Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTCVHe0872-81782007000500003

EuPTCVHe0872-81782007000500003

National varietyEu
Year2007
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

COLANGITE ESCLEROSANTE PRIMÁRIA: UMA FORMA DE APRESENTAÇÃO POTENCIALMENTE FATAL

INTRODUÇÃO A colangite esclerosante primária (CEP) é uma doença colestática crónica de etiologia desconhecida, caracterizada por inflamação, esclerose e obliteração progressiva das vias biliares (VB) extrahepáticas e/ou intrahepáticas (1,2).

Embora tenham sido propostos diversos factores na origem da lesão crónica/recorrente das VB, nenhuma relação de causalidade foi comprovada. As evidências actuais continuam a sugerir um envolvimento do sistema imunitário na sua patogénese (2-4).

A CEP é rara, com uma prevalência 1-6/100.000, sendo dois terços dos doentes homens (1,3). O diagnóstico é mais frequente entre a terceira e a quinta décadas de vida (idade média na altura do diagnóstico: 39 anos) (1,3). Em cerca de 75% dos casos, a CEP é acompanhada de doença inflamatória intestinal (DII). Destes doentes, 87% apresentam Colite Ulcerosa (CU) e apenas 13% têm doença de Crohn (1,3).

Na maioria das vezes, a CEP é diagnosticada numa fase assintomática, na sequência da investigação duma colestase bioquímica (1,2).

O processo inflamatório estenosante e a colestase crónica predispõem a episódios de colangite aguda, uma complicação bem estabelecida desta doença.

Raramente, a colangite aguda pode constituir a manifestação inicial da CEP (1).

O exame de primeira linha para o diagnóstico da CEP é a colangiografia. Na maioria dos casos, a histologia hepática revela aspectos compatíveis, mas não específicos, do diagnóstico, sendo essencial para o estadiamento e follow-up (1,3). O achado histológico patognomónico da CEP a lesão em bolbo de cebola, é raramente encontrado (1,3).

Habitualmente, a doença é silenciosa, progredindo para cirrose, hipertensão portal e insuficiência hepática (1,3,4). O prognóstico é desfavorável, não existindo actualmente qualquer terapêutica que comprovadamente altere a sua evolução (1,2,3,5). Apesar da raridade desta doença, constitui uma das indicações mais frequentes para transplante hepático nos EUA a única medida que aumenta a sobrevida destes doentes (1,4,5).

Os autores descrevem o caso clínico de um homem de 67 anos, previamente saudável, que teve como forma de manifestação inicial da CEP, um quadro de colangite aguda complicado de falência multi-orgânica. São integrados os dados clínicos, laboratoriais, imagiológicos e histológicos que conduziram ao diagnóstico da CEP. Salientam-se alguns aspectos particulares desta forma rara de apresentação clínica, como o achado laboratorial duma elevação significativa do CA19.9 associada à colangite, relembrando que os marcadores tumorais nem sempre marcam um tumor. São revistos os factores a ter em conta no prognóstico e seguimento destes doentes.

CASO CLÍNICO Um homem de 67 anos, sem antecedentes pessoais relevantes, iniciou, 4 dias antes do internamento, um quadro clínico de febre (picos diários > 38,5ºC), com calafrios e prostração. Referia ainda dor no hipocôndrio direito, com flutuações de intensidade, náuseas e vómitos. Por agravamento clínico, recorreu ao hospital. Objectivamente, apresentava-se prostrado; febril (38,5ºC); escleróticas ictéricas; abdómen depressível, doloroso à palpação profunda do hipocôndrio e flanco direitos, sem dor à descompressão, com bordo hepático palpável 4 cm abaixo do rebordo costal direito, de consistência dura e superfície irregular. Analiticamente, apresentava: leucocitose (16.000x106/L) com neutrofilia (94%), trombocitopenia (95000x106/L), PCR elevada (148 mg/L), aumento das transaminases (ALT 170 UI/L; AST 179 UI/L) e dos parâmetros de colestase (FA 265 UI/L; GGT 277 UI/L), hiperbilirrubinemia (total 2,9 mg/dl; directa 2,3 mg/dl), e hipoalbuminemia (2,5 g/dl), com provas de coagulação normais.

Ecograficamente, apresentava: hepatomegália com contornos bosselados e ecoestrutura heterogénea, com padrão micronodular; VB não dilatadas; vesícula biliar com parede discretamente espessada, com sludge biliar, sem litíase.

No início do internamento, verificou-se um agravamento da prostração, com períodos de agitação psicomotora e insuficiência respiratória parcial progressiva. Analiticamente, registou-se descida da hemoglobina, agravamento da trombocitopenia, elevação dos parâmetros inflamatórios, de colestase e da creatinina plasmática. Foram realizadas hemoculturas e iniciada antibioterapia empírica com ceftriaxone e gentamicina.

Adicionalmente, realizaram-se os seguintes exames: - TC abdomino-pélvica: hepatomegália heterogénea sugestiva de esteatose geográfica, sem lesões focais captantes de contraste; vesícula biliar distendida; VB não ectasiadas; sem outras alterações; - Marcadores tumorais: CA19.9 aumentado 1615,0 UI/ml (normal <37,0 UI/ml); CEA e PSA normais.

