Helicobacter pylori numa população dispéptica no Algarve: prevalência e
caracterização genética
Helicobacter pylori numa população dispéptica no Algarve: prevalência e
caracterização genética
INTRODUÇÃO
A infecção por Hp é reconhecida como uma das infecções crónicas mais comuns
estimando-se que cerca de metade da população mundial esteja infectada
1,2
. É conhecido também que a sua prevalência varia consideravelmente com diversos
factores sendo, geralmente, superior em meios sócio-económicos desfavorecidos
3,4
em que são comuns habitações com grandes aglomerados familiares e deficientes
condições higieno-sanitárias ' ambientes reconhecidos como propiciadores da
transmissão da bactéria3-5. Dessa forma, o espectro de prevalências da infecção
por Hp é muito amplo variando com o grau de desenvolvimento das regiões ' a
maioria dos países em desenvolvimento apresentam taxas superiores a 80% em
contraste com os 20 a 40% dos países desenvolvidos3. Entre estes, Portugal é
uma notável excepção apontando-se uma prevalência próxima dos 80% apesar da 26ª
posição no rankingde desenvolvimento das Nações Unidas6.
Embora, na maioria dos casos, a infecção seja assintomática, a sua associação
etiológica com a gastrite crónica, a úlcera péptica, o cancro gástrico e o
linfoma MALT é universalmente aceite
7-11
. Contudo, a maioria dos doentes dispépticos não tem evidência de doença
estrutural que claramente explique os sintomas
12
. Tem-se procurado implicar o Hp nestes doentes com resultados controversos. A
sua prevalência na dispepsia não ulcerosa é sobreponível à da população geral
13
. Por outro lado, admite-se que a erradicação do Hp nestes doentes pode reduzir
a incidência de úlcera péptica12, mas o seu efeito nos sintomas dispépticos é
duvidoso
14
.
Desde as observações iniciais de Warrene Marshall, que a bactéria tem sido
exaustivamente estudada, tendo sido já identificados vários mecanismos de
virulência. Entre eles, os mais largamente estudados são a proteína
imunodominante Cag A e a citotoxina vacuolizante Vac A. Relativamente à
primeira, codificada pelo gene cag A, é produzida por cerca de 60% das estirpes
ocidentais
15
e mais de 90% das asiáticas
16
e representa um factor de risco para o desenvolvimento de gastrite atrófica,
neoplasia gástrica e úlcera péptica17-19. A citotoxina Vac A, produzida por
cerca de 50% das estirpes, induz a formação de vacúolos em células
eucarióticas. O gene vac A está presente em todas as estirpes, mas apresenta
variações nas regiões sinal (tipos s1 ou s2), região média (tipos m1 ou m2) e
intermédia (i1 ou i2). A combinação s1m1 confere elevada actividade citotóxica,
s1m2 intermédia e s2m2 baixa actividade
20
. A proteína BabA, codificada pelo gene babA2, está igualmente implicada na
patogenicidade da bactéria, ao permitir a sua adesão ao epitélio, e a sua
presença associa-se ao desenvolvimento de adenocarcinoma, úlcera péptica e
gastrite21-23. O gene oip A, presente em menos de metade das estirpes
ocidentais, associa-se igualmente a maior inflamação da mucosa24.
Assim, pela importância etiológica do Hp e pela variabilidade da sua
prevalência e da sua virulência, torna-se importante conhecer a realidade
local. Neste estudo, estudámos a prevalência da infecção por Hp numa população
de doentes dispépticos no Algarve submetidos a endoscopia digestiva alta,
procurámos estabelecer a eficiência global dos testes de diagnóstico utilizados
e caracterizar geneticamente as estirpes isoladas. Finalmente, tentámos
correlacionar a infecção por Hp, e as suas características genéticas (genes cag
A, vac A, oip A e babA2), com os achados endoscópicos.
MATERIAL E MÉTODOS
Seleccionámos, de modo aleatório, 205 doentes submetidos a endoscopia digestiva
alta entre Janeiro de 2002 e Setembro de 2005, por queixas dispépticas. Todos
deram o seu consentimento informado. Foram excluídos os doentes que realizaram
terapêutica com antibiótico ou anti-ulceroso no ano antecedente. A todos foi
efectuado um inquérito epidemiológico, registados os achados endoscópicos,
realizado teste rápido da urease e colhidas 3 biópsias do antro e 3 do corpo
gástrico para exames histológico, cultural e molecular de Hp. As biópsias para
exame histológico foram colocadas em formol; as biópsias para exame molecular
congeladas a seco e as biópsias para exame cultural foram colocadas em lactato
de Ringer.
Para pesquisa da presença de Hp, usámos 3 métodos ' teste rápido da urease,
exame cultural e histopatológico ' admitindo-se infecção na presença de pelo
menos 2 testes positivos.
