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EuPTCVHe0872-07542012000300004

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National varietyEu
Year2012
SourceScielo

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Hemoglobinúria paroxística ao frio: quando suspeitar?

INTRODUÇÃO A hemoglobinúria paroxística ao frio (HPF), apesar de rara, é uma das causas mais comuns de anemia hemolítica auto-imune, representando 30% dos episódios em idade pediátrica(1-3).

Descrita pela primeira vez em 1872, em associação com a sífilis, é em 1902, com Donath e Landsteiner, que é compre­endida a sua fisiopatologia com a descoberta da hemolisina de Donath-Landsteiner, um autoanticorpo IgG com especificidade anti-P. Actualmente, a associação com a sífilis congénita ou ad­quirida é rara, em grande parte devido à diminuição da incidência desta patologia (1,2).

Em termos clínicos, caracteriza-se por hemólise intravas­cular de início súbito, com anemia e hemoglobinúria, minutos ou horas após exposição ao frio. A maioria dos episódios são auto­-limitados e precedidos de infecções víricas inespecíficas (1,2).

Em termos fisiopatológicos, a hemólise intravascular ocor­re pela formação de um autoanticorpo policlonal IgG dirigido, na grande maioria dos casos, contra o antigénio P presente na membrana dos eritrócitos- hemolisina de Donath- Landsteiner.

Esta hemolisina surge sete a dez dias após a infecção vírica e persiste seis a doze semanas. Caracteriza-se por um compor­tamento térmico bifásico. A baixas temperaturas liga-se ao anti­génio eritrocitário e fixa grandes quantidades de complemento. A temperaturas mais elevadas o complemento fixado provoca hemólise dos eritrócitos. Este diferencial térmico ocorre quando perifericamente existe uma exposição ao frio com posterior retor­no do sangue à circulação central (1,2,4).

Apresenta-se um caso de uma criança que desenvolveu uma HPF e fazem-se algumas considerações quanto à melhor orientação diagnóstica e tratamento.

CASO CLÍNICO Criança, sexo masculino, 23 meses de idade, previamente saudável, que recorre ao serviço de urgência do hospital da área da residência, no mês de Dezembro, com quadro de icterícia, anorexia e irritabilidade com 24 horas de evolução a que poste­riormente se associou urina muito escura. Referência a infecção das vias respiratórias superiores uma semana antes. Sem histó­ria aparente de exposição ao frio. Os exames complementares iniciais revelaram: hemoglobina - 6,9g/dL, reticulócitos - 125 000/ uL, leucócitos - 11 700/uL (59,7% neutrófilos; 31,7% linfócitos), plaquetas - 291 000/uL. Na bioquímica destaca-se: bilirrubina total - 2,7mg/dL (directa-0,6mg/dL), ureia - 55mg/dL, creatinina - 0,5mg/dL, aspartato aminotransferase (AST) - 64UI/L, alanina aminotransferase (ALT) - 18UI/L, desidrogenase láctica (DHL) - 2 290UI/L. O esfregaço de sangue periférico não apresentava al­terações significativas. A tira teste urinária apresentava-se reac­tiva para hemoglobinúria/hematúria. O sedimento urinário não apresentava eritrocitúria. O estudo da coagulação era normal. O teste anti- globulina directo era positivo, selectivamente para anticorpos monoespecífi cos anti-C3d. As serologias para cito­megalovírus, vírus Epstain-Barr, vírus herpes, hepatite A, B e C eram negativas.

Foi transferida para a Unidade de Hematologia Pediátrica para estudo de anemia hemolítica auto-imune. A suspeita do diagnóstico de HPF foi confirmado pela positividade do teste de Donath-Landsteiner.

Foi adoptada uma atitude expectante com manutenção em ambiente aquecido, reforço hídrico e registo da diurese (1).

Durante o internamento observou-se uma normalização progressiva da hemoglobina e dos marcadores de hemólise. Como única intercorrência registou-se, em D6 de internamento, a subida ligeira dos valores de creatinina (máximo de 0,65mg/dL), que resolveu rapidamente após reforço da hidratação. Teve alta após 14 dias de internamento, clinicamente bem, com in­dicação de evicção de frio. Não foram registadas recidivas ou qualquer outra complicação.

