Correlações entre variáveis respiratórias e funcionais na insuficiência
cardíaca
Introdução
A insuficiência cardíaca (IC) é definida como uma síndroma clínica na qual uma
alteração estrutural ou funcional do coração determina uma incapacidade em
ejectar e/ou acomodar sangue dentro de valores pressóricos fisiológicos
1,2
.
Doentes com IC apresentam fadiga muscular e dispneia durante o esforço, bem
como limitação para executar actividades diárias.
A fraqueza dos músculos respiratórios e o descondicionamento físico podem estar
envolvidos no aumento do trabalho respiratório durante a hiperpneia, existente
no momento de realização das tarefas
3, 4
.
A pressão inspiratória máxima (PImax) é uma variável que representa a força dos
músculos inspiratórios e a sua redução pode estar correlacionada com um baixo
desempenho funcional, tendo influência sobre o descondicionamento físico e
consequente piora na qualidade de vida dos doentes.
A função pulmonar também pode apresentar alterações. Estudos prévios demonstram
que variáveis espirométricas podem estar relacionadas com a capacidade de
exercício em indivíduos com IC
5,6
. Doentes com sintomas mais severos têm menor capacidade de exercício; no
entanto, ainda não está estabelecida a variável espirométrica que melhor se
correlaciona com a limitação existente na IC.
Considerando a importância clínica destas repercussões no desfecho da doença, o
presente estudo tem como objectivo correlacionar a força muscular inspiratória
e a função pulmonar com a capacidade funcional em doentes com IC.
Métodos
O presente estudo é de caráter transversal e foi realizado no período de
Janeiro a Julho de 2007. A amostra foi seleccionada de forma não probabilística
intencional. Foram avaliados 42 doentes com diagnóstico clínico de IC que
estavam em acompanhamento no ambulatório de insuficiência cardíaca do Complexo
Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre.
Foram considerados como critérios de exclusão doença pulmonar grave (uma
exclusão por presença de adenocarcinoma), distúrbios vasculares encefálicos com
limitações funcionais, doenças neuromusculares degenerativas, limitação para
realização do teste (três exclusões relacionadas com este critério: amputação
de membro inferior, doença reumatológica e doente pertencente à classe
funcional IV) e/ou doentes com instabilidade hemodinâmica grave.
O termo de consentimento livre e esclarecido foi assinado previamente por todos
os indivíduos e o estudo foi aprovado pelo Comité de Ética e Pesquisa (CEP) do
Centro Universitário Metodista ' IPA e pelo CEP do Complexo Hospitalar Santa
Casa.
Os testes foram aplicados sempre pelo mesmo avaliador (previamente treinado),
num único dia, seguindo a ordem: espirometria, manovacuometria, questionário de
qualidade de vida e teste da caminhada dos seis minutos.
Para os testes de PImax e da função pulmonar, os doentes foram orientados
quanto aos procedimentos a serem realizados e ao seu posicionamento (sentado,
com os pés apoiados no chão, mãos segurando firmemente o equipamento e
utilizando um clipe nasal).
As variáveis da função pulmonar mensuradas foram a capacidade vital forçada
(CVF) e o volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1), utilizando-se
um microespirómetro One Flow (Clement Clark®, Estados Unidos) e seguindo as
diretrizes para os testes de função pulmonar, estabelecidas pela Sociedade
Brasileira de Pneumologia e Tisiologia
7
.
Os valores foram oriundos de três manobras aceitáveis, sendo duas delas
reprodutíveis.
O critério de reprodutibilidade foi a obtenção dos dois maiores valores da CVF
e VEF1 com diferença abaixo de 0,2 litros entre as manobras.
Para a avaliação da força dos músculos inspiratórios (PImax) foi utilizado o
manovacuómetro digital MVD-300 (GlobalMed®, Brasil), igualmente seguindo as
recomendações das directrizes dos testes de função pulmonar
7
.
O resultado da manovacuometria foi obtido após a realização de cinco manobras
de inspiração forçada, obtendo-se os três maiores valores aceitáveis (i.e., não
podendo existir vazamentos e a sustentação do valor máximo de pelo menos dois
segundos), e, destas, pelo menos duas deveriam ser reprodutíveis (i.e., com
valores que não difiram entre si mais de 10% do maior valor). A PImax foi
obtida a partir da volume residual (VR), registando-se o valor absoluto da
pressão mais elevado.
