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EuPTCVHe0874-02832011000100003

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National varietyEu
Year2011
SourceScielo

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De um novo paradigma na gestão dos enfermeiros a espiritualidade no local de trabalho

Introdução

As questões relacionadas com a pessoa humana têm sido fulcrais na evolução científica, nos seus mais variados ramos. Da biologia à medicina, da sociologia à psicologia, da enfermagem à gestão. O conceito de pessoa, as suas capacidades, as suas características e o reconhecimento da sua dignidade tem vindo a alterar-se e, por conseguinte, também a provocar mudanças em vários campos do saber científico. No caso da saúde, a pessoa que, durante e logo após a Segunda Guerra Mundial, era entendida quase que como um somatório frio de órgãos e reacções fisiológicas a situações extremas (como infelizmente, as experiências eticamente escandalosas levadas a cabo neste período permitiram demonstrar) tem vindo a afirmar-se como um ser digno de respeito pela sua dignidade, um ser que procura a felicidade na sua vivência mundana, ética, e estética, e que procura um sentido para a sua vida. Na gestão, as pessoas que eram consideradas, inicialmente, mão-de-obra numa visão desfragmentada, reducionista e economicista (porém, admitimos, adaptada ao paradigma desse tempo), vêm reclamando o reconhecimento pelas suas capacidades emocionais, cognitivas e humanas, quer individualmente, quer nas equipas de trabalho, como seres que são livres, pensam, decidem e têm necessidades que vão além das relações interpessoais.

A dimensão espiritual no local de trabalho emerge, assim, nas organizações, porém, pouco explorada nas organizações de saúde, particularmente nas equipas de enfermagem. Neste estudo, efectuado no âmbito de estudos pós-graduados em gestão de recursos humanos, pretende-se explorar a percepção dos enfermeiros acerca da espiritualidade no seu local de trabalho.

Quadro teórico A espiritualidade no local de trabalho surgiu como tema de estudo na gestão no início dos anos 80 (Howard e Welbourn, 2004, p.181). Segundo Rego, Cunha e Souto (2007a), este é um tema emergente, porém, muito poucos estudos são efectuados nesta área específica. Os autores afirmam que «a espiritualidade dos líderes fecunda a espiritualidade das organizações () ambientes organizacionais espiritualmente ricos (i.e., que permitem aos colaboradores realizar trabalho com significado para a vida) podem conduzir a mais elevados desempenhos individuais e organizacionais () esses ambientes nutrem ou fomentam a auto-eficácia, o optimismo, a esperança e a resiliência dos empregados. Em consequência, estes definem objectivos individuais mais ambiciosos, envidam maiores esforços motivacionais, resistem melhor ao stress, são mais perseverantes perante os problemas e obstáculos e, são mais capazes de redireccionar os objectivos ()» (2007a, p.9). Todas estas competências podem ser classificadas como transversais, ou mesmo meta-competências, pois são condição de uma actuação eficaz em matérias mais específicas, enquadram-se numa dimensão de saberser que, assumindo um ponto de vista integrado, holístico, da pessoa humana, são determinantes para os saberes-fazer actuais, tendo em conta o contexto propiciador de qualidades como a flexibilidade, a polivalência e o controle da incerteza.

Não obstante este ser um tema emergente no debate científico na área da gestão, os trabalhos publicados, em particular aqueles aos quais tivemos acesso, realizaram-se em organizações que não pertenciam ao universo da saúde (quadro 1). No entanto, reconhecemos a importância de um conhecimento mais profundo deste contexto e entendemos que as conclusões desses estudos podem contribuir para guiar os gestores desta área específica na tarefa de desenhar estruturas e fluxos de um rosto mais humano que potenciam uma prestação de serviços com maior qualidade, num melhor ambiente organizacional.

As conclusões dos estudos efectuados, independentemente da metodologia e das amostras, evidenciam a necessidade e a importância da espiritualidade no local de trabalho a nível pessoal, interpessoal e da organização.

A espiritualidade da pessoa humana As pessoas são recursos humanos se entendidas no seu pleno valor e não como mais um segmento utilitário de recursos necessários à dinâmica e funcionamento de uma organização. A organização é fundamentalmente as pessoas, porque elas conferem-lhe desenvolvimento, dinamismo, criação, transformação e abertura aos novos tempos e aos novos desafios. Ser pessoa, nas organizações de hoje, deverá prender-se com a oportunidade de demonstrar o seu valor, ter oportunidade de realizar-se como ser humano, ter oportunidade de encontrar, no trabalho, um sentido transformador para a sua existência e colaborar na espiritualidade da organização, enquanto grupo de pessoas com objectivos laborais comuns, mas, acima disso, iguais em dignidade e humanismo.

