmo a contrario senso. Seja como for, tivemos já
ocasião de propugnar que a interpretação axiológico-funcional do direito
comunitário, alinhada com o sentidonormativo-político do projecto europeu,
aconselha como razoável (no mínimo ) a impossibilidade de diminuir os níveis de
protecção abaixo do patamar garantido pela Carta e demais instrumentos
internacionais vinculativos, mesmo que as devoluções, aos Estados-Membros, das
tarefas de concreta realização dos direitos, sejam feitas tanto para os regimes
actuais como para os futuros (conferindo-lhes assim enorme discricionariedade),
e que as instituições comunitárias pareçam deste modo isentas de prevenir e
impedir qualquer reformatio in peiuspor via das suas políticas sociais.
Mais audaz no reforço da socialidade (mormente com respeito aos mediapolítico-
institucionais de realização dos respectivos princípios e direitos jurídicos)
se revelava o malogrado Projecto de Constituição Europeia, no qual se
incorporou a CDFUE, como parte II. Na versão final do Tratado, o texto surgia
dividido em quatro partes, três das quais continham regulações conexionadas com
os direitos sociais. O I.2 ancorava-os nos valorese o I.3.3. enquadrava-os nos
objectivos. Os artigos I.9.1, I.9.2, I.9.3. e III.208 consagravam cláusulas
gerais em matéria de direitos fundamentais. Para além disso, delineavam-se
vários direitos sociais específicos, a par de outros direitos com dimensões
sociais (II.61, II.63, II.65, II.74, II.75, II.81, II.83, II.84, II.85, II.86,
II.87, II.88, II.89 e II.90 a II.98) e de direitos regulados nas políticas
sociais da Parte III (assim os artigos III.116-121 e III.124 e os artigos
III.205, III.209, III.210, III.211e III.214). Previam-se também órgãos de
protecção e instituições de garantia específicas (verdadeiras garantias
institucionais), com a constitucionalização do Conselho Económico e Social
(III.389 a III.392) e do Fundo Social Europeu e a criação de um Comité de
Protecção Social (III.217). Por fim, valiam ainda as cláusulas interpretativas
do II.113 (53.º), em que se acolhia o princípio da protecção mais favorável.
Paralelamente distinguiam-se os direitos dos princípios (5º), subordinava-se o
padrão de protecção aos parâmetros resultantes das tradições constitucionais
comuns (3º) e procedia-se à constitucionalização das explicações da Carta.
Após Nice, e a apesar dos recuos na política social, da desventura da
Constituição Europeia e das dificuldades entretanto atravessadas pelo projecto
europeu, os direitos sociais da Carta sobreviveram, gozando hoje de
vinculatividade ex vido artigo 6.º do TUE que elevou a CDFUE a direito primário
da União, inserindo-a no sistema básico dos tratados constitutivos.
1.3.3.3 Os direitos sociais na UE: noção, estatuto e função19
Segundo Teresa Sanjuán20, tanto o Tribunal de Justiça como os tribunais
constitucionais de muitos países da União utilizam um conceito amplo de
direitos sociais, no qual se incluem todos aqueles direitos que contribuam para
o desenvolvimento do Estado social e das suas cláusulas de igualdade e
dignidade.
Ao contrário do que ocorria no constitucionalismo clássico e em algumas
concepções originárias desta categoria de posições jurídicas, por um lado, e do
que sucede com algumas revisionistas e altamente empobrecedoras leituras
liberais que deles vêm sendo feitas recentemente, por outro lado, os direitos
sociais não se circunscrevem às pretensões e faculdades jurídicas de uma classe
ou grupo social (trabalhadores, pobres, desvalidos, necessitados), estendendo-
se antes a todas as pessoas e cidadãos, como genuínos direitos de titularidade
universal, posto que com uma largueza, diversidade e profundidade de exercício
variáveis (dentro de certas margens e sempre obedecendo a orientações
principiais) em razão das circunstâncias individuais e das opções de políticas
públicas que o conflito e a alternância político-ideológicas e a evolução
económica possam ditar, tanto na União como nos diferentes Estados.
Peritos da comunidade pronunciaram-se já sobre a noção, o estatuto e a função
dos direitos sociais no contexto da União. Demarcaram-nos das políticas
sociais, apesar do relacionamento que com elas mantêm, mas distinguiram-nos
também das liberdades jurídicas (sem embargo das pressuposições e implicações
recíprocas); reconheceram a multiplicidade e diversidade das funções que
desempenham, consoante sejam concebidos como direitos subjectivose
justiciáveis, garantias institucionaisque constrangem o Estado a manter um
determinado instituto jurídico, defluências de objectivos do Estado(que este
deve observar em toda a sua actuação legislativa e administrativa) e séries de
programasque confiam ao legislador a missão de velar pela realização do direito
através de leis ordinárias (quer possuam efeitos em relação a terceiros ou
apenas face aos Estados); para além disso, confirmaram ainda o diferente
estatuto (constitucional ou legal) que lhes é atribuído em diferentes Estados-
Membros. O debate a este respeito, cujos termos e argumentos dispensam
apresentações, reveste-se de especial acuidade no seio da União, dadas as suas
peculiares características jurídicopolíticas. Daí que Udo di Fabio tenha mesmo
preconizado a criação de um tribunal comunitário especial com competência para
julgar questões concernentes aos direitos fundamentais.
