Pneumomediastino espontâneo multiloculado em recém-nascido: Caso Clínico
Introdução
Pneumomediastino é definido como a presença de ar dentro do mediastino
1
,
2
,
3
.
Surge habitualmente em doentes com patologia pulmonar subjacente, submetidos a
ventilação mecânica ou associado a procedimentos técnicos invasivos,
endotraqueobrônquicos ou esofágicos, cateterismos cardíacos, cirurgia torácica
ou a traumatismos torácicos1,2.
Há ainda os casos, mais raros, que surgem não associados a nenhuma das
situações referidas, em doentes sem doença pulmonar concomitante, denominados
“pneumomediastinos espontâneos”1,3.
O pneumomediastino no período neonatal ocorre em cerca de 2,5 casos por cada
1000 nados-vivos1,
4
. Quando isolado, é geralmente assintomático, mas deve ser considerado sempre
que o recém-nascido apresenta dispneia ou polipneia súbita, sem doença pulmonar
aparente1. Na maioria dos casos, surge associado a patologia pulmonar do recém-
nascido, nomeadamente a síndroma de aspiração meconial, a pneumonia, a doença
das membranas hialinas, à ventilação mecânica ou a traumatismos associados ao
parto1.
O pneumomediastino espontâneo é muito raro neste grupo etário e, quando surge,
pode ter tendência à loculação2,
5
.
Caso clínico
Recém-nascido de termo, sexo masculino, filho de mãe saudável com 34 anos.
Trata-se de uma primeira gestação, vigiada, com serologias e marcadores víricos
negativos. Na ecografia pré-natal, realizada às 12 semanas de gestação, foi
detectada translucência da nuca aumentada, pelo que foi efectuada amniocentese
às 16 semanas, que revelou um cariótipo normal (46, XY). O ecocardiograma fetal
às 25 semanas e as ecografias fetais posteriores foram normais.
O parto ocorreu às 38+1 semanas de gestação, por cesariana (trabalho de parto
estacionário e risco infeccioso), num hospital privado.
Fez duas doses de ampicilina profiláctica antes do parto, por ter rastreio para
Streptococcus agalactaepositivo às 34 semanas.
A ruptura da bolsa amniótica decorreu no período perioperatório e o líquido
amniótico era normal. Foi-lhe atribuído um índice de Apgar de 9/10 ao 1.º e 5.º
minutos de vida, respectivamente.
O RN, de sexo masculino, não necessitou de reanimação e apresentava uma
antropometria adequada à idade gestacional: peso de 3290 g (P25), comprimento
de 50 cm (P50), perímetro cefálico de 35,5 cm (P25-75).
O exame físico ao nascimento era normal.
História da doença
Às 2 horas de vida iniciou gemido expiratório associado a taquipneia (FR 80-100
cpm) e tiragem sub e intercostal ligeira a moderada, com agravamento
progressivo e necessidade de oxigénio suplementar, pelo que foi transferido
para o nosso serviço às 5 horas de vida.
À admissãoapresentava razoável aspecto geral, boa perfusão periférica, em
ventilação espontânea com oxigénio suplementar (FiO2 30%), SatpO2 97%,
taquipneia (FR~75cpm) e tiragem subcostal. À auscultação pulmonar, murmúrio
vesicular mantido e crepitações dispersas.
O restante exame objectivo era normal. Analiticamente apresentava hemograma
normal e marcadores de infecção negativos.
A radiografia do tórax era compatível com taquipneia transitória do RN (Fig.
1).
Fig. 1
Por risco infeccioso e por suspeita de sépsis neonatal precoce iniciou
antibioticoterapia com ampicilina e gentamicina.
Evolução no internamento:Manteve-se sempre em ventilação espontânea, sem
necessidade de O2 suplementar, embora com sinais de dificuldade respiratória
ligeiros a moderados (taquipneia e tiragem subcostal) até D6. Repetiu
radiografia do tórax em D2 de vida (Fig. 2), a qual evidenciou imagem de
hipertransparência de limites bem definidos nas regiões paracardíaca esquerda e
retroesternal (setas), parecendo haver o sinal da “vela” (ponta de seta) e
hipotransparência do lobo superior esquerdo.
Fig. 2
Para melhor caracterização desta imagem realizou tomografia axial computorizada
torácica em D5, que revelou no mediastino ântero-superior esquerdo uma lesão de
conteúdo puramente aéreo, com finos septos internos, medindo cerca de 5cm,
desviando súpero-lateralmente o timo. Esta lesão era independente dos campos
pulmonares, sendo compatível com pneumomediastino multiloculado(Figs. 3 a 8).
Fig. 3
Fig. 4
Fig. 5
Fig. 6
Fig. 7
Fig. 8
Iniciou oxigenoterapia suplementar (3L/min), na tentativa de mais rápida
resolução do pneumomediastino, que manteve até D10.
Para exclusão de possíveis causas de pneumomediastino secundário, em D8
realizou trânsito esofágico contrastado que excluiu perfuração esofágica (Figs.
