A Hepatite E existe em Portugal? Claro que sim
A Hepatite E existe em Portugal? Claro que sim
Rui Tato Marinho*
A hepatite E é uma das últimas hepatites E víricas em termos de alfabeto e
classicamente uma das mais esquecidas. Tem sido considerada como de pouca
relevância clínica e epidemiológica nos países ocidentais.
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Algo votada ao esquecimento nos curricula das Faculdades de Medicina, vindo a
seguir às hepatites mais importantes (nomeadamente a A, B, C) a informação
que lhe diz respeito tem acentado em meia dúzia de ideias feitas: é de
transmissão fecal-oral, logo semelhante à hepatite A, era uma das hepatites
ditas não-A, não-B a par da hepatite C; o vírus da hepatite E (VHE), também um
vírus RNA, tem sido responsável por algumas das grandes epidemias de hepatites
víricas, mas bem longe de nós, lá para o continente asiático, África e México.
Era referido também que não evoluiria para a cronicidade, em tudo semelhante à
hepatite A. O risco de complicações é, no entanto, mais elevado nas grávidas,
com evolução para hepatite fulminante em cerca de 20-25% dos casos. Além do
mais, não havia referência à vacina.
Os primeiros testes comercializados, há cerca de 15 anos, revelaram que afinal
a hepatite E poderia existir também no Mundo Ocidental. Estes testes tinham
alguns problemas de sensibilidade e especificidade.2,3 Os primeiros resultados
em Portugal seriam apresentados em 1994 no Congresso Nacional de
Gastrenterologia. Nesse estudo foram avaliados 360 soros, incluindo 50 alunos
da Faculdade de Medicina. Curiosamente, nos alunos a prevalência foi de 4% (2/
50). Os testes de primeira geração, em conjugação com a aparente raridade da
doença, não chegaram a entrar de forma clara na marcha diagnóstica, mesmo pela
maioria dos que se dedicam à hepatologia.
No entanto, nos últimos anos têm surgido algumas novidades relacionadas com a
hepatite E não só no que diz respeito à sero-epidemiologia, forma de
transmissão, como também história natural e vacinação.
Com efeito a hepatite E não está confinada aos continentes de maior risco.
Estudos recentes descrevem casos esporádicos de hepatite E em indivíduos de
países da Europa Ocidental, sem história de viagens a áreas endémicas. O
interessante estudo de Sara Folgado e colaboradores
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é exemplo deste facto. Foram seleccionados 237 indivíduos (152 doentes do
Departamento de Gastrenterologia e 85 dadores de sangue saudáveis) para
doseamento do anti-VHE total: 10 foram positivos para o anti-VHE (7 do grupo de
doentes ' 4,6% e 3 do grupo de dadores saudáveis ' 3,5%). Apenas dois dos sete
do primeiro grupo de doentes (20%) tinham história de viagens a países
endémicos. O teste empregue foi um teste imunoenzimático, já de terceira
geração. Neste estudo, alguns dos doentes que tinham o anti-VHE positivo eram
seguidos por cirrose hepática alcoólica. Desconhece-se em
pormenor a sua história epidemiológica, mas é de chamar a atenção para o facto
de que a hepatite E pode desencadear formas graves de descompensação neste
grupo de doentes. Na discussão, muito actual, do trabalho de Sara Folgado são
abordados alguns tópicos da maior pertinência, não só a questão da evolução
para a cronicidade,
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inclusivé cirrose hepática bem como a classificação da hepatite E como sendo
uma zoonose porcina. Será a hepatite suína, correspondente hepática da gripe
suína (H1N1)? Como se sabe, um dos países de elevada prevalência é o México, e
para as duas infecções, hepatite E e gripe A (suína). A hepatite E é
comprovadamente uma zoonose, sendo transmissível do porco para o Homem,
particularmente o genótipo 3. Curiosamente, os criadores de porcos e javalis
registam valores de positividade para o anti- VHE superiores à população em
geral.
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Nos porcos a hepatite E cursa habitualmente de forma assintomática.
Teve lugar recentemente em Antuérpia, em Março de 2009, uma importante reunião,
no âmbito dos encontros do grupo Viral Hepatitis Prevention Board hepatitis A
and E. Update on prevention and epidemiology. Nela estiveram presentes
epidemiologistas, virologistas, biólogos, intensivistas, especialistas em
vacinas e clínicos com larga experiência na hepatite E. Os estudos revelam que
a seroprevalência na Europa oscila entre 2-3% (Norte da França) e 16% (Sul da
França), e na hepatite aguda ronda os 6% de casos. A prevalência é superior
naqueles que lidam com porcos (11-55% na Holanda) mais elevado do que na
população geral. Nesta reunião foi debatida também a questão da vacina. Existem
dois laboratórios, com capacidade de a produzir, ambas por recombinação
genética. A vacinação consta de três doses. Algumas das comunicações estão
disponíveis no site
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.
Em conclusão, o estudo de Sara Folgado, vem demonstrar que:
À semelhança do que se tem encontrado nos países Europeus, incluindo os da
orla mediterrânica (Espanha,9 França, Itália, Holanda,
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Reino Unido
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), existem casos de hepatite E em Portugal. A hepatite E existe de forma
evidente nos países da Europa Ocidental.
Este estudo demonstrou que, em Portugal, país não endémico, 4,2% da
população estudada era seropositivapara o anti-VHE.
Nem sempre se encontra a presença dos factores epidemiológicos clássicos
(i.e. viagem a países endémicos). Os testes correntes, de 3ª geração, têm já
uma boa acuidade diagnóstica. Estão disponíveis em Portugal o anti-VHE total, o
IGM anti-VHE, o ARN VHE.
Existe vacina para a hepatite E, já testada no Homem, eficaz e segura. A vacina
não está ainda comercializada, pensamos que por dificuldades na viabilização
económica da sua produção.
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Outra das novidades mais recentes é o facto de que, no contexto de
imunossupressão (e.g transplantados), a hepatite E pode evoluir para a
cronicidade (hepatite crónica) e mesmo para cirrose hepática.