Isolou-se Escherichia Coli em duas hemoculturas, sensível à antibioterapia prescrita.

Verificou-se melhoria clínica progressiva, com normalização do estado de consciência, remissão da febre e da dor abdominal. Mantinha hepatomegália, indolor. Registou-se igualmente melhoria analítica, mantendo apenas persistentemente alterados os parâmetros de colestase (FA e GGT > 300 UI/L) e hiperbilirrubinemia ligeira (bilirrubina total 1,2-1,5 mg/dl). Assistiu-se a normalização lenta do CA19.9. Por persistência da colestase bioquímica, repetiu-se ecografia abdominal, mantendo aspectos sugestivos de doença hepática crónica (DHC), sem dilatação das VB. As serologias para as hepatites virais (A, B, C e ainda CMV), doseamentos da cinética do ferro e cobre e a pesquisa de auto-anticorpos (ANA, AMA, pANCAs, SMA) foram negativas.

Realizou-se colangiografia por ressonância magnética (CRM), que evidenciou uma nítida irregularidade das VB intrahepáticas, com pequenas ectasias saculares e estenoses segmentares, e estreitamento difuso, irregular, das VB extrahepáticas (Figuras 1a e 1b). Foi realizada biopsia hepática, que revelou alterações portais e periportais, com proliferação ductular, ductopenia e alterações degenerativas do epitélio dos ductos biliares, infiltrados inflamatórios mistos e fibrose, quer periductular, quer em inicio de formação de septos e estendendo-se ao parênquima hepático envolvente (Figuras 2a e 2b).

Não apresentando evidência de causas secundárias de colangite esclerosante, foi diagnosticada CEP e iniciada medicação com ácido ursodesoxicólico (AUDC) (15mg/Kg/dia), sendo referenciado à consulta de Gastrenterologia.

Nos primeiros 2 anos após o diagnóstico de CEP, o doente manteve-se assintomático, com normalização da bilirrubina e descida dos parâmetros de colestase (mantendo todavia GGT 200-300 UI/L) e sem alterações na colonoscopia. As biópsias do recto evidenciaram discretas alterações da arquitectura da mucosa, com infiltrados mononucleados, agregado linfóide reactivo e esboço de uma criptite superficial proctite inespecífica. No último ano, registaram-se 2 episódios auto-limitados de prurido, com astenia e icterícia discreta, que coincidiram com a suspensão da medicação com AUDC (por iniciativa do doente). Apresentou ainda elevação ligeira do tempo de protrombina (16,4/12,5 seg.), que reverteu após administração parentérica de vitamina K. Não se registaram até ao momento outras complicações da CEP.

DISCUSSÃO Perante o quadro clínico de febre e alteração do estado de consciência, com evidente compromisso respiratório, renal e hematológico, sinais de lesão hepatocelular e colestase, colocou-se a hipótese de sépsis. Considerando também as alterações ecográficas hepáticas, valorizou-se a hipótese de se tratar dum quadro infeccioso sistémico num indivíduo com doença hepática subjacente, anteriormente assintomático.

A existência de sludge biliar, no contexto deste quadro de dor abdominal, febre e icterícia, é muito sugestivo de uma obstrução biliar subjacente, não identificada na ecografia e TC realizadas. A ausência de dilatação das VB num possível contexto de colangite, poderia estar em relação com a presença dum parênquima hepático menos complacente, cirrótico ou infiltrado (6). No entanto, esta hipótese não foi na altura valorizada, não tendo sido realizada CPRE de urgência. A estase biliar e a infecção bacteriana secundária, com evolução para um quadro de sépsis (com a E. coli identificada nas hemoculturas), justificariam a gravidade da apresentação clínica, embora com posterior desobstrução biliar espontânea e resolução da icterícia. Ao contrário dos critérios de diagnóstico da CEP propostos em 1960 (7), em que a presença de colelitíase excluia este diagnóstico, a litíase e a microlitíase biliar são actualmente reconhecidas como uma complicação da CEP, surgindo em cerca de 25% dos casos (8). No entanto, os episódios obstrutivos (geralmente em zonas de estenose biliar) habitualmente condicionam sintomas ligeiros a moderados, são auto-limitados e as hemoculturas são raramente positivas (1). Na literatura, a colangite aguda é descrita como forma de apresentação da CEP em apenas 10 a 15% dos casos (1,9).

A investigação etiológica de uma possível DHC subjacente foi inicialmente negativa, excluindo-se hábitos alcoólicos, e as causas virais (hepatites C e B crónicas), metabólicas (hemosiderose, doença de Wilson) e auto-imunes (hepatite auto-imune, cirrose biliar primária) mais frequentes.

Apesar das alterações ecográficas hepáticas sugerirem DHC, não se podia excluir outra doença com envolvimento hepático, como a metastização por neoplasia oculta. A elevação significativa do CA19.9 (> 1000UI/ml) favorecia esta hipótese. No entanto, a normalização posterior do CA19.9, acompanhando a melhoria clínica progressiva, sugere que esta elevação estava relacionada com a colangite aguda, uma associação estabelecida (10).

