Doença Venooclusiva Inflamatória Mesentérica - Causa Rara de Isquémia
Intestinal
INTRODUÇÃO
A doença inflamatória venooclusiva é uma causa rara de isquemia mesentérica de
origem exclusivamente venosa, ou seja, caracteriza-se por inflamação e oclusão
do fluxo sanguíneo das veias e vénulas mesentéricas, na ausência de arterite
mesentérica ou vasculite extra-intestinal1-3. O diagnóstico clínico é difícil,
com sintomas que podem mimetizar doença inflamatória ou mesmo neoplasias,
nomeadamente quando ocasiona espessamento focal do cólon
2
. Os doentes mostram-se habitualmente refractários à terapêutica médica
conservadora, pelo que o tratamento cirúrgico é essencial
2,3
. O diagnóstico é geralmente estabelecido pelo estudo anatomo-patológico da
peça operatória. Os casos descritos na literatura cursaram com prognóstico
favorável, sendo rara a recorrência1.
A propósito desta entidade os autores descrevem o caso clínico de um doente com
quadro suboclusivo, cujo estudo complementar endoscópico e radiológico apontava
para possível neoplasia do cólon, pois apresentava estenose irregular e
segmentar do cólon sigmóide, cujas biópsias foram negativas para neoplasia. Foi
submetido a laparotomia exploradora, com ressecção do segmento cólico atingido,
tendo o estudo anatomopatológico revelado tratar-se de doença inflamatória
venooclusiva mesentérica. Discutem-se os principais aspectos da clínica,
patogénese e terapêutica da doença, baseados na literatura actual.
CASO CLÍNICO
Doente de 69 anos, sexo masculino, raça caucasiana, admitido no Serviço de
Urgência por queixas de dejecções com muco e sangue vivo em quantidade
moderada. Referia início das perdas hemáticas após realização de colonoscopia
em ambulatório 15 dias antes, solicitada pelo seu médico assistente por
queixas, com cerca de 4 semanas de evolução, de dor abdominal localizada ao
flanco esquerdo, tipo moinha, persistente, e diminuição do trânsito intestinal
para fezes e gases também de início recente e tenesmo. Negava febre, queixas
perianais ou outras. A colonoscopia de que era portador, e que apenas foi
possível até à junção recto-sigmóide por má preparação, mostrava mucosa
congestiva tendo sido realizadas biópsias que apontavam para inflamação
inespecífica.
Dos antecedentes pessoais destacavam-se herniorrafia inguinal aos 58 anos,
hipertensão arterial, dislipidémia e hiperplasia benigna da próstata, para o
que estava medicado com perindopril, sinvastatina e tansulosina. Negava
alergias conhecidas e hábitos tabágicos, referindo ingestão diária de cerca de
60g de álcool. A história epidemiológica era negativa e os antecedentes
familiares irrelevantes. Do exame objectivo realizado na admissão apenas se
destacava obesidade (IMC: 35 kg/m2) e abdómen distendido, um pouco timpanizado,
com ruídos hidroaéreos ligeiramente aumentados, de timbre normal e presença de
dor à palpação profunda dos quadrantes inferiores, sobretudo do flanco
esquerdo, sem massas perceptíveis ou defesa. Apresentava-se apirético,
normotenso e com restantes parâmetros clínicos sem alterações.
