Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTCVHe0873-21592010000400014

EuPTCVHe0873-21592010000400014

National varietyEu
Year2010
SourceScielo

Javascript seems to be turned off, or there was a communication error. Turn on Javascript for more display options.

Síndroma hepatopulmonar: Relato de um caso clínico e revisão do tema

Introdução A presença de hipoxemia progressiva, num doente com história de patologia hepática crónica deve levantar a suspeita de síndroma hepatopulmonar (SHP) ' uma complicação frequente de um conjunto diversificado de patologias hepáticas que têm em comum o aumento de produção ou o défice de metabolização de substâncias vasotrópicas que, em última instância, serão responsáveis pelo desenvolvimento de alterações estruturais do sistema vascular pulmonar, condicionando alterações das trocas gasosas. Esta explicação é apenas uma das possibilidades, uma vez que os detalhes do mecanismo fisiopatológico desta síndroma permanecem por esclarecer. O seu reconhecimento clínico reveste-se de extrema importância, uma vez que as medidas terapêuticas que podem ser oferecidas a estes doentes podem modificar drasticamente o seu prognóstico a curto, médio e longo prazo.

Caso clínico Os autores apresentam o caso de um doente do sexo masculino, 39 anos, caucasiano, trabalhador numa fábrica de serração de madeira, não fumador, mas com história de hábitos etílicos marcados de longa duração. Antecedentes patológicos de cirrose hepática de origem alcoólica (Child-Pugh grau A). Sem hábitos medicamentosos.

Enviado à consulta de Pneumologia com informação de policitemia secundária. O doente apresentava queixas de dispneia para esforços de média intensidade nos últimos 10 anos e com agravamento progressivo. Ao exame objectivo apresentava- se eupneico em repouso, com eritrocianose facial. Sem baqueteamento digital. O exame cardiopulmonar era normal. A palpação abdominal mostrava discreta nodulação do bordo inferior do fígado, sem onda ascítica. Sem edemas periféricos. A saturação arterial periférica era de 85% (ortostatismo e decúbito). Analiticamente apresentava Hb 18,5 gr/dl e Htc 53,6%, bilirrubina total 46,5mmol/L, bilirrubina directa 7,7 mmol/L, ỵGT 186 U/L, FA 139 U/L, ALT 53 U/L, AST 76 U/L. O estudo da coagulação revelou um valor de TP 15' com um controlo de 12' com INR de 1,3. A radiografia do tórax mostrava opacidades micronodulares bibasais e aumento do diâmetro do ramo descendente da artéria pulmonar à direita e procidência do segundo arco mediastínico à esquerda (Fig.

1). As alterações funcionais respiratórias resumiam-se a uma redução marcada da DLCO (38%) e DLCO/VA (44%). A avaliação gasimétrica mostrava insuficiência respiratória parcial com hiperventilação e aumento da diferença alveolocapilar (PaO2 53,1 mmHg, PaCO2 24,5 mmHg; P(A -a)O2 66 mmHg). O ecocardiograma trans torácico foi normal, permitindo calcular a PSAP em 18 mmHg. Face a estes achados, procurou-se excluir doença pulmonar intersticial. A tomografia computorizada (TAC) do tórax com algoritmo de alta resolução foi normal. Tendo em conta os resultados dos exames realizados foi colocada a hipótese de as manifestações pulmonares poderem estar relacionadas com a patologia hepática de base, enquadradas no contexto de uma possível síndroma  hepatopulmonar. Para esclarecimento desta hipótese foi solicitada realização de ecocardiografia transtorácica com contraste. À injecção da solução salina agitada em veia periférica, observou -se o aparecimento de microbolhas nas cavidades cardíacas esquerdas após 6 ciclos cardíacos, confirmando a ausência de comunicação intracardíaca e sugerindo a existência de vasodilatação intrapulmonar (Figs. 2 e 3). Para identificar a presença de alterações vasculares, o doente foi submetido a angiografia pulmonar, que revelou micronódulos centrilobulares difusos conectados por múltiplas veias pulmonares subpleurais em arcada dilatadas (Figs. 4 e 5). O teste de saturação com 100% O2 mostrou-se positivo (PaO2 e P(A -a)O2 em ar ambiente, respectivamente 55,4 e 64,2 mmHg e PaO2 e P (A-a) O2 após 10 minutos a 100% de O2 572,2 e 112,4, respectivamente), sugerindo presença de vasodilatação pulmonar por alterações vasculares difusas (tipo I do padrão angiográfico). Face estes resultados e à ausência de patologia cardio pulmonar concomitante, confirmou-se o diagnóstico de síndroma hepatopulmonar com grau de gravidade moderado (PaO2<60 mmHg e >50 mmHg). O doente foi proposto para transplante hepático prioritário (MELD 19), encontrando-se actualmente em lista de espera.