Entre os testes de função pulmonar e força muscular inspiratória, o doente
deveria permanecer em repouso, no mínimo, 10 minutos.
O nível funcional dos participantes foi mensurado através da distância
percorrida no teste da caminhada de 6 minutos (TC6M). Este teste exige que o
indivíduo percorra uma distância máxima em seis minutos, com ritmo próprio,
procurando caminhar o mais rápido possível. O teste foi realizado num corredor
sem obstáculos, recto, plano, com trinta metros de comprimento. O doente foi
instruído previamente pelo avaliador, que utilizou estímulo verbal padronizado
a cada minuto de caminhada, incentivando-o a percorrer uma maior distância
possível
8
.
A sensação de dispneia e a fadiga de membros inferiores foram avaliadas através
da escala de Borg modificada (escala 0-10), antes e após a execução do TC6M.
Nesses momentos também foram registadas a saturação periférica de oxigénio
(SpO2), utilizando um oxímetro Nonin Oxyx (9500, Estados Unidos), a pressão
arterial sistólica e diastólica através de um estetoscópio e esfigmomanómetro
(BD, Brasil) e as frequências cardíaca e respiratória.
A classe funcional (CF), segundo a New York Heart Association(NYHA), foi
determinada pelo médico responsável, que não teve conhecimento dos resultados
dos testes realizados.
A qualidade de vida dos doentes foi avaliada através do questionário de
qualidade de vida Short Form -36 (SF-36). O questionário genérico SF-36
descreve e avalia o estado de saúde dos indivíduos através de vários domínios
(capacidade funcional ' SF -361; limitação por aspectos físicos ' SF -362; dor
' SF -363; estado geral da saúde ' SF -364; vitalidade ' SF -365; aspectos
sociais ' SF -366; limitação por aspectos emocionais ' SF -367; saúde mental '
SF- 368). Os valores em cada domínio são obtidos através da soma das respostas
daquele item, transformando-os em scoresde uma escala, na qual zero representa
saúde deficitária e cem representa bom estado de saúde. Os resultados são
avaliados e analisados de forma isolada para cada domínio
9
. O estudo apenas utilizou o domínio capacidade funcional do questionário.
Análise estatística
As análises estatísticas foram realizadas no programa SPSS (Statistical Package
for Social Sciences) versão 15.0, onde as variáveis quantitativas foram
descritas através de média e desvio-padrão, ao passo que as categóricas foram
expressas através de frequências absolutas e relativas.
Para avaliar a associação entre as variáveis contínuas foi aplicado o teste de
correlação de Pearson e, para as variáveis categóricas, o teste de correlação
de Spearman. Para a comparação das médias das variáveis de função pulmonar
entre os grupos de tabagistas e de não tabagistas foi utilizado o teste t. O
nível de significância adoptado foi de 5%.
Resultados
As características antropométricas e clínicas da amostra estudada encontram-se
dispostas no Quadro I. Foram avaliados um total de 42 doentes pertencentes às
classes funcionais I (16), II (15) e III (11) segundo a NYHA, sendo 28 homens.
A etiologia predominante de IC na amostra foi a cardiopatia dilatada
idiopática, presente em 60% dos doentes, seguida da cardiopatia valvar,
isquémica e de outras (17%, 14% e 9%). Os doentes utilizavam tratamento
medicamentoso segundo a determinação médica para o tratamento da IC2. A
frequência dos medicamentos foi: â -bloqueador (90,47%), diurético (88,09%),
inibidor da enzima conversora de angiotensina (69,04%), espironolactona
(66,66%) e digoxina (57,14%), sendo as doses optimizadas de acordo com sintomas
apresentados.
Quanto aos hábitos tabágicos, apenas 3 doentes (7,14%) da amostra referiram ser
tabagistas, 23 (54,76%) referiram ser ex'tabagistas e 16 (38,1%) foram
classificados como não tabagistas. A média do percentual de predito do VEF1 foi
de 72,98±19,32% para os tabagistas, 68,82±19,11% para os ex-tabagistas e de
84,86±24,43% para os não tabagistas.