9 e 10). Note–se que mantinha imagem de pneumomediastino (setas).
Fig. 9
Fig. 10
Foi programada broncofibroscopia para exclusão de perfuração da traqueia, não
efectuada por recusa dos pais.
Do restante estudo, foram detectados, em ecocardiograma realizado em D3 de
vida, comunicação interventricular (CIV) médio-septal com shuntesquerdo-direito
restritivo sem significado hemodinâmico e foramen ovalepatente mínimo.
Em D10 foi realizada radiografia do tórax, que mostrou reabsorção parcial do
pneumomediastino (Fig. 11), tendo sido posteriormente transferido para o
serviço de pediatria, para manutenção dos cuidados.
Fig. 11
A evolução clínica foi favorável, mantendo-se sem sinais de dificuldade
respiratória, hemodinamicamente estável, a alimentar-se bem, com boa tolerância
e com boa evolução ponderal.
O controlo imagiológico em D17 foi normal (Fig. 12).
Fig. 12
O RN teve alta ao 17.º dia de vida, orientado para as consultas de pediatria/
pneumologia (CHP) e de cardiologia pediátrica (HSJ).
Aos 45 dias de idade efectuou tomografia axial computorizada torácica de
controlo, que demonstrou completa resolução do pneumomediastino multiloculado,
sem quaisquer alterações pleuropulmonares associadas.
Aos 9 meses de idade, apresenta uma boa evolução com crescimento
estaturoponderal e desenvolvimento psicomotor adequados.
Discussão
Nos recém-nascidos, o pneumomediastino pode ser loculado e multisseptado, ao
contrário do que acontece nas crianças mais velhas e adultos. A forma loculada
é devida à limitação pela fáscia que envolve o timo e que se continua com a
fáscia fibrosa do pericárdio, com a pleura parietal e com a persistência do
ligamento esternopericárdico1,6.
O sinal da “vela”, semelhante à vela de um barco, traduzindo a dissecção
lateral do timo em relação ao pericárdio pelo ar, é formado e mantido na
posição por tecido fascial2,4,5,6.
O ar “disseca” o tecido conjuntivo e interlobular da cápsula tímica dando a
aparência multisseptada2,5,6. O caso clínico apresentado ilustra exactamente
esta entidade. A forma loculada e o sinal da vela são bem visíveis nas imagens
de radiografia do tórax e a tomografia axial computorizada torácica evidencia a
presença dos múltiplos septos internos que a definem.
Nas crianças mais velhas e nos adultos, em que o timo e a fáscia tímica se
encontram atróficos e o ligamento esternopericárdico já não existe, o ar que se
encontra no mediastino estende-se ao tecido celular subcutâneo do pescoço,
traduzindo-se clinicamente por enfisema subcutâneo1,3,5,
7
.
A forma loculada de pneumomediastino pode simular outras patologias que se
apresentam habitualmente sob a forma de “bolha” de gás intratorácico,
nomeadamente a malformação adenomatóide quística pulmonar, o enfisema lobar
congénito e os quistos tímicos5. No caso clínico apresentado, estas patologias
eram muito improváveis, uma vez que as ecografias fetais eram normais e a
primeira radiografia do tórax também não evidenciava alterações do parênquima
pulmonar. A realização da tomografia axial computorizada torácica foi
fundamental para excluir estas patologias e estabelecer o diagnóstico.
O pneumomediastino espontâneo num recém-nascido de termo, sem ter sido
submetido a ventilação mecânica ou sem patologia pulmonar subjacente, é muito
raro1,5. No caso apresentado, o recém-nascido não tinha sido submetido a
ventilação mecânica, nem sequer a ventilação com autoinsuflador manual ao
nascimento, nem havia evidência radiológica de lesão pulmonar intrínseca, pelo
que se considerou a hipótese de se tratar de um pneumomediastino espontâneo. No
entanto, com o objectivo de detectar possíveis causas secundárias do
pneumomediastino que pudessem pôr em risco a vida do doente, foi efectuado
estudo radiológico contrastado do esófago, que permitiu excluir a perfuração
esófagica, e foi programada broncoscopia para exclusão de perfuração da
traqueia, que não chegou a ser realizada inicialmente por recusa dos pais nem
numa fase mais tardia pela evolução clínica e imagiológica.
Nos casos com evolução favorável, com exclusão prévia de malformações
pulmonares associadas, a tomografia axial computorizada torácica de controlo é
discutível, devendo ser ponderada caso a caso.
O pneumomediastino espontâneo, isolado, geralmente tem resolução espontânea,
sem necessitar de tratamento específico. No RN de termo, uma elevada
concentração de oxigénio inspirado está associada à reabsorção do ar
extraalveolar1,4, pelo que foi esta a opção terapêutica no caso apresentado. A
drenagem do pneumomediastino é difícil porque o ar está colectado, mas está
recomendada em casos raros de pneumomediastino maligno ou sob tensão com
compromisso cardiovascular1,4.