Fig. 1 Opacidades micronodulares com predomínio bibasal. Aumento do diâmetro do ramo descendente da artéria pulmonar direita e procidência do segundo arco mediastínico direito

Fig. 2 Ecocardiografia trastorácica com contraste mostrando preenchimento das cavidades direita por microbolhas imediatamente após injecção de solução salina agitada

Fig. 3 Ecocardiografia transtorácica com contraste mostrando preenchimento das cavidades cardíacas esquerda por microbolhas após 6 ciclos cardíacos

Fig. 4 AngioTAC pulmonar mostrando micródulos centrilobulares difusos, conectados por múltiplas veias pulmonares subpleurais em arcada dilatadas

Fig. 5 Corte coronal da mesma AngioTAC pulmonar

Discussão A associação entre doença hepática e hipoxemia foi inicialmente referida por Fluckiger em 1884 que descreveu o caso de uma mulher com cianose, hipocratismo digital e cirrose. A síndroma hepatopulmonar deve o seu nome aos trabalhos de Kennedy e Knudsen em 19771 e é definida pela presença de hipoxemia, no contexto de doença hepática, resultante de vasodilatação intrapulmonar ' característica da doença2,3. A vasodilatação ocorre a nível pré-capilar, capilar e pós-capilar determinando efeito de shuntpulmonar direito-esquerdo, possibilitando que o sangue venoso comunique com a circulação arterial4-6. A hipoxemia tem sido atribuída a várias causas, nomeadamente a alterações da V/Q, alteração da difusão e aumento da fracção de shuntintrapulmonar. Mais recentemente, um novo mecanismo fisiopatogénico foi proposto, definido pela alteração da difusão - perfusão causada pelas dilatações vasculares e consequente aumento do diâmetro dos capilares pulmonares. De acordo com esta teoria, a alteração estrutural vascular dificultaria a difusão das moléculas de O2 para o centro da corrente sanguínea determinando uma redução da oxigenação da Hb. O estado circulatório hiperdinâmico determinado por um elevado débito cardíaco encontrado em 30 -50% dos doentes com cirrose hepática contribuiria para a ocorrência da hipoxemia, reduzindo ulteriormente o tempo de hematose. Acredita-se que na patogénese dos shuntsestejam implicados possíveis desequilíbrios entre substâncias vasodilatadoras e vasoconstritoras produzidas e/ou metabolizadas pelo fígado.

