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EuPTCVHe0872-81782006000100005

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National varietyEu
Year2006
SourceScielo

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HEMORRAGIA DIGESTIVA POR FÍSTULA AORTO-ENTÉRICA: 3 CASOS

INTRODUÇÃO A Fístula Aorto-Entérica (FAE) é uma comunicação entre a aorta abdominal e uma ansa intestinal.

Trata-se de uma entidade rara cuja incidência varia entre 0,6 e 2,4% em indivíduos sujeitos a cirurgia da aorta abdominal (1). Classifica-se como primária se não existir cirurgia aórtica prévia; ou secundária, se ocorrer após procedimento cirúrgico, sendo esta última variante a mais frequente (2).

O local mais comum para a ocorrência de FAE é o duodeno (78%), particularmente as suas terceiras e quartas porções, embora se possa observar o fenómeno a outros níveis do tubo digestivo tais como o jejuno, íleo, cólon, estômago, apêndice ileo-cecal e recto (3).

Condições responsáveis pelo desenvolvimento de FAE primária incluem os aneurismas da aorta abdominal, a aortite infecciosa (Sífilis, Tuberculose), os traumatismos abdominais, úlcera péptica perfurante, invasão tumoral e radioterapia (3). As condições responsáveis pela FAE secundária apresentam um denominador comum: cirurgia aórtica reconstrutiva prévia, nomeadamente a cirurgia de reparação de aneurismas da aorta abdominal e os by-pass aorto-aórtico, aorto-ilíaco e aorto-femural.

A FAE encontra-se associada a altas taxas de mortalidade, sendo esta de aproximadamente 100% nos casos não diagnosticados e cerca de 50% após correcção cirúrgica (1,4). De salientar que a FAE secundária pode manifestar-se meses ou mesmo anos após a cirurgia aórtica.

A apresentação clínica mais frequente é a hemorragia digestiva, sob a forma de hematemeses, melenas ou hematoquézia, podendo surgir como uma hemorragia maciça com repercussão hemodinâmica e choque hipovolémico ou como uma hemorragia de pequena magnitude auto-limitada a que se pode seguir uma hemorragia de grande magnitude.

Outra forma de apresentação é um quadro séptico no contexto de uma infecção da endoprótese, sendo os agentes mais frequentemente implicados (em 75% dos casos) o Staphylococcus aureus, Staphylococcus epider- midis e a Escherichia coli.

Cerca de 50% dos pacientes apresentam dor abdominal ou lombar, mal-estar geral e febre. Raramente é possível palpar uma massa abdominal ou detectar um sopro abdominal.

O diagnóstico, por ser de exclusão, requer um elevado índice de suspeição e deve, nos doentes hemodinâmicamente estáveis, incluir a endoscopia digestiva alta e baixa, se a primeira for inconclusiva. A endoscopia alta deve atingir a porção de duodeno tão distal quanto possível pois é nesses segmentos que se verifica mais frequentemente a ocorrência de FAE (5). A enteroscopia pode permitir a observação de uma área mais extensa aumentando a probabilidade de detectar defeitos de mucosa, úlceras ou coágulos aderentes que correspondam ao local da FAE. A TC abdominal contrastada em fase arterial constitui uma mais-valia em termos diagnósticos (6), revelando-se superior à informação fornecida pela angiografia.

A laparotomia exploradora está indicada nos casos de hemorragia maciça ou nos casos em que após um estudo exaustivo com os exames convencionais indicados para esta condição não se identifica a origem da hemorragia.

O tratamento da FAE é cirúrgico exigindo uma reconstrução vascular extensa baseada em novas técnicas que utilizam suturas não-absorvíveis cobertas por peritoneo bem como utilização de próteses endovasculares, podendo requerer antibioterapia se houver infecção comprovada (7,8).

CASO CLÍNICO I J.C.S., sexo masculino, 64 anos, recorreu ao Hospital Distrital de Faro em Junho de 2002 na sequência de hematemeses e melenas com 24 horas de evolução, acompanhadas de um episódio de lipotímia. Neste intervalo de tempo negava dor abdominal, precordialgia, dispneia e "alterações do trânsito intestinal". Negava consumo de AINE's e terapêutica com agentes anticoagulantes.

O doente referia a realização de by-pass aorto-bifemural por aneurisma da aorta, intervenção realizada em 1998; e ainda HTA controlada com antagonistas dos canais de cálcio.

Objectivamente o doente apresentava-se consciente e colaborante, com palidez de pele e mucosas, hemodinâmicamente estável, sem alterações na auscultação cardio-pulmonar, bem como no exame abdominal, verificando-se a existência de melenas no toque rectal.