Quando comparadas as médias do percentual de predito do VEF1 dos grupos de
tabagistas e de ex-tabagistas com o grupo de não tabagistas, não houve
diferença significativa (p=0,1826).
Durante a realização do TC6M não foram registadas alterações importantes na
SpO2 e nas variáveis hemodinâmicas, além dos limites fisiológicos. Nenhum dos
testes realizados apresentou intercorrências que resultassem em interrupção.
Foram correlacionadas as variáveis PImax, CVF e VEF1 com a distância percorrida
no TC6M, classe funcional (CF) e domínio da capacidade funcional do SF-36
(Quadro II).
Apenas o VEF1 não apresentou correlação estatisticamente significativa com o
SF-36. Contudo, a PImax (Fig. 1), a CVF (Fig. 2) e o VEF1 (Fig. 3) apresentaram
uma correlação moderada significativa quando correlacionadas com a distância
percorrida no TC6M.
Discussão
Os principais achados do presente estudo foram as correlações entre as
variáveis respiratórias e a condição funcional dos doentes. Tanto a PImax
quanto a função pulmonar apresentaram correlações moderadas com a capacidade de
exercício submáximo e a classe funcional dos doentes incluídos no estudo.
Estudos anteriores relatam que a diminuição da PImax pode estar relacionada com
a sensação de dispneia e a incapacidade de exercício existentes nestes doentes
10,11
. Alterações na contractilidade diafragmática estão associadas ao aumento
relativo e à atrofia das fibras musculares do tipo I, ao contrário do que
ocorre na musculatura periférica
12
. Estas alterações morfológicas são estabelecidas devido a um padrão
ventilatório taquipneico adoptado com tempo expiratório reduzido, aumento do
espaço morto ventilatório e maior produção de dióxido de carbono (CO2)
13
. O aumento excessivo da frequência respiratória, seguido pela maior produção
de CO2 durante o exercício, é explicado pela diminuição do limiar de activação
dos ergoceptores
14
.
Os ergoceptores possuem maior activação em doentes com IC e também podem ser os
responsáveis pelo aumento do tónus simpático durante a realização das
actividades físicas
3,15
. Neste estudo, a variável respiratória que apresentou maior nível de
correlação com a classe funcional e a distância percorrida no TC6M foi a PImax.
A força dos músculos inspiratórios obtida em repouso pode correlacionar-se com
o comportamento destes músculos durante o exercício e, consequentemente, com a
limitação para realizar o exercício. Nanas e cols.
10
relacionaram a performancedos músculos respiratórios com a cinética de
recuperação ao exercício máximo em doentes com IC, e foi demonstrado que o
comprometimento destes músculos limita a capacidade de exercício. O estudo
demonstrou que a capacidade de gerar pressão pelos músculos inspiratórios não
está reduzida após o teste máximo. No entanto, a presença de redução da PImax
com relação aos valores basais pré-teste relacionou-se com um período mais
longo de recuperação metabólica, assim como com um pior desempenho no teste. No
presente estudo também encontramos uma correlação entre a capacidade de
exercício e a PImax em repouso. Entretanto, foram utilizados métodos diferentes
para avaliar a capacidade de exercício.
Diversas escalas são utilizadas para documentar os sintomas clínicos dos
doentes com IC durante as actividades diárias. A escala proposta pela NYHA,
utilizada no presente estudo, é a mais difundida e aceite para descrever estes
sintomas. Esta classificação subjectiva pode predizer a morbidade e a
mortalidade em grandes populações de doentes
16,17
. Neste estudo, doentes com menor PImax apresentaram a classe funcional mais
elevada. Meyer e cols.
11
encontraram uma correlação significativa entre a PImax e o prognóstico em
doentes com IC. Neste estudo, os doentes foram divididos em subgrupos de acordo
com o desempenho da PImax, que demonstrou estar reduzida em média 23% com
relação ao grupo-controlo. Após um período de acompanhamento de 4 anos, a PImax
foi considerada como um preditor de mortalidade independente em relação à
função pulmonar, à concentração de norepinefrina plasmática e à fracção de
ejecção do ventrículo esquerdo.