DISCUSSÃO No caso clínico exposto, existiu, desde o início, uma forte presunção do carácter hemolítico e auto-imune da anemia grave que apresentava. A tríade clássica de anemia hemolítica - ane­mia, reticulocitose e hiperbilirrubinemia estava presente. Por ou­tro lado, a positividade do teste de Coombs sugeria uma etiologia auto-imune. O seu quadro hematológico revelava indicadores adicionais que permitiam um raciocínio mais abrangente. O as­pecto fortemente colúrico da urina - urina cor coca-cola-, a signi­ficativa elevação de DHL, em contraste com o carácter ligeiro da hiperbilirrubinemia e a elevação da TGO, com uma normalidade da TGP, sugeriam um mecanismo de hemólise intra-vascular. O sedimento urinário reforçava este raciocínio, na medida em que demonstrava que a coloração da fita teste urinária na zona da hematúria/hemoglobinúria se devia a esta última, dada a ausên­cia de eritrocitúria. A documentação do carácter intra-vascular de uma hemólise é muito importante, na medida em que reduz o leque de diagnósticos diferenciais. No caso presente, a positi­vidade do teste de Coombs, selectivamente com soro monoes­pecífico anti-C3d, sugeria fortemente o diagnóstico de HPF. O teste de Donath-Landsteiner, ao demonstrar o carácter bifásico do anticorpo em causa, veio a confirmá-lo (1,2,4,5,7).

O teste consiste na visualização de hemólise de eritrócitos, normais e do doente, suspensos em plasma do doente em vários tubos submetidos a perfis térmicos diferentes. A hemólise é ob­servável nos tubos previamente incubados a 4ºC com posterior aquecimento a 37ºC.

Como eventual factor desencadeante da produção do an­ticorpo regista-se uma intercorrência infeciosa vírica das vias respiratórias superiores uma semana antes. Apesar de não ha­ver referência a um episódio particular de exposição ao frio é de referir que a situação ocorreu no mês de Dezembro (8).

O tratamento consiste na evicção do frio, fluidoterapia e vi­gilância da normalização dos valores analíticos. Pode haver a necessidade de transfusões quando anemia grave ou de agra­vamento rápido (1).

Apesar de apresentar uma anemia grave (Hb-6,9g/dL) foi decidido não proceder a transfusão de concentrado eritrocitário. Esta decisão baseou-se na convicção do carácter auto-limitado da hemólise, reforçada pelo facto de o doseamento da DHL ter diminuído em cerca de 60% no espaço de 24h e da curva de­crescente do valor da hemoglobina ter sido interrompida. Por ou­tro lado, verificou-se que, no dia seguinte ao internamento, a re­ticulocitose era marcada. No entanto, caso a transfusão fosse considerada mandatória, por certo que não existiriam problemas transfusionais relevantes mesmo face à transfusão de sangue P positivo desde que fosse salvaguardada a não exposição do sangue a temperaturas baixas.

O aumento ligeiro dos valores de creatinina, rapidamente corrigido pelo reforço hídrico, reflecte a deposição do pigmento da hemoglobina nos tubúlos renais e a sua toxicidade. Se não tivesse sido rapidamente revertida, esta situação poderia ter le­vado a insuficiência renal aguda, complicação rara mas possível num processo de hemólise intravascular grave. Esta situação alerta-nos para a importância da monitorização da diurese e fun­ção renal. O reforço hídrico assim como a alcalinização da urina constituem medidas a ponderar.

Concluindo, a HPF é uma patologia cujo quadro agudo pode ser de extrema gravidade e até mesmo potencialmente fatal. No entanto, uma vez ultrapassada a fase aguda, tem um prognós­tico excelente. Na maioria dos casos, o episódio de hemólise intravascular é de curta duração, resolvendo geralmente em me­nos de um mês, com normalização dos valores de hemoglobina e marcadores de hemólise. É neste contexto que, a evicção do frio e a monitorização clínica e analítica durante o episódio agu­do, são da maior importância. Para isso, é importante promover a sua acuidade diagnóstica, que o seu carácter auto-limitado a torna uma patologia susceptível de ser sub-diagnosticada. As recidivas são raras (2, 6).


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