Analiticamente destacava-se anemia normocrómica normocítica (Hb: 10,5 g/dL - N: 12,0 - 15,0 g/dL) e leucocitose com neutrofilia (21,000/ L - N: 4000-11,000 - com 86% de PMN). O valor do azoto ureico era normal (8 mg/dL - N: 4- 16 mg/dL).

Foi submetido a endoscopia digestiva alta que para além de constatar a existência de sangue digerido e coágulos no lúmen gástrico, verificou uma lesão na porção do duodeno na qual se observava um coágulo aderente e, na sua porção mais inferior um segmento de uma malha metálica - Figura 1.

Face a este achado endoscópico, tendo em conta os antecedentes do paciente, decidiu-se transferir o mesmo para o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria por suspeita da existência de FAE.

Neste serviço o doente foi submetido a laparotomia exploradora que verificou existir uma fístula entre a aorta abdominal e a porção do duodeno, corrigida no mesmo tempo operatório. O doente iniciou alimentação entérica no 12º dia do pós-operatório e ao 16º dia apresentava restabelecimento do trânsito intestinal.

CASO CLÍNICO II A.C.S., sexo masculino, 59 anos, recorreu ao Hospital Distrital de Faro em Julho de 2002 por hematemeses e melenas com 24 horas de evolução. Sem qualquer sintomatologia acompanhante.

O doente negava o consumo de AINE's e terapêutica com agentes anticoagulantes.

Relativamente aos seus antecedentes o doente refere a realização de by-pass aorto-bifemural por doença aterosclerótica em Fevereiro de 2000.

Objectivamente o doente apresentava-se consciente e colaborante, hidratado, com pele e mucosas descoradas, taquicardico com tensão arterial dentro dos limites da normalidade, sem alterações na auscultação cardíaca e pulmonar, bem como no exame abdominal. Melenas no toque rectal.

Analiticamente destacava-se anemia normocrómica normocítica (Hb: 10,8 g/dL- N: 12,0 - 15,0 g/dL ) e leucocitose (21.000/ L- N: 4000-11.000). Apresentava elevação do azoto ureico (28 mg/dL - N: 4- 16 mg/dL).

O paciente efectuou endoscopia digestiva alta que identificou ao nível da transição entre as e porções do duodeno uma lesão escavada com um coágulo escuro aderente com pulsatilidade.

Perante este achado endoscópico e tendo em linha de conta os antecedentes cirúrgicos do paciente decidiu-se transferir o mesmo para o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Marta por suspeita de FAE.

nesta unidade hospitalar o doente faleceu após nova hemorragia de grande magnitude, quando tinha laparotomia exploradora programada.

CASO CLÍNICO III F.S.S.L., sexo masculino, 79 anos, enviado ao Serviço de Urgência do Hospital Distrital de Faro em Agosto de 2002 por hematoquézias de sangue vivo com 4 dias de evolução. Sem qualquer sintomatologia acompanhante.

Em relação aos antecedentes o doente refere cirurgia de by-pass aorto-aórtico por aneurisma da aorta abdominal em 2001, cardiopatia isquémica e Hipertensão Arterial, encontrando-se medicado com Ácido Acetilsalicílico (100 mg/dia), Enalapril e Nitratos transdérmicos.

Objectivamente o doente apresentava-se consciente e colaborante, hidratado, com pele e mucosas descoradas, hemodinâmicamente estável, sem alterações na auscultação cardíaca e pulmonar, verificando-se dor à palpação profunda do flanco e fossa ilíaca esquerdos, mas sem sinais sugestivos de irritação peritoneal. O toque rectal identificou a presença de coágulos de sangue escuro.

Analiticamente destacava-se anemia normocrómica normocítica (Hb: 10,8 g/dL - N: 12,0 - 15,0 g/dL) e elevação do azoto ureico (31 mg/dL - N: 4- 16 mg/dL).

Efectuou videosigmoidoscopia com progressão até aos 30 cm, observando-se sangue vivo em toda a extensão observada. Subsequentemente foi realizada colonoscopia com progressão até ao cego, mas este exame revelou-se inconclusivo quanto à origem da hemorragia devido à existência de sangue vivo no lúmen, repetindose ulteriormente a colonoscopia que, uma vez mais, não identificou a origem da hemorragia apesar da preparação adequada. Foi efectuado um Rx do intestino delgado que não evidenciou qualquer alteração. Também foi realizada endoscopia digestiva alta cujas alterações observadas foram algumas lesões petequiais no antro gástrico, mas sem estigmas de hemorragia ou sangue no lúmen.

