Pulmão e doenças sistémicas: Vasculites
Pulmão e doenças sistémicas: Vasculites
M.Guilhermina Reis1
1S. Pediatria, CH Porto
As manifestações pulmonares ocorrem em quase todas as doenças reumáticas da
infância, seja secundariamente à doença subjacente, seja como efeito adverso do
tratamento. Os sintomas na criança podem ser subtis e só surgirem com o tempo
e, embora pouco frequentes, são uma causa importante de morbimortalidade nestes
doentes. Requerem um elevado índice de suspeição e antecipação diagnóstica.
O sistema respiratório pode estar envolvido em todas as vasculites sistémicas,
embora com frequência variável. As vasculites pulmonares referem-se à
inflamação de vasos de qualquer diâmetro, enquanto as capilarites pulmonares
apenas se referem à microcirculação pulmonar. Ambas podem ocorrer nas
vasculites sistémicas e nas doenças reumáticas. Mais frequentemente as
vasculites pulmonares ocorrem nas vasculites sistémicas que afectam
predominantemente pequenos vasos, que se manifestam sobretudo por alterações
pulmonares e/ou renais.
A hemorragia alveolar difusa (HAD) associada a vasculite é um evento,
potencialmente ameaçador de vida que após episódios repetidos poderá levar a
fibrose pulmonar.
Serão abordados nesta apresentação:
1. Identificação de sinais e sintomas sugestivos de vasculite pulmonar;
2. Avaliação clínica e laboratorial nas vasculites pulmonares;
3. Princípios do tratamento nas vasculites pulmonares.
As vasculites sistémicassão raras, com incidências de 20-100 casos/milhão e
prevalência de 150-450 casos/milhão. A mais recente classificação das
vasculites na criança resulta dos critérios de Consenso da EULAR e Sociedade
Europeia de Reumatologia Pediátrica (Quadro I).
Quadro I' Nova classificação de vasculites em idade pediátrica*
A doença pulmonar é muito comum e uma característica importante nas vasculites
associadas à presença de Anticorpos anti-citoplasma dos neutrófilos (vasculites
ANCA+), tais com a Granulomatose de Wegener (GW), Síndrome de Churg-Strauss
(SCS) e Poliangeíte microscópica (PM).
Nas vasculites de grandes vasos o pulmão raramente é afectado: na arterite de
células gigantes a manifestação respiratória mais frequente é a tosse,
geralmente não produtiva, persistente e que responde aos corticosteroides; na
Arterite de Takayasu, o envolvimento respiratório é frequentemente subclínico e
detectável por técnicas não invasivas.
O envolvimento pulmonar é raro na Poliarterite nodosa, Doença de Kawasaki,
Purpura de Henoch-Schönlein (PHS) e na vasculite crioglobulinemica.
As vasculites pulmonares acompanham-se frequentemente de manifestações
sistémicas, incluindo astenia, febre, perda ponderal, artralgias, manifestações
renais e exantemas. A hemorragia alveolar difusa (HAD) associada a vasculite,
por lesão da microcirculação alveolar (infiltração vascular neutrofilica dos
septos peribronquiolares e interalveolar, com a activação do processo
inflamatório; disrupção anatómica capilar e libertação de enzimas
proteoliticas...) com formação de fibrina e necrose fibrinoide do interstício,
é um evento, potencialmente ameaçador de vida que, após episódios repetidos,
poderá levar a fibrose pulmonar. Pode ser maciça e manifesta-se habitualmente
por anemia, hemoptises, infiltados alveolares na radiografia torácica e, se
grave, por insuficiência respiratória hipoxémica. A glomerulonefrite pode
também ser rara com prodromos frustes. (Quadro II)
Quadro II' Manifestações sistémicas das vasculites*
Qualquer criança com anemia e infiltados pulmonares deve ser suspeita de ter
hemorragia alveolar. Na pele devem procurar-se sinais de vasculite: purpura
palpável, eritema nodoso, ulcerações, hemorragias subungueais; no nariz,
orelhas e naso/orofaringe sinais de hemorragia ou granulomas. No sedimento
urinário avaliar a presença de proteinúria, hematúria e cilindros.