2. O direito à saúde do artigo 35º num relance21
Da convergência e fusão destes influxos se alimenta o artigo 35º. Não se
pretende, com isto, ver nele um ponto de chegada, antes uma fonte
permanentemente nutrida por aqueles veios mais ou menos subterrâneos. Antes de
tudo o mais, avançamos, portanto, uma elementar proposição metodológica,
segundo a qual o artigo em apreço deve ser interpretado com atenção às três
componentes que historicamente nele se encontram e cruzam, mesmo que prossigam
depois os seus diferentes caminhos, vindo a irrigar outros terrenos.
Trata-se de uma objectivação dogmáticado direito, cujo conteúdo se mostra
passível de diferentes estratégias de racionalização, mais ou menos
compatíveis, mas que, em todo o caso, deve ser transcendida por aquelas
intençõesde validade normativa e justiça ' de que nos fala J. Balkin ' que são
seu pressuposto, ideal regulativo e fundamento último de constituição, e as
quais, como tal, nunca logrará manifestar e cumprir totalmente. Com efeito, se
considerarmos ademais da sua génese prescritiva ou da evolução da consciência
jurídica geral e do sistema dogmático que integra a teleologia jurídica de que
deve participar (segundo os bons parâmetros de protecção e promoção da saúde,
dos direitos humanos e da solidariedade), encontraremos um fundamental elemento
para lhe descortinar o sentido e para o densificar em termos jurídicos, assim
ele seja problematicamente convocado.
Numa radiografiagrosseira, apercebemo-nos de que o artigo 35º consagra para
todos os cidadãos dos Estados-Membros, mas também de Estados-Terceiros (ainda
que se encontrem em situação ilegal no território da União), um direito de
acesso à prevençãoe um direito de beneficiar de cuidados médicos, bem como um
princípio finalístico de garantia de um nível elevado de saúde, que
naturalmente possuem diferentes estruturas e intensidades normativas, mesmo se
a todos se reconhece um jaez social. Com efeito, na primeira parte, está em
causa um direito negativo de liberdade (que impede a União ou os Estados-
Membros de limitarem ou suprimirem o acesso de cada um à prevenção da saúde)
mas também um direito de protecção (garantia de acesso igual à prevenção de
saúde e de manutenção das condições de vida, ambiente e trabalho azadas a uma
precaução dos riscos de saúde). Por seu turno, o direito a beneficiar de
cuidados médicos implica um dever de realização, ainda que os Estados possam
escolher os meios mais adequados de o levar a cabo.
Quanto ao Zielverpflichtungda segunda parte do artigo, integra pelo menos uma
proibição de omissão e um dever de criação, organização e modelação dos meios
adequados à realização de um elevado nível de saúde.
CONCLUSÃO
Consideramos que uma perspectiva jurídica filosófica, teórica e dogmaticamente
inter-(e sobretudo trans-)cultural ' oferece hoje suporte a uma juridicidade
pública social, estruturada e densificada por um conjunto de princípios e
critérios vinculativos partilhados, posto que sujeitos a diferentes
determinações, ao longo de uma escala de sedimentação, que desliza até a
realidade com a qual dialogicamente interage, pela qual é alimentado e a cujos
problemas procura responder, a vários níveis.
Sucede sermos hoje levados à conclusão de que mudou o contexto problemático e
intencional do direito, nas suas vertentes económicas, políticas e ético-
culturais, porque se alterou a auto-compreensão do homem, que é sempre aquilo
que faz época(Ortega y Gasset). Difundiu-se um poderoso ethosconsumista e a
adopção de práticas e relacionamentos consonantes, os quais, não deixando de
transportar elementos de bem-estar, gratificação, e até libertação e
pluralismo, se revelaram amiúde alienantes ou pelo menos, pouco emancipatórios
(contrariamente ao que avonde se alardeia ). Como consequência, obnubilase cada
vez mais o debate público sobre uma matéria já de si delicada como sabemos ser
a da saúde por bulir com as relações intersubjectivas e a organização da
sociedade de que o direito se ocupa.
Cremos que a reconstrução de uma ordenação juridicamente justa para a esfera da
saúde deve reter um conjunto de ideias-força, de que se deixa uma breve
resenha:
- A saúde é um bem de importância pública. De um ponto de vista económico,
apresenta as características de um bem de méritoe (pelo menos) semi-público; a
sobredeterminação jurídico-política da economia, porém, mais confirmao seu
interesse público e social, ainda que actualmente a configuree
conformesobretudo como bem acessível(Suzana T. Silva), nos termos das regras e
princípios que regem os respectivos serviços de provisão (ditos bens de
acesso).