No decurso do internamento o doente teve um episódio de tonturas e hipersudorese acompanhado de palidez e hipotensão (106/38 mm Hg), sem que se objectivassem perdas hemáticas. Analíticamente registou-se um decréscimo do valor da hemoglobina (6,7 g/dL) tendo-se procedido ao suporte transfusional com 4 unidades de concentrado de eritrócitos, verificando-se uma melhoria clínica e laboratorial.

Tendo em conta os antecedentes do doente, nomeadamente a cirurgia aorto-abdominal, o doente foi transferido para o Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Marta com suspeita de FAE.

Naquela unidade hospitalar o doente foi submetido a Angio-TC que foi inconclusiva, optando-se por efectuar uma Laparotomia Exploradora no decurso da qual foi identificada uma fístula entre a aorta abdominal e uma ansa jejunal, tendo-se procedido à correcção da mesma no mesmo tempo operatório. Sem complicações no pósoperatório.

DISCUSSÃO O denominador comum a estes três casos é a sua forma de apresentação: hemorragia digestiva, sob forma de hematemeses e melenas nos dois primeiros casos e hematoquézias no terceiro, sem repercussão hemodinâmica significativa.

Em todos casos impunha-se a presunção clínica, ou pelo menos a suspeita da existência de FAE, tendo em conta o antecedente cirúrgico comum a todos eles: cirurgia da aorta abdominal. A endoscopia digestiva alta veio reforçar esta suspeita pelos locais e características das lesões encontradas em dois deles.

Mesmo considerando este contexto para o qual a cirurgia é o único rumo terapêutico a seguir, a rentabilidade da endoscopia digestiva assenta em dois aspectos relevantes: por um lado excluir outras causas de hemorragia digestiva e, por outro, tentar localizar a origem da hemorragia para orientação cirúrgica.

Nestes três casos clínicos a opção de transferir os doentes para unidades hospitalares com Serviço de Cirurgia Vascular fundamentou-se por um lado na suspeita clínica, reforçada nos dois primeiros casos pelos achados endoscópicos e por outro, para complementar a investigação por outros meios diagnósticos, permitindo uma mais rápida intervenção cirúrgica após confirmado o diagnóstico.

A celeridade da actuação terapêutica nos casos de FAE é de fulcral importância, principalmente após um primeiro episódio de hemorragia, muitas vezes seguido de um segundo episódio de hemorragia cataclísmica e normalmente fatal, evento que, segundo as evidências terá ocorrido com o paciente do Caso Clínico II.

No que diz respeito ao Caso Clínico III pode-se considerar adequada a opção da Laparotomia Exploradora após os estudos endoscópicos e imagiológicos terem sido inconclusivos, mantendo-se a suspeita de FAE como origem da hemorragia.

Mesmo nos casos submetidos a cirurgia correctiva, a mortalidade nas FAE é de 50%.

CONCLUSÃO A FAE consiste numa comunicação directa entre a aorta abdominal e o tubo digestivo. A forma mais prevalente é a secundária como complicação de cirurgia da aorta abdominal, podendo ocorrer no período pós-operatório imediato (3 semanas) ou ocorrer meses ou anos mais tarde após a cirurgia. Está documentado um caso de FAO secundária a cirurgia 14 anos após a intervenção (7,9).

Clinicamente a apresentação mais usual é sob a forma de uma hemorragia digestiva alta ou baixa de acordo com o local da fístula, sendo que o mais frequente é nas e porções do duodeno. A hemorragia pode surgir como um episódio auto-limitado, sem repercussão hemodinâmica, a que, não raro, se segue um segundo episódio de grandes proporções, quase invariavelmente fatal; podendo o fenómeno inaugural apresentar estas características ad initio.

A chave diagnóstica é a suspeita clínica, particularmente se estivermos perante um paciente com hemorragia digestiva e com antecedentes de cirurgia da aorta abdominal (7,10).

A endoscopia digestiva é o procedimento de escolha para tentar corroborar o diagnóstico, bem como para excluir outras causas de hemorragia digestiva. A TC abdominal com contraste em fase arterial é o melhor método de imagem para um diagnóstico acurado.

A laparotomia exploradora impõe-se como medida a seguir nos casos em que hemorragia severa ou, de forma mais controversa, naqueles em que a suspeita persiste, a hemorragia se mantém e estão esgotados outros métodos de diagnóstico.

O tratamento é estritamente cirúrgico. A mortalidade é elevada sendo de 100% nos casos não tratados e de aproximadamente 50% nos casos tratados (3).


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