Pessoa é ser em relação. O ser humano realiza-se na relação com os outros. O espaço de realização da pessoa é a própria pessoa nos seus encontros e relações que não permitem que alguma fique igual ao que era anteriormente. Como refere Arduini «O Homem é a realidade mais profunda e mais complexa que conhecemos no âmbito do universo natural. Por isso, oferece visualizações diversas sobre a mesma totalidade» (1989, p.9).

E daí a sua multidimensionalidade. A pessoa não pode ser vista apenas sob um ângulo, como se uma perspectiva fosse expressão total do seu conteúdo.

As dimensões físicas, sociais e psicológicas da pessoa são facilmente reconhecidas, porém, a dimensão espiritual parece continuar sob um véu de mistério.

O retorno à vivência espiritual é evidente: de uma forma macroscópica, podemos verificar o aumento da procura de recursos espirituais e livros de autoajuda nas livrarias (poderíamos dizer que não passa despercebida a quantidade de livros publicados na área da gestão, cujo conteúdo é puramente espiritual, sem que esse termo espiritual sequer conste no título); a nível microscópico, temos a procura individual de cada pessoa por um bemestar abrangente e profundo através de novos estilos de vida, da adopção de novas formas de viver, de novos caminhos para encontrar um sentido na vida, incluindo, obviamente, as suas vivências diárias interpessoais, em particular, nas organizações. O local de trabalho é um ponto de encontro entre pessoas diferentes e, simultaneamente, iguais em essência.

Falar de espiritualidade é falar em espírito que, na sua etimologia, significa ar ou sopro. No livro do Génesis, o Homem se tornou completo após o sopro que o animou, porque espírito é anima.

A espiritualidade da pessoa humana não encontra uma definição única (McSherry, 2000; Narayanasamy, 2001; Caldeira, 2002). É individual, universal, dinâmica, multidimensional e integradora. A espiritualidade é uma dimensão que confere significado à vivência humana e consistência às nossas experiências. O espírito humano é interioridade na reflexão profunda e natural acerca das questões mais íntimas e misteriosas da vida.

É exterioridade sempre que partilha esta condição de existir, como ser com os outros e com o mundo, numa relação de responsabilidade. Entendemos que esta afirmação pode ser percebida igualmente num contexto organizacional, nomeadamente, nas políticas de responsabilidade social. O enfermeiro também é pessoa e poderá começar por compreender a importância da espiritualidade reflectindo e cultivando a introspecção acerca da sua própria espiritualidade e a forma como o local de trabalho é um meio, um espaço, ou um recurso para tal. A interpretação dos trabalhos de dois autores (Narayanasamy, 2001 e McSherry, 2000), ambos enfermeiros, que têm investigado as necessidades espirituais e a espiritualidade na área da enfermagem, permite sistematizar as seguintes necessidades espirituais: reconhecimento de um sentido na vida; amor e relações harmoniosas; perdão; esperança; confiança; manutenção de crenças e valores pessoais; manutenção de rituais espirituais e de criatividade.

A espiritualidade no local de trabalho Uma pesquisa simples na internet, em qualquer motor de busca, resulta num leque de sugestões de âmbitos variados, todos relacionados com workplace spirituality, ou seja, sites de organizações, fóruns de discussão, resumos e apresentações de livros com datas de publicação recentes, artigos de opinião ou artigos científicos. Definir a espiritualidade no local de trabalho também não é consensual, pois quem a define é a pessoa e cada uma tem uma visão diferente da organização e do papel que a organização tem na sua própria vida. Pela sua pertinência, existem algumas definições que passamos a apresentar e comentar. Mckee (2006) refere que Giacalone, no seu mais recente livro sobre esta temática - Handbook of workplace spirituality and organizational performance - apresenta 14 definições deste conceito. McKee opta por seleccionar a definição proposta pelo próprio Giacalone que encara a espiritualidade no local de trabalho como «a framework of organizational values evidenced in the culture that promote employees experience of transcendence through the work process, facilitating their sense of being connected to others in a way that provides feelings of completeness and joy» (2006, p.19). Reconhecemos que as dimensões inerentes à espiritualidade estão presentes nesta definição, embora sistematizadas de diferentes formas, estão sempre presentes dimensões como a natureza individual do fenómeno, a sua universalidade, complexidade, dinâmica e potencial integrador da espiritualidade.