Neste domínio tem sido dada crescente atenção ao papel do óxido nítrico (ON) na patogenia da SHP. Alguns autores referem aumento de ON no ar exalado de doentes com SHP, por comparação com doentes cirróticos sem SHP7-9. Embora possa ocorrer na hepatite aguda ou crónica6,10, ou mesmo na hipertensão portal sem doença hepática4,5. A SHP ocorre com mais frequência no contexto de doença hepática cirrótica, com uma prevalência de 16 a 24%11. Do ponto de vista clínico, as manifestações da doença hepática de base geralmente dominam o quadro. O hipocratismo digital e as telangectasias cutâneas (spider naevi),propostas como marcadores de SHP12, são achados pouco frequentes, o mesmo se aplicando à cianose, rara e de aparecimento tardio. A sintomatologia respiratória, quando presente, consiste de dispneia (em cerca 20% dos doentes13, inicialmente de esforço e tardiamente em repouso), platipneia, que se refere à dispneia que surge em ortostatismo e é aliviada pelo decúbito e ortodeoxia (queda da saturação do O2>5% ou da PaO2 >4 mmHg na passagem de decúbito à posição erecta). O diagnóstico da SHP é baseado na demonstração de anormalidades nas trocas gasosas e na identificação de dilatações vasculares intrapulmonares. A única alteração funcional tipicamente observada é a redução da DLCO14. A avaliação gasimétrica em ar ambiente, que deverá ser realizada após 10 minutos em ortostatismo, é obrigatória para fundamentar o diagnóstico e definir a gravidade do quadro de acordo com a classificação proposta pelo ERS task force15 (ligeira (PaO2 >80 mmHg), moderada (PaO2 >60 e <80 mmHg), grave (PaO2 >50 mmHg e <60 mmHg) e muito grave (PaO2 <50 mmHg). A diferença alveolocapilar é sempre >15 mmHg. Deve ser realizada também prova de saturação com 100% de O2, sendo que habitualmente, nos doentes com SHP, esta prova proporciona correcção da hipoxemia. A presença de dilatações vasculares intrapulmonares pode ser demonstrada por três modalidades de exames de imagem: ecocardiografia com contraste, cintigrafia com macroagregados de albumina marcados com Tc-99 e angiografia pulmonar. A ecocardiografia com contraste TT ou ET é um método simples e não invasivo considerado o gold standardpara o rastreio e diagnóstico de vasodilatação intrapulmonar16. Em indivíduos saudáveis, as microbolhas geradas pela agitação da solução salina injectada em veia periférica são absorvidas pelos capilares pulmonares e não aparecem nas cavidades cardíacas esquerdas. Por outro lado, o seu aparecimento nas cavidades esquerdas após o mínimo de três ciclos cardíacos implica a existência de vasodilatação intrapulmonar. No mesmo princípio é baseado o método da cintigrafia com macroagregados de albumina marcados com Tc-99, que permite quantificar o grau de vasodilatação intrapulmonar (fracção de shunt) através da medição de produto marcado que, não sendo absorvido pelo sistema vascular pulmonar, se deposita a nível sistémico (principalmente cerebral). A fracção de shuntem doentes com SHP é de 10-71% (indivíduos saudáveis 3-6%). Ambos os métodos descritos são válidos, sendo a ecocardiografia mais sensível e a cintigrafia mais específica.

A escolha entre um ou outro método é fundamentada na existência de doença cardiopulmonar subjacente. Na sua ausência, a ecocardiografia é o método de eleição, assumindo a SHP como causa de hipoxemia17. Na presença de doença cardiopulmonar concomitante, a cintigrafia permitirá determinar quantitativamente o contributo da vasodilatação na perturbação de oxigenação17.

Dois padrões angiográficos foram descritos por Krowka: tipo I difuso e tipo 2 focal, tendo, estes últimos, indicação para embolização. A radiografia do tórax e a TAC de alta resolução podem mostrar, respectivamente, opacidades micronodulares ou reticulonodulares com predomínio basal com ectasia das artérias pulmonares centrais e dilatação dos vasos pulmonares periféricos basais18. A SHP tem um carácter progressivo, podendo ocorrer mesmo face a estabilidade da doença hepática, constituindo um factor independente de mau prognóstico. A sua presença traduz -se por significativa morbilidade, aumento da mortalidade e marcada redução da sobrevida média (10,6 meses em doentes com SHP versus40,8 meses em doentes sem SHP), o que atesta a importância da sua identificação19-22. Estes doentes devem ser submetidos a avaliação adicional de acordo com o modelo de doença cirrótica terminal (MELD), com o objectivo de determinar o grau de prioridade nas listas de espera para transplante hepático23,24. O tratamento da SHP inclui oxigenioterapia geralmente com carácter paliativo em doentes com PaO2 <60 mmHg ou com dessaturação induzida pelo exercício. Várias medidas farmacológicas têm sido testadas, mas até hoje nenhum estudo realizado mostrou benefícios. Hoje em dia a SHP é considerada indicação para transplante hepático23,25 , o que sublinha a importância do seu diagnóstico. A resolução completa da SHP tem sido observada em >80% dos doentes após transplante26. A normalização dos valores de O2 arterial pode demorar entre 2 semanas até 14 meses27. A mortalidade pós-operatória é  proporcional ao grau de gravidade da SHP, sendo que uma PaO2<50 mmHg e uma fracção de shunt>20% representam os factores preditivos mais importante de mortalidade pós- operatória21.


Download text