O estudo imunológico com pesquisa de anticorpos (Ac´s) é fundamental no
diagnóstico das vasculites de pequenos vasos. O diagnóstico de Sindrome de
Goodpasture (SG) assenta na presença de Ac´s anti membrana basal glomerular;
enquanto a GW, PM e outras vasculites se associam à presença de anticorpos
anti-citoplasma de neutrófilos (ANCA). A determinação da ANCA por
Imunofluorescência indirecta (IIF) deve ser complementada por técnicas de ELISA
(Enzyme-Linked Immunosorbent Assay - Ensaio de Imunoabsorção Ligado a Enzima),
já que a positividade por IIF é inespecífica, podendo ocorrer noutras
patologias: Lupus eritematoso sistémico (LES), Artrite Idiopática Juvenil
(AIJ), etc. O teste de ELISA permite a diferenciação de c-ANCA ou PR3-ANCA e p-
ANCA ou MPO-ANCA. Os ANA e Factor Reumatoide (FR) podem ser positivos nas
vasculites primárias, no entanto títulos elevados associados à presença de Ac´s
específicos (dsDNA, Anti-RNP, anti-JO-1,etc) podem identificar uma doença
reumática subjacente. A determinação da IgE é importante quando se coloca a
hipótese de CSS.
A radiografia torácica ou TC (tomografia computorizada) podem evidenciar
alterações ainda antes de manifestações clínicas significativas; estas
alterações são geralmente inespecíficas. Na suspeita de HAD a identificação de
cavidades, nódulos ou padrão difuso em vidro despolido deve colocar a suspeita
de vasculite.
A broncofibroscopia deve ser ponderada quando a clínica e achados radiológicos,
deixam dúvidas entre hemorragia versusinfecção.
A realização de biópsia pulmonar raramente será necessária na presença de
outras alterações sistémicas, já que o risco será menor se efectuada biópsia
cutânea ou renal. Já nas doenças auto-imunes sistémicas a doença pulmonar
crónica pode ser a primeira manifestação e assim os achados histológicos
poderão ser importantes para confirmar achados de vasculite ou procurar outras
causas de HAD.
Os síndromes pulmão-rim resultam das vasculites de pequenos vasos, estando
habitualmente associados a componente inflamatório. São raros, mas exigem um
elevado índice de suspeição, já que o seu reconhecimento permite instituir
tratamento anti-inflamatório que é life-saving. (Quadro III)
Quadro III- Achados clínicos e serológicos em doentes com síndromes de pulmão-
rim*
A Purpura de Henoch-Schonlein (PHS)é a mais frequente vasculite de pequenos
vasos (incidência de 10-14/100000) e a que menos se associa a manifestações
pulmonares; apresenta-se com pápulas eritematosas, seguida de púrpura palpável,
não trombocitopenica nos membros inferiores, tronco e face. Há envolvimento
renal em 60% casos. (Quadro IV)
Quadro IV' Critérios de classificação de Purpura Henoch-Schönlein*
A hemorragia pulmonar é secundária à disrupção alveolo-capilar pelos complexos
imunes circulantes. A HAD e a pneumonite intersticial são raras; Após o
diagnóstico de PHS alguns doentes tem manifestações pulmonares ligeiras como
tosse, que pode ser hemoptoica ou crepitações na auscultação pulmonar, mas pode
haver HAD suficiente para necessitar de Ventilação mecânica e transfusão de
hemáceas. O tratamento pode requerer, para além de corticoterapia (Cct), a
utilização de ciclofosfamida, nos casos de hemorragia grave.
A hemorragia alveolar difusa (HAD) pode ocorrer na Purpura de Henoch Schonlein
(PHS), no Sindrome de Goodpasture (SG), vasculite crioglubinémica (VC) e outras
colagenoses.
A oclusão da artéria pulmonar devido a trombose e aneurismas arteriais
pulmonares são complicações graves da Doença de Beçhet (DB).
A Granulomatose de Wegener (GW)caracteriza-se pela tríade de inflamação
granulomatosa das vias aéreas altas e baixas, vasculite necrotizante e PR3-
ANCA; é rara na criança, que frequentemente apresenta febre, artralgias ou
artrite e exantemas cutâneos ou úlceras. As manifestações cutâneas podem
preceder em meses outras manifestações.
O atingimento respiratório é amplo: rinorreia (purulenta/sanguinolenta), secura
nasal, epistaxis, sinusite, otite, nariz em sela por perfuração do septo nasal;
tosse, hemoptise, dispneia, dor torácica (pleurítica); estridor por estenose
subglótica ou traqueobrônquica pode ser o sinal de apresentação. A hemorragia
alveolar é rara, mas pode ser maciça; o atingimento renal quando surge requer
tratamento agressivo para evitar evolução para insuficiência renal terminal.
A doença pulmonar desenvolve-se em cerca de 75% das crianças com GW; um terço
das alterações radiológicas nas crianças com GW, não se associa a sintomas
pulmonares; nódulos e massas pulmonares, solitários ou múltiplos, são os
achados mais frequentes na radiografia e TAC torácicos. (Quadro V)
Quadro V' Critérios de classificação para Granulomatose de Wegener*
Os testes laboratoriais são inespecíficos na GW, excepto PR3-ANCA. Se clínica
sugestiva, o PR3-ANCA tem valor preditivo positivo de 99% e pode ser
dispensável o diagnóstico histológico para instituir tratamento.