Exame cultural
As biópsias foram manuseadas assepticamente, tendo sido trituradas num pequeno
volume de Caldo Mueller-Hinton(OXOID). O homogeneizado foi inoculado, segundo
os procedimentos descritos pelo «National Committee for Clinical Laboratory
Standards» (NCLLS), em meio selectivo (Columbia Agar; OXOID) suplementado com
10 % de sangue desfibrinado de cavalo (OXOID) e suplemento selectivo para Hp
(SR 147; OXOID) e meio não selectivo (Columbia Agar; OXOID) suplementado com 10
% de sangue desfribinado de cavalo (OXOID). As placas foram incubadas a 36 ±
1ºC, em condições de microaerofilia (Gás Generating Kitsfor Campilobacter;
OXOID) com cerca de 6 % de oxigénio, 10 % de dióxido de carbono e uma humidade
relativa superior a 98%, durante 3 a 4 dias. A partir do 3º dia, faz-se uma
observação diária até 5 a 7 dias. No entanto, as placas foram mantidas a 36 ±
1ºC em atmosfera de microaerofilia durante 12 dias antes de considerar a
cultura negativa. A identificação foi feita através de observação da morfologia
típica das colónias (colónias pequenas, brilhantes, convexas e de bordos
regulares; não hemolíticas), citomorfologia característica com coloração de
Gram(células Gram-, espiraladas ou encurvadas, com formas em U ou I), reacção
positiva nos testes bioquímicos de urease (caldo ureia, com Suplemento SRO 20 K
Oxoid).
Exame histológico
A pesquisa específica da presença de Hp foi realizada por 3 anatomopatologistas
em amostras fixadas e coradas com hematoxilina-eosina.
Teste rápido da Urease
Foi testada a actividade da urease em 2 amostras do antro e 2 do corpo gástrico
usando o CLOtest® (Kimberly-Clark/Ballard Medical Products, USA) de acordo com
as instruções do fabricante. Resumidamente, as amostras são colocadas num meio
contendo ureia e um indicador de pH. A hidrólise da ureia em amónia e CO2na
presença da urease altera o pH do meio com alteração da cor do indicador. A
alteração da cor nas primeiras 24 horas foi interpretada como teste positivo.
Caracterização genotípica de factores de virulência de Hp
Em 22 das estirpes isoladas, realizámos a caracterização genotípica dos
factores de virulência cag A, vac A, oip A e bab A. Para isso, foi efectuada a
extracção de DNA cromossomal das estirpes isoladas a partir de biópsia
gástrica, e pesquisada a presença do gene cag A e bab A2 e foram caracterizadas
as regiões média e sinal do gene vac A pela técnica de PCR (Polymerase chain
reaction) com iniciadores específicos. A região sinal foi amplificada,
utilizando iniciadores específicos. Os fragmentos do gene oip A foram
purificados e sequenciados num sequenciador automático 3100 Genetic Analyser
(Abi-Prism).
Análise estatística
A análise estatística foi feita com recurso ao programa SPSS versão 15. Foram
utilizados o teste x-quadrado e o teste exacto de Fisher para comparação de
variáveis categóricas. Considerou-se estatisticamente significativo um p <
0,05.
RESULTADOS
Determinámos a presença de Hp em 205 doentes ' 110 homens e 95 mulheres com
idade média de 65,9 ± 16,9 anos (11 a 89). A prevalência da infecção foi 44,9%
(92 doentes infectados), sendo superior no sexo masculino (49,1% vs40%) sem,
contudo, atingir significado estatístico (p=0,192) ' Quadro I. A idade
associou-se de forma estatisticamente significativa à infecção por Hp, com
prevalências superiores nos escalões etários entre os 30 e os 60 anos (p=0,044)
' Quadro 1 e Fig. 1.
Quadro 1. Distribuição e prevalência da infecção por Hp por sexo e grupo
etário.
Fig._1. Distribuição da prevalência da infecção por Hp por grupo etário.
Relativamente aos testes diagnósticos usados, a cultura, com acuidade global de
99%, mostrou-se superior ao teste rápido da urease e ao exame histológico,
cujas acuidades globais foram de 93,7% e 68,8% respectivamente ' Quadro 2.
Quadro 2. Métodos de diagnóstico da infecção por Hp utilizados.
Os achados endoscópicos estão descritos no Quadro 3. A infecção por Hp
associou-se, como esperado, à presença de úlcera duodenal (p=0,039), não se
evidenciando associação com nenhuma das outras patologias. As endoscopias
normais foram mais frequentes em doentes não infectados (p=0,002).
Quadro 3. Distribuição dos diagnósticos endoscópicos e correlação com infecção
por Hp.