Considerando a PImax um preditor de prognóstico, compreende-se o facto de este
estudo apresentar esta variável associada tanto com o TC6M quanto com a CF da
NYHA.
O treino muscular inspiratório pode apresentar benefícios para doentes com IC e
fraqueza dos músculos inspiratórios
18-20
.
Dall'Ago e cols.
21
realizaram um estudo avaliando o efeito do treino muscular inspiratório em
doentes com IC e fraqueza muscular inspiratória. Foram incluídos no estudo 32
doentes com alocação aleatória entre um grupo-treino e outro controle. Após o
período de treino foi observada melhoria na PImax, na capacidade funcional, na
recuperação após o exercício máximo e na qualidade de vida dos doentes que
realizaram o treino. Após a intervenção, foi observada uma correlação entre o
consumo máximo de oxigénio e a PImax. Estes achados, mesmo não representando o
principal enfoque do estudo, corroboram os resultados da nossa pesquisa, pois
revela uma relação entre a PImax e variáveis funcionais (capacidade de
exercício).
Também estão descritas na literatura alterações na função pulmonar em doentes
com insuficiência cardíaca
22-24
. Neste estudo foi observada uma associação entre as variáveis da função
pulmonar em repouso e a capacidade funcional dos doentes com IC. Além desta
associação, dos 42 doentes incluídos na amostra 14 teriam critério de doença
pulmonar obstrutiva crónica moderada (VEF1/CVF<70% e 30%≤VEF1<80%), apesar de
não possuírem diagnóstico médico para esta doença
25
. Os hábitos tabágicos parecem não influenciar este padrão de função pulmonar,
visto que dos 16 doentes que foram classificados como não tabagistas 6
apresentavam critérios para doença pulmonar obstrutiva e, dos 26 tabagistas e
ex-tabagistas, apenas 8 apresentava os mesmos critérios.
Um padrão restritivo já foi documentado em doentes com IC, atribuído
principalmente ao edema pulmonar intersticial e alveolar subclínico. Outras
causas potenciais da diminuição das capacidades pulmonares são a cardiomegalia,
o aumento do volume de sangue central, o enrijecimento fibrótico do parênquima
pulmonar (devido à congestão pulmonar crónica) e o derrame pleural
26-29
. Todas estas alterações determinam uma redução da complacência pulmonar e o
aumento do trabalho respiratório realizado pelos doentes.
Como observado neste estudo, variáveis da função pulmonar podem correlacionar-
se com a capacidade de exercício em indivíduos com IC, demonstrando assim que
os valores da função pulmonar podem interferir no grau de severidade da doença.
Ingle e cols.
30
realizaram um estudo comparando os achados da função pulmonar com a capacidade
de exercício em indivíduos com IC. Foram avaliados 340 doentes com IC de todas
as classes funcionais através de um teste ergométrico máximo com análise de
trocas gasosas e do exame espirométrico. Não foram encontradas correlações
entre a função pulmonar e a capacidade de exercício através do VO2max em
doentes mais sintomáticos (classe funcional III e IV). Também não foram
observadas diferenças entre o desempenho na espirometria nas classes I-II e
III-IV.
Neste estudo foi observada correlação entre a função pulmonar e a capacidade de
exercício submáximo, assim como uma correlação entre a CF e a CVF. Estas
discrepâncias entre os achados de Ingle e os nossos dados devem'se tanto devido
à diferença nos métodos de mensuração da capacidade de exercício quanto à
predominância de indivíduos de CF mais baixa deste estudo.
Apesar dos bons resultados, factores como o pequeno número amostral e a
diversidade de etiologia da IC podem ser considerados limitações.
A utilização de um equipamento de espirometria que não permite a visualização
de curvas débito-volume também representa uma limitação.
Conclusão
Conclui-se que a força muscular inspiratória e a função pulmonar apresentaram
correlação com a condição funcional em doentes com IC. As variáveis PImax, VEF
1
e CVF correlacionaram-se com a distância percorrida no TC6M e com a classe
funcional a que os doentes pertenciam.