A Poliangeite microscópica (PM)é uma vasculite necrotizante dos pequenos vasos,
não granulomatosa e sempre associada a glomerulonefrite segmentar e focal. A
sua incidência é de 1:100.00 e há escassos casos relatados na Pediatria. A
hemorragia alveolar difusa (HAD), expressa por hemoptises, dificuldade
respiratória e anemia, devida à capilarite alveolar, ocorre em 1/3 dos doentes
e é a manifestação mais frequente do envolvimento pulmonar. A HAD pode ser
subclinical, devendo suspeitar-se na presença de infiltrados alveolares
bilaterais de novo, na radiografia torácica, associados à descida no valor de
hemoglobina. Verificam-se grandes atrasos no diagnóstico pela inespecificidade
dos sintomas: febre, perda ponderal, mialgias, artralgias; a hemorragia
alveolar pode surgir isoladamente; a fibrose pulmonar intersticial pode
preceder em anos a vasculite pulmonar e ser a primeira manifestação de PM.
O seu diagnóstico serológico é mais difícil do que na GW. (Quadro VI)
Quadro VI' Distribuição da Serologia ANCA na GW e na PM*
O tratamentodas vasculites ANCA+ (GW e MPA), desconhecida a sua etiologia, visa
actualmente, a indução da remissão. As estratégias terapêuticas dependendo do
estadio clínico. (Quadro VII)
Quadro VII' Definição dos estadios da doença nas vasculites ANCA associadas, de
acordo com o EULAR*
A corticoterapia (Cct) sistémica e a ciclofosfamida são a base terapêutica para
a indução da remissão na doença sistémica (tal como na capilarite pulmonar),
podendo ter de se fazer recurso da plasmaferese ou de Ac´s monoclonais
(Rituximab) nas vasculites refractárias. Há evidência para uso de terapêutica
de manutenção (Metotrexato, Azatioprina, Micofenolato de Mofetil) em conjunto
com a Cct na GW e na PM. O advento das terapias biológicas traz esperança para
melhor controle destas entidades. As infecções respiratórias continuam a ser um
problema major nos doentes com vasculites sob imunossupressão intensiva,
incluindo uso de agentes biológicos. A profilaxia da infecção por Pneumocistis
jirovecciparece ser eficaz nos doentes sob ciclofosfamida. (Quadro VIII)
Quadro VIII' EUVAS ' Classificação da gravidade das doenças e opções de
tratamento*
O Síndrome de Churg-Strauss (SCS)ou angeíte granulomatosa alérgica é um
síndrome pauciimune pulmão-rim. Define-se por doença granulomatosa eosinofílica
ANCA-associada, que envolve o pulmão e seios perinasais. O sintoma cardinal é a
asma, frequentemente precedida de rinite alérgica, frequentemente complicada de
polipose nasal e sinusite.
A tríade infiltração tecidular eosinofilica, vasculite necrotizante e
granulomas extravasculares, raramente ocorre em simultâneo.
O SCS é raro, sendo desconhecida a sua incidência e prevalência em Pediatria.
Para o diagnóstico requerem-se quatro dos seis critérios (sensibilidade 85%,
especificidade>99%). (Quadro IX)
Quadro IX' Critérios de classificação do Síndrome de Churg-Strauss*
A apresentação clínica do CSS ocorre por fases, que podem distanciar-se em
muitos anos: 1ª fase ou prodrómica com rinite e asma, 2ª fase eosinofilia
periférica e tecidular e 3ª fase com vasculite sistémica. Na fase vasculítica
pode ocorrer miocardite e pericardite, verificando-se tamponamento cardiaco em
cerca de metade dos doentes. As manifestações cutâneas podem atingir 75%
doentes (purpura, nódulos subcutâneos). O atingimento renal é menos grave e
menos frequente na WG.
Infiltrados pulmonares alveolares focais e transitórios, são o achado
radiográfico mais comum, sendo menos frequente a HAD. Na 2º fase da doença pode
haver padrão de pneumonite eosinofilica crónica.
Os exames laboratoriais evidenciam eosinofilia e elevação da velocidade de
sedimentação, podendo ser MPO-ANCA positivo.
As crianças são mais frequentemente ANCA negativo. Pode ser necessária a
biópsia pulmonar se o pulmão é o único órgão envolvido, sendo que a biópsia
transbronquica pode não ser produtiva, tendo de equacionar-se biopsia por
video-toracoscopia.
O tratamento assenta na Cct, podendo ser considerados outros imunossupressores
nos casos refractários.
As vasculites pulmonares são raras e condições ameaçadores de vida. Se
reconhecidas, podem ser tratadas com sucesso.