O estudo laboratorial inicial mostrava anemia (Hb 10,3g/dl) normocrómica
normocítica, PCR de 4,5mg/dl e ureia 8,1 mmol/L. Não eram evidentes outras
alterações analíticas, nomeadamente valores elevados dos marcadores tumorais
(CEA e Ca 19,9). Na radiografia abdominal simples apresentava ansas intestinais
esquerdas distendidas e com esboço de níveis hidroaéreos a esse nível. Foi
submetido a estudo endoscópico baixo, que mostrou intenso padrão inflamatório
da mucosa, em toda a extensão, com edema marcado condicionando acentuado
compromisso da distensibilidade da parede que impedia progressão para além do
descendente distal, realizando-se biópsias da mucosa atingida. Internado para
estudo complementar, iniciando terapêutica de suporte com fluidoterapia, pausa
alimentar com nutrição parenteral e messalazina. No estudo histológico
observou-se mucosa cólica com discreta alteração da arquitectura, infiltrado
inflamatório na lâmina própria, predominantemente linfoplasmocitário, com
alguns eosinófilos e neutrófilos e sem permeação para o epitélio glandular nem
formação de abcessos crípticos, ausência de granulomas epitelioides, pigmento
hemossidérico ou lesões de necrose, aspectos compatíveis com colite crónica
inespecífica. Foi posteriormente realizado clister opaco de duplo contraste que
favoreceu a hipótese de se tratar de neoplasia, ao revelar estenose
concêntrica, de contornos irregulares, com início a nível da transição recto-
sigmóideia não sendo possível a melhor caracterização a montante pela
dificuldade de passagem e extravasamento para o exterior do produto de
contraste baritado, apesar de bastante diluído (Fig. 1). Efectuou também TC
abdominal que mostrou espessamento no recto-sigmóide e cólon descendente, bem
como densificação da gordura mesentérica (Fig. 2). Por manter as mesmas queixas
clínicas, compatíveis com quadro suboclusivo, e perante incerteza diagnóstica,
por estudo complementar inconclusivo, foi decidida a realização de laparotomia
exploradora tendo sido notório o espessamento da parede do cólon descendente e
sigmóide até à reflexão peritoneal. Foi assim submetido a hemicolectomia
esquerda e sigmoidectomia com apendicectomia complementar. O estudo anatomo-
patológico da peça operatória mostrou, a nível macroscópico, serosa com áreas
hemorrágicas e falsas membranas a revestir também o mesocólon que apresentava
áreas endurecidas, amareladas e heterogéneas de tipo citoesteatonecrose; a
parede cólica estava espessada, reduzindo significativamente o calibre do lúmen
intestinal e a mucosa apresentava zonas aplanadas e erosionadas, a par de
outras edemaciadas. Ao exame histológico, a mucosa apresentava infiltrado
inflamatório crónico difuso, com áreas de necrose de tipo isquémico/hemorrágico
e ulceração. Na parede intestinal, mais aparente em vasos da submucosa e da
subserosa, observou-se lesões vasculares, que consistiam em espessamento da
íntima e da camada muscular das veias de médio e de pequeno calibre, alterações
também presentes nas veias do mesocólon (Fig. 3). O facto de as lesões
descritas se localizarem exclusivamente nas veias, permitiu o diagnóstico de
doença venooclusiva inflamatória mesentérica. Não se observava atingimento das
margens de ressecção. O pós-operatório decorreu sem incidentes, verificando-se
boa evolução clínica. Após um ano de vigilância o doente mantém-se
assintomático, tendo efectuado colonoscopia total que mostrou presença de 2
pólipos no transverso, com menos de 1 cm, um deles pediculado e outro séssil,
cujo estudo anatomopatológico revelou tratar-se de um pólipo inflamatório e
adenoma tubuloviloso com displasia de alto grau completamate excisado,
respectivamente. Não eram evidentes outras alterações da mucosa. Durante o
período de vigilância foi efectuado o despiste de vasculites sistémicas e
trombofilias (Anticorpos antinucleares, tempos de coagulação, ANCA e ASCA,
antitrombina, Factor V de Leiden, Proteínas C e S, homocisteína, anticoagulante
lúpico, anticardiolipina, fibrinogénio, complemento sérico C3 e C4, estudo
molecular mutação da protrombina PRT20210G/A, factor reumatóide) que não
mostrou alterações. O doente mantém-se em vigilância.