A persistência de colestase bioquímica após melhoria clínica, sem dilatação das VB, associada a aspectos analíticos e ecográficos de DHC, conduziram à suspeita de colangite esclerosante, e à necessidade de realizar uma colangiografia. Na CEP, a esclerose das VB obstruídas impede a sua dilatação, e achados normais na ecografia ou TC não excluem o seu diagnóstico (2). Assim, o exame de primeira linha para o diagnóstico é a colangiografia (1,2,11).

Após a resolução do quadro de colangite, e perante a renitência do doente em realizar uma CPRE, optou-se por uma CRM, que apresenta uma acuidade diagnóstica equiparável (11). Os achados da CRM foram característicos de colangite esclerosante (Figuras 1a e 1b). A causa mais frequente destes aspectos colangiográficos é a CEP, embora seja mandatório excluir causas secundárias (2). Na história deste doente, não se identificaram potenciais causas de colangite esclerosante secundária, nomeadamente dados clínicos ou imagiológicos sugestivos de uma obstrução prolongada da VBP (ex.: estenose pós-cirúrgica, coledocolitíase extensa, pancreatite crónica, fibrose quística, infecções fúngicas ou colangite piogénica recorrente), história de administração de tóxicos (ex.: floxuridina), ou causas de lesão vascular ou neoplásica da VBP.

A histologia hepática foi compatível com o diagnóstico de CEP, evidenciando algum grau de fibrose, com extensão periportal (estadio II, segundo o sistema de estadiamento habitualmente usado)(1,2) (Figuras 2a e 2b). Na CEP, o estadiamento histológico constitui um importante factor prognóstico e ajuda a definir o momento apropriado para o transplante hepático (1,3).

Neste doente, a preservação da função hepática, a ausência de hipertensão portal e o estadio histológico ainda inicial da doença, constituem factores favoráveis ao prognóstico. A apresentação da doença como colangite aguda não parece influenciar o prognóstico, sendo os achados na histologia hepática globalmente comparáveis aos da população de doentes ainda assintomáticos (1). No entanto, na CEP, a lesão hepática é invariavelmente progressiva e o prognóstico reservado, com uma sobrevida média de cerca de 12 anos (sem transplante) (1-3).

Embora a terapêutica com AUDC não atrase comprovadamente a progressão nem reduza as complicações da CEP, pode melhorar a função hepática (3-5). O benefício deste fármaco nos sintomas e nos achados histológicos hepáticos é controverso (5). Dois estudos recentes (12,13) sugeriram que o AUDC em elevada dose (20mg/Kg/dia) pode atrasar a progressão da fibrose hepática e dos achados colangiográficos.

Neste caso, as biopsias obtidas na colonoscopia não evidenciaram uma morfologia diagnóstica de DII. Apesar da íntima associação entre a CEP e a CU (associação major), o diagnóstico de CEP pode ser feito anos antes do aparecimento da colite (2,14). Num estudo recente que incluiu 33 doentes com CEP (14), daqueles que apresentavam simultaneamente CU, 94% manifestou inicialmente apenas a CEP.

Muitos doentes com CEP sem manifestações clínicas sugestivas de DII, apresentam achados colonoscópicos e/ou histológicos de colite, podendo esta fase subclínica durar vários anos (15). A prevalência de CU nos doentes com CEP pode estar subestimada, podendo eventualmente atingir os 90% quando são realizadas por rotina biópsias do recto e da sigmoideia (15). Neste doente, o aspecto endoscópico da mucosa rectal era normal e a histologia revelou apenas uma proctite inespecífica. Dada a probabilidade de evolução posterior para DII e o risco de carcinoma colo-rectal associado (superior ao da DII isolada) (15), a vigilância colonoscopia é obrigatória, embora os intervalos não estejam definidos.

Neste doente não havia igualmente evidência de outras doenças que apresentam uma associação minor com a CEP (2), nomeadamente: - outras doenças auto-imunes (como a diabetes mellitus tipo 1 e a doença de Graves - consideradas as duas mais frequentes; a artrite reumatóide; o lúpus; a anemia hemolítica auto-imune; ou o síndrome de Sjogren); - doenças sistémicas com fibrose (como a fibrose retroperitoneal ou a tiroidite de Riedel); - ou doenças infiltrativas (como a sarcoidose, a mastocitose sistémica ou a histiocitose X).

Na evolução clínica deste doente a longo-prazo, as flutuações dos parâmetros de colestase e, mais recentemente, os 2 episódios auto-limitados de prurido, fadiga e hiperbilirrubinémia moderada (que coincidiram com a suspensão do AUDC), estiveram provavelmente associados a episódios intermitentes de obstrução biliar por microlitíase e sludge em áreas de estenose. Outra consequência da colestase crónica terá sido a coagulopatia ligeira, que reverteu com a administração parentérica de vitamina K, mantendo-se a função hepática ainda conservada.


Download text