Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTCVHe0872-07542012000200011

EuPTCVHe0872-07542012000200011

National varietyEu
Year2012
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Eritroblastopenia transitória da infância: atitude expectante face a uma anemia grave

INTRODUÇÃO A Eritroblastopenia Transitória da Infância (ETI) é uma forma de anemia arregenerativa temporária, descrita pela primeira vez em 1970(1,2). É uma condição adquirida, auto-limitada e de instalação progressiva. Caracteriza-se por supressão transitória da produção eritróide, com eritroblastopenia medular e reticulocitopenia no sangue periférico, resultando numa anemia normocítica/ normocrómica moderada a grave(1-3).

A ETI afecta sobretudo crianças previamente saudáveis, com idades compreendidas entre um e quatro anos, grupo etário em que ocorrem 80% dos casos(1,2). É uma condição pouco frequente, com uma incidência estimada de 4,2 casos por 100000 crianças. No entanto, a incidência real é difícil de estabelecer, atendendo ao número indeterminado de casos não diagnosticados com evolução sub-clínica(2).

A etiologia permanece por esclarecer, tendo sido propostos mecanismos infecciosos e imunes(1,2). Em cerca de metade dos casos identifica-se uma infecção vírica nos dois meses precedentes, sobretudo afectando o tracto respiratório ou gastrointestinal. Contudo, o facto de não mostrar variação sazonal bem como a elevada prevalência de infecções víricas neste grupo etário, dificultam o estabelecimento desta relação causal(1-3). As infecções mais frequentemente associadas com a ETI são as causadas por vírus herpes humano tipo 6, ecovirus 11 e parvovírus B19. Outros mecanismos propostos relacionam-se com a presença de inibidores séricos, como auto-anticorpos IgG direccionados aos progenitores eritróides, ou a supressão da eritropoiese por mediação celular(2-4). A descrição de vários casos familiares de ETI, incluindo em gémeos monozigóticos, sugere a possibilidade da existência de uma predisposição genética, resultando esta anemia de uma resposta anormal transmitida a um desencadeante ambiental comum, como a presença de vírus ou toxinas(4-5).

A apresentação mais comum consiste em palidez e astenia de instalação progressiva. O exame objectivo é inocente, para além das possíveis alterações secundárias à anemia. A hemoglobina (Hb) pode atingir níveis entre 2 e 9 g/dl, com média de 5,6 g/dl, associada a reticulocitopenia marcada(1). As outras linhas celulares não são habitualmente afectadas, embora possa ocorrer em alguns casos neutropenia ou trombocitose transitórias. O diagnóstico diferencial faz-se com outras formas de anemia arregenerativa.

Tipicamente apresenta um curso benigno e auto-limitado, necessitando apenas de vigilância da evolução clínica e analítica. O suporte transfusional raramente é necessário, estando apenas indicado no caso de compromisso hemodinâmico(1,2). A recuperação é completa e ocorre num período de um a dois meses. No momento de diagnóstico, até 10% dos casos encontram-se em fase de recuperação. A recidiva de ETI é extremamente rara(1-3).

CASO CLÍNICO Criança do sexo feminino, caucasiana, com três anos de idade, segunda filha de pais jovens e não consanguíneos. Sem antecedentes patológicos ou familiares relevantes. Admitida por um quadro com uma semana de evolução caracterizado por sintomas das vias aéreas superiores, associados a febre e vómitos desde o dia anterior ao internamento. Retrospectivamente, referência a palidez com um mês de evolução, sem astenia para as actividades habituais. Foram negadas perdas hemáticas e hábitos medicamentosos.

Ao exame objectivo apresentava palidez cutâneo-mucosa, evidenciando boa vitalidade. A tensão arterial, frequência cardíaca e saturação transcutânea de oxigénio eram normais. Na auscultação pulmonar eram audíveis roncos e crepitações bilateralmente. A auscultação cardíaca era normal. Não apresentava outras alterações ao exame objectivo, nomeadamente dismorfias, icterícia ou organomegalias.

O estudo analítico inicial revelou anemia normocítica/normocrómica (hemoglobina - 7,1 g/dl; MCV ' 75 fl; MCH ' 27 pg), associada a reticulocitopenia (3500 reticulócitos/mm3). O leucograma (11450 leucócitos/mm3) e a contagem de plaquetas (348000 plaquetas/mm3) eram normais e não apresentava elevação da proteína C reactiva (18,7 mg/L). O exame virulógico de secreções nasofaríngeas foi positivo para Vírus Sincicial Respiratório (VSR). A hemocultura foi negativa, bem como a pesquisa do vírus da gripe H1N1. A radiografia torácica mostrava um infiltrado intersticial difuso, sem imagem de hipotransparência ou alargamento do mediastino.