Fig. 1. Imagem de clister opaco mostrando presença de estenose concêntrica, de
contornos irregulares, com início na transição recto-sigmóide.
Fig. 2. Imagem de corte coronal (A) e axial (B) de TC mostrando espessamento do
recto-sigmóide e cólon descendente (seta) bem como marcada densificação da
gordura mesentérica.
Fig. 3. Estudo anatomopatológico da peça operatória demonstrando: A (HE x 20) –
Veia da subserosa com espessamento fibroso da íntima e camada muscular
reduzindo significativamente o lúmen, a par de artéria sem alterações da
parede; B (Elastina x 20) – Elastina evidencia artéria (a) com preservação da
elástica sem lesões e veia afectada (b), com marcada fragmentação da lâmina
elástica; C (HE x 20) – Mucosa intestinal com ulcerações (a), infiltrado
inflamatório polimorfo e microtrombos (b) em capilares e vénulas, secundárias
às lesões vasculares.
DISCUSSÃO
As vasculites intestinais são situações pouco comuns que acompanham usualmente
vasculites sistémicas ou doença inflamatória intestinal
4
. Nestas duas entidades, existe envolvimento primário do sistema arterial. Uma
situação mais rara, e que é reportada no caso apresentado, é a isquemia
intestinal resultante de vasculite das veias mesentéricas e suas tributárias.
A doença inflamatória venooclusiva mesentérica, embora pouco frequente ou
possivelmente subdiagnosticada e por isso com taxas de incidência
desconhecidas, é cada vez mais reconhecida
1,5,6
. Desde o primeiro caso publicado em 1976, várias terminologias têm sido
utilizadas na literatura para a descrever, tais como flebite enterocólica
linfocítica, microflebite linfocítica intestinal, hiperplasia idiopática
mioíntima ou venulite mesentérica intramural5.
Trata-se de uma doença sem uma causa predisponente identificada. Contudo,
nalguns casos relatados, foram implicados, embora sem consistência científica,
alguns fármacos (hidroxietilrutosido, reserpina, metildopa, amilorida) e
infecção por citomegalovírus.5 Pode ocorrer em qualquer idade, embora a maioria
dos doentes esteja acima da quinta década de vida, e não há predominância de
sexo3-5.
Os casos descritos na literatura, tal como o apresentado, representam
habitualmente um desafio diagnóstico, tanto a nível clínico como endoscópico e
histológico4.
Clinicamente a doença caracteriza-se por isquemia intestinal aguda (em 15% dos
casos5) ou mais frequentemente subaguda, manifestando-se com quadro variável de
náuseas, vómitos, dor abdominal, diarreia com muco ou sanguinolenta, podendo a
hemorragia digestiva baixa ser grave
1,6,7
. Está também descrita evolução fulminante. Os quadros suboclusivos, tal como o
que sucedeu neste doente, são explicados pela possibilidade de ocorrência de
estenoses, que indicam uma doença com uma evolução prolongada3.
As alterações endoscópicas descritas no nosso doente são similares às descritas
na literatura, com aspectos inflamatórios da mucosa com edema e eritema por
vezes mimetizando a doença inflamatória intestinal.
O estudo radiológico por TC mostra habitualmente as alterações também relatadas
no caso apresentado, nomeadamente espessamento da parede intestinal2. Este
segmento intestinal envolvido assimila o contraste de forma homogénea em toda a
espessura da parede, tal como sucede, por exemplo, na doença de Crohn. Pode
igualmente detectar-se na tomografia um ingurgitamento vascular pericólico, que
em associação com o edema e inflamação associados, condicionam a presença de
lesão tipo massa interpretada por vezes como infiltração tumoral1. A
discrepância por vezes encontrada entre a TC e o aspecto endoscópico, por vezes
com alterações muito ténues com ligeiro edema da mucosa, é explicada pelo facto
de se tratar de uma doença com envolvimento sobretudo pericólico em vez de
mucoso/submucoso.