Caracterizámos, com recurso à técnica PCR, os genes cag A, vac A, bab A2 e oip
A de 22 das estirpes isoladas. O gene cag A foi detectado em 20 das 22 das
estirpes, 90,9%; relativamente ao gene vac A, 45,5% (10/22) das estirpes
possuía o genótipo s2/m2, 22,7% (5/22) o genótipo s1/m2 e 31,8% (7/22) o s1/m1.
O gene oip A encontrou-se funcional (ON) em 78,9% (15/19) das estirpes e o gene
bab A2 foi detectado em 50% das 22 estirpes isoladas ' Quadro 4.
Quadro 4. Caracterização genética das estirpes isoladas.
Não se conseguiu estabelecer associação entre os vários perfis genéticos com
qualquer das patologias diagnosticadas.
DISCUSSÃO
O valor calculado da prevalência da infecção por Hp ' 44,9% ' foi
consideravelmente inferior ao estimado para a população geral portuguesa e
próximo do de vários países desenvolvidos da Europa Ocidental. Contudo, tendo
em conta que se trata duma população dispéptica e que a prevalência desta
infecção em doentes dispépticos é superior à da população geral, com um odds
ratio de 2,3
25
, o valor encontrado de 44,9% assume um valor relativo ainda mais baixo no
contexto português. Neste sentido, poderemos dizer que estamos dentro dos
valores habituais descritos para a Europa ocidental.
Ao olhar para a figura_1, torna-se evidente a redução progressiva da
prevalência acima dos 60 anos. Outros trabalhos mostraram declínios da
prevalência nestes grupos etários, apontando taxas de soroconversão que podem
atingir os 7% anuais
26,27
. Este fenómeno pode ser devido à própria história natural da infecção por Hp,
condicionada pelo surgimento da gastrite atrófica e consequente perda do nicho
ecológico da bactéria28 ou mesmo ocasionada por condições sócio-económicas
particulares envolvendo a infância desses grupos etários
29
. Contudo, na nossa população, registámos apenas 10 casos de gastrite atrófica
e sem associação com a idade e, além disso, não há conhecimento, no Algarve, de
circunstâncias específicas que tivessem dificultado a infecção por Hp no
período que pode corresponder à infância do grupo etário estudado. Não dispomos
de explicação evidente para esta observação, que merece ser aprofundada no
aspecto epidemiológico e demográfico. Já as taxas inferiores abaixo dos 30 anos
nos parecem explicáveis pela melhor condição sócio-económica a que se assistiu
em Portugal nas últimas 2 ' 3 décadas.
Relativamente aos meios de diagnóstico utilizados, a cultura, considerado por
muitos autores, o gold standard no diagnóstico desta infecção, mostrou a
melhor acuidade global classificando correctamente 99% dos doentes. Por sua
vez, os resultados do exame histológico foram francamente desapontadores com
sensibilidade de apenas 48%. O facto de ser muito operador-dependente, quer na
colheita, quer na análise das amostras, de ter sido realizado por
anatomopatologistas distintos tendo apenas sido usada uma coloração, pode
justificar, em parte, estes resultados. Já o teste rápido da urease, com
resultados de acordo com os habitualmente descritos, confirmou-se como um
método eficaz, rápido e económico.
Estima-se que cerca de 80% dos doentes com úlcera duodenal e mais de 60%
daqueles com úlcera gástrica estão infectados com Hp
30
. Na nossa população, no caso da úlcera duodenal, essa percentagem foi inferior
' 67% ' mas manteve-se a associação com significado estatístico.
No caso da úlcera gástrica e da duodenite erosiva, apesar de ambas mais
frequentes nos doentes infectados, julgamos que a ausência de associação
significativa se ficou a dever à insuficiência dos números de ambas as
patologias. Todavia, a associação mais estreita verificou-se entre as
endoscopias normais e a não infecção o que, de forma indirecta, atesta
igualmente o papel etiopatogénico da bactéria.
Relativamente aos factores de virulência, pelo reduzido número das estirpes
caracterizadas, não foi possível estabelecer associação com as patologias
encontradas. Todavia, é notória a presença marcada de genótipos ditos
virulentos. Relativamente às estirpes comuns nos países ocidentais,
constatámos, na nossa amostra, significativamente maior presença do gene cagA
(90,9%) e estado ON do gene oipA (78,9%); além disso, quase dois terços ' 63,6%
' das estirpes reuniram pelo menos 3 dos quatro genótipos reconhecidamente mais
virulentos
31
. A fazer fé na nossa pequena amostra, cremos que as estirpes da nossa região
têm elevado potencial patogénico, mas será necessário reunir um maior número de
doentes e avaliar também indivíduos assintomáticos para melhor esclarecer estes
dados.