Na investigação subsequente, o esfregaço de sangue periférico não mostrava alterações e os parâmetros bioquímicos de ferro eram normais (ferro sérico ' 72 μg/dl; saturação de transferrina ' 24%; ferritina ' 64 ng/ml). Não apresentava marcadores de hemólise ou de sofrimento medular (sem macrocitose; hemoglobina F normal) e a prova de Coombs directa era negativa. A eritropoetina encontrava-se elevada (850 U/L, normal: 3,7-19.4 U/L), bem como a velocidade de sedimentação (VS), 86 mm/h.

A doente ficou apirética a partir do segundo dia de internamento, com melhoria progressiva da sintomatologia respiratória. Apresentou-se sempre hemodinamicamente estável e com boa adaptação à anemia. Considerou-se como diagnóstico mais provável a ETI, contudo decidiu alargar-se o estudo atendendo à VS sustentadamente elevada. As serologias víricas para Parvovírus, Vírus Epstein-Barr, Citomegalovirus, Vírus da Hepatite A, B e C e Vírus da Imunodeficiência Humana foram negativas. O doseamento sérico de imunoglobulinas e complemento encontrava-se nos limites da normalidade e o estudo de auto- imunidade foi negativo. Realizou uma ecografia abdominal que não evidenciou alterações.

Assumiu-se o diagnóstico de ETI e adoptou-se uma atitude conservadora, com vigilância da evolução clínica e analítica. Apresentou evolução favorável com normalização da VS, recuperação da produção eritrocitária, com emergência de reticulócitos a partir do sétimo dia, e resolução espontânea da anemia ao fim de três semanas (Quadro 1).

Quadro 1 Evolução analítica durante o tempo de seguimento

DISCUSSÃO Considerando o grupo etário, a ausência de antecedentes, a apresentação clínica e, posteriormente, conhecida a evolução benigna, trata-se de um caso clássico de ETI. Contudo, no momento da apresentação é importante o rigoroso diagnóstico diferencial com outras causas de anemia. A abordagem inicial corresponde ao estudo de uma anemia de causa desconhecida, com recurso à história clínica, exame objectivo e um estudo analítico básico.

A presença de anemia associada a reticulocitopenia caracteriza-a como anemia arregenerativa, cujo diagnóstico diferencial se apresenta no Quadro 2(1,2).

Tendo em conta este diagnóstico diferencial, as causas que cursam com diminuição da produção de eritropoetina ficaram desde logo excluídas. O mecanismo de substituição medular era improvável, pela benignidade do esfregaço de sangue periférico e pelo atingimento apenas da linhagem rubra. A aplasia rubra congénita era também pouco provável atendendo ao grupo etário, quadro clínico sub-agudo e à ausência de marcadores de sofrimento medular. Esta anemia enquadrava-se numa aplasia rubra adquirida e, considerando o contexto clínico, na ETI.

Quadro 2 Diagnóstico diferencial da anemia arregenerativa

Neste caso, realizou-se um estudo mais alargado pela presença de uma VS sustentadamente elevada. Nos casos típicos de ETI, um estudo compatível que inclua hemograma com contagem de reticulócitos, esfregaço de sangue periférico, marcadores de hemólise, parâmetros bioquímicos de ferro, eritropoetina e, eventualmente, serologias víricas, é suficiente para o diagnóstico(2,6). O mielograma e biopsia medular podem não ser necessários nos casos característicos. Contudo, a sua realização deve ser fortemente considerada nos doentes em que subsistem dúvidas quanto ao diagnóstico definitivo, nomeadamente na suspeita de aplasia rubra congénita ou anemia por substituição medular(1,2).

A doente apresentava também uma infecção respiratória por VSR, que não parece ter relação causal com a ETI pela ordem temporal das queixas. Contudo, terá contribuído para o diagnóstico por motivar a procura de cuidados médicos. De outra forma, a ETI poderia ter decorrido de forma sub-clínica e não ser reconhecida.

A apresentação deste caso clínico pretendeu relembrar esta entidade relativamente incomum e sub-diagnosticada, que pode cursar com anemia grave mas, tipicamente, com evolução benigna e auto-limitada. O suporte transfusional raramente é necessário, não estando também indicada a corticoterapia(1,6). A ETI deve ser sempre considerada nos casos de anemia normocítica/normocrómica com reticulocitopenia em crianças previamente saudáveis, sobretudo no grupo etário entre um e quatro anos. O reconhecimento e melhor compreensão da história natural desta doença podem evitar o recurso a procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários.


Download text