Kolodinsky, Giacalone e Jurkiewicz (2008) abordam três formas de entender a espiritualidade na organização: a um nível mais basilar, a espiritualidade na organização pode ser entendida como a simples aplicação dos valores espirituais pessoais no local e trabalho; um segundo nível de compreensão implica a compreensão dos valores da organização; num terceiro nível, que os autores denominam interactivo, a espiritualidade da organização baseia-se na interacção dos valores espirituais individuais com os valores espirituais reconhecidos na organização. Este nível é aquele que mais corroboramos, pois se a pessoa se concretiza na relação com outras e a organização é um espaço de relação, então, não podemos considerar outra forma de entender a espiritualidade no local de trabalho senão de uma forma interactiva.

Rego, Cunha e Souto definem a espiritualidade nas organizações como «sendo constituída pelas oportunidades para levar a cabo trabalho com significado, no contexto de uma comunidade, experimentando um sentido de alegria e respeito pela vida interior» (2007a, p.15). Destes conceitos, os autores que criaram a escala que utilizaremos neste estudo, identificaram 5 dimensões relacionadas com a espiritualidade nas organizações: sentido de comunidade na equipa; alinhamento entre os valores organizacionais e individuais; sentido e préstimo/ utilidade para a comunidade; sentido de alegria no trabalho; e oportunidades para a vida interior.

Reconhecemos que estes autores têm uma visão mais alargada da espiritualidade. Enfatizamos a inclusão do sentido de alegria no trabalho e oportunidades para a vida interior por nos parecerem específicas desta temática e, provavelmente, constituirão os aspectos mais subjectivos, mais difíceis de medir e, por isso, com maior probabilidade de ser questionada a sua cientificidade.

Existem dois conceitos que se relacionam com a espiritualidade na organização, mas não têm o mesmo significado, ou seja, não esgotam o seu sentido. O primeiro é o conceito de valor espiritual.

A espiritualidade na organização relaciona-se com os valores espirituais, mas não é somente isso. Os valores espirituais que podem ser mencionados são: a honestidade, a confiança, a temperança, a prudência, a honradez e a compaixão. Os valores espirituais apelam a uma postura ética, pois baseiam-se no respeito intransigente pela pessoa humana e pela sua dignidade. O segundo conceito é o conceito de liderança espiritual, central na investigação de Fry (2005) e fortemente relacionado com a transformação organizacional. A liderança espiritual, segundo o autor, promove a motivação e inspira os colaboradores numa perspectiva transcendente e numa cultura baseada em valores altruístas no sentido de produzir um clima de trabalho motivacional, de compromisso e produtivo.

As organizações como sistemas abertos e o conceito de holismo As organizações, formadas e transformadas pelas - e devido às - pessoas são consideradas organismos vivos e, por isso, em constante interacção e transformação.

Não se pode dizer que uma organização é a soma dos seus departamentos, dos seus colaboradores, ou das suas divisões. Uma organização é uma entidade que pode ser assim definida estruturalmente, mas tal nunca abarca o seu sentido intrínseco, pois este resulta sempre em algo maior do que a soma das partes. Por exemplo, um hospital como organização não é a soma dos serviços médicos, cirúrgicos, de apoio, administrativo, limpeza e outros. Também não é definido pelos seus objectivos, funções e visão.

Falar da organização implica atender a um conjunto de variáveis que todos sabemos estar implícitas mas, paradoxalmente, não lhes reconhecemos lugar objectivo.

As organizações têm uma identidade a que nos atrevemos chamar teia invisível que liga todas as partes e que, não sendo visível e objectivável, é fundamental para o funcionamento do todo. Essa teia tem fios de vários tipos (valores, crenças, motivação, desempenho, identidade) mas de uma natureza (espiritual).

A cientificidade da espiritualidade nas organizações no século XXI Fry (2003) afirma que a liderança espiritual é a performance de excelência nas organizações do século XXI. O mesmo autor indica as quatro razões principais que poderão causar a não aceitação desta temática pela comunidade científica: a inexistência de um conceito consensual e aceitável; instrumentos de medida pouco adequados; desenvolvimento teórico limitado; e questões legais. Aponta ainda o reducionismo da espiritualidade à religião como um obstáculo a ultrapassar, pois a religião está num plano horizontal da espiritualidade e os agnósticos, por serem seres espirituais, poderão alimentar a sua espiritualidade através de outros caminhos, como por exemplo, com as relações interpessoais. Kolodinsky, Giacalone e Jurkiewicz (2008) referem que o