- Quer as determinantes da saúde nomeadamente os esquemas de provisão de
cuidados (terapêuticos, paliativos, curativos, etc.) e de prestação de
medicamentos ' quer, mais genericamente, todas as interacções que a têm por
objecto, colocam importantes questões de justiça;
- O direito regula muitas dessas relações que entretecem a esfera da saúde,
regendo agentes, acções, objectivos e consequências (macro e micro);
- No cerne desta regulação deve estar um direito à saúde, em sentido amplo,
desdobrável numa série de momentos subjectivos e objectivos, negativos,
positivos e activos, materiais e procedimentais, e com a necessária atenção aos
problemas que a respeito de cada um deles se podem suscitar.
Aceites como dados incontornáveis a profunda diferenciação social e a radical
pluralidade epistémica dos nossos dias, uma actualizada perspectiva jurídica de
teor antropológico-culturalmente institucionalista (P. Häberle, A. Supiot, R.
Jäeggi), deverá ver nos direitos sociais o fundamento axiológico-normativo
básico para os muitos estatutos sociais da pessoa e do cidadão. Com efeito, os
direitos sociais requerem a institucionalização de diferentes posições
jurídicas no seio dos vários sistemas sociais, estabilizando normativamente as
condições de acesso justo aos diversos bens (educação, saúde, segurança social,
cultura, etc), em dialéctica com as respectivas dinâmicas internas e dialogando
com os respectivos discursos de reflexiva constituição, num sentido correctivo
e transformador.
Não se veja aqui qualquer tentativa de restaurar uma pré-moderna ordenação
jurídico-estatutária da sociedade22, impossível depois da experiência cultural
de subjectivismo filosófico, individualismo antropológico, finalismo económico,
contratualismo político, cientismo epistemológico e formalismo axiológico, que
a modernidade propiciou. Nos nossos dias são as pessoas concretasque criam as
máscaras, as justificam e as utilizam instrumentalmente; não as máscaras que
constituem e definem as pessoas.
Efectivamente, num mundo complexoe gasoso, faz-se necessária a criação de zonas
ou ambientes favoráveis ao direito espaços juridicamente balizados e
internamente sinalizados (i.e., iluminadospor faróis jurídicos) atravessados
pela intenção prático-problemática da juridicidade e animados pelas correntes
que esta propulsione. Tentando decerto prevenir a redução do direito a um
discurso da área aberta(para o qual nos alerta Aroso Linhares) e corrigir o
protestantismo interpretativoa que alude Sanford Levinson, há todavia que
confiar efectivamente na instilação de uma cultura jurídica ' i.e., na
impregnação de um ethosdo justoe do recto' entre os sujeitos de direitos e
deveres que somos todos nós; um nomosque, sem invadir e colonizar o campo da
ética e da responsabilidade absoluta, do amor e da caridade, ou da mera
cortesia ou uso social, se torne todavia padrão basilar das relações
intersubjectivas na esfera pública, como um sentido comungado do que nos
devemos uns aos outros enquanto membros de colectividades feitas de diversas
comunidades, e, assim, unidos por uma solidariedade23 institucionalmente
actualizada e sujeita a modulações em função daquelas, mas cuja ideia
inspiradora as transcenda, i.e., cujo princípio normativo conheça critérios
diferentes mas persista sendo o da justiça social.
A esta luz, a Europa tem ainda um caminho a fazer para que o direito à saúde
seja devidamente recortado no quadro de um espaço político-económico e sócio-
cultural não assente apenas nas liberdades de concorrência e de escolha e nas
liberdades circulatórias que as servem. Não basta uma muito parcial integração
sistémica de índole económica, cuja ligação legitimante ao mundo-da-vidase faz
apenas através dessas liberdades. A coesão nacional não pode ser substituída
pela simples competição internacional, antes clamando por um novo sistema, mais
complexo, de integração em rede, cooperativamente elaborado ' que pode
comportar especializações, mas não deve sacrificar totalmente as exigências de
justiça geral, distributiva e social, em matéria de saúde, às que decorrem de
uma justiça comutativa que hiperboliza a liberdade individual. Liberdadee
saúdesão dois bens a ponderar, numa referência à dignidadedas pessoas concretas
(que requer respeito, protecção e promoção da autonomiae da
responsabilidadeindividuais). Daí que a liberdade de circulaçãona UE deva ser
encarada com cautela, pois, ao tocar este aspecto precário da construção
europeia e dos equilíbrios frágeis em que se escora, atinge um nervo profundo
da própria inteligência e normação jurídicas da saúde: o da composição adequada
' razoável, moderada, bem medida, i.e., correcta de autonomia e
responsabilidade individual e colectiva na repartição dos recursos necessários
para intervir proficuamente na matéria.
Mais do que numa fáusticavitória absoluta sobre a fragilidade(M. Benasayag) e
vulnerabilidadedo homem ou na total evitação tecnológico-social dos riscos
inerentes à aventura individual e ao convívio com os outros, é na esperança da
(e na responsabilidade pela) justiçaque deve residir, também quanto à saúde, a
nossa apostajurídica.
«Bei der Gesundheit verhält es sich ähnlich wie bei der Gerechtigkeit:
Wer sie erlebt, nimmt sie für selbstverständlich»
Paul KIRCHHOF, Das Recht auf Gesundheit, in Stimmen der Zeit, Heft 1, Januar
2004, p. 44.