O diagnóstico definitivo é apenas feito através da avaliação anatomo-patológica
da peça operatória, pois as biópsias da mucosa são persistentemente
inconclusivas1,2.
O diagnóstico histológico fundamenta-se na detecção de lesões vasculares em
veias de médio calibre, pelo que são habitualmente identificadas em veias da
submucosa e da subserosa. As colorações histoquímicas para as fibras elásticas
são úteis na caracterização dos vasos afectados, mostrando que não há
atingimento da parede das artérias. As lesões observadas dependem do tempo de
evolução da doença
1,5,8
. Nas lesões mais precoces predominam os fenómenos inflamatórios, com
infiltrado inflamatório na parede das veias, constituído essencialmente por
linfócitos T citotóxicos, podendo também ser identificados linfócitos B,
neutrófilos e células gigantes. Estas lesões podem ser acompanhadas de
vasculite necrotizante. Nas lesões com maior tempo de evolução, predominam os
fenómenos de trombose e recanalização ou hiperplasia mioíntima da parede das
veias. Não é necessário estar presente todo o tipo de lesões para o
diagnóstico. Estas lesões condicionam um espessamento da parede e necrose
isquémica na mucosa com ulcerações.
Todas estas alterações histológicas podem atingir ambas as veias mesentéricas,
pelo que pode haver envolvimento do delgado e do cólon, embora este último seja
o mais atingido, sem predomínio de nenhum segmento2,5. Casos isolados reportam
flebites da vesícula e do omento5.
O diagnóstico diferencial deverá ter em conta outras vasculites que atingem o
tracto gastrointestinal, como doença inflamatória intestinal, vasculites
sistémicas (lúpus eritematoso sistémico, doença de Behçet, síndrome de Churg-
Strauss, doença de Buerger, artrite reumatóide) assim como trombofilias
herdadas ou adquiridas e hemoglobinúria paroxistica nocturna, situações que
foram afastadas no caso relatado através da história clínica apurada e exames
laboratoriais, que não apontavam para nenhuma outra patologia secundária3. Por
exemplo, devemos interrogar-nos sobre a possibilidade deste diagnóstico numa
doença de Crohn que não responde ao tratamento médico convencional.
Tal como este doente, todos os casos já anteriormente descritos se mostraram
refractários à terapêutica conservadora, não existindo actualmente nenhum
fármaco que reverta as lesões, embora possam diminuir a sua progressão e evitar
ressecções mais extensas
1,9,10
. Os sintomas persistentes obrigaram a exploração cirúrgica em todos os
doentes, com ressecção do segmento atingido.
Pouco se conhece acerca da história natural da doença, mas os casos relatados
na literatura, tal como este, evoluíram favoravelmente, sendo rara a recidiva
ou necessidade de reintervenção cirúrgica
1,11
. O único caso descrito na literatura com recidiva, que obrigou a reintervenção
cirúrgica após 15 meses, apresentava lesões de flebite microscópica nas margens
de ressecção da primeira peça operatória1,10. Não se preconiza nenhum tipo de
terapêutica profilática no pós-operatório, nomeadamente corticosteróides,
anticoagulantes, etc
12
.
CONCLUSÕES
A doença inflamatória venooclusiva mesentérica representa uma causa rara de
isquemia intestinal, de etiologia desconhecida, afectando exclusivamente as
veias mesentéricas e suas tributárias. Origina quadro clínico, endoscópico e
imagiológico que pode simular outras patologias, nomeadamente neoplasias ou
doença inflamatória intestinal. O tratamento cirúrgico é essencial, com
ressecção segmentar do intestino atingido, sendo o diagnóstico definitivo
apenas estabelecido com o estudo anatomopatológico da peça operatória. Uma vez
estabelecido o diagnóstico é necessário vigilância dos doentes, apesar do
prognóstico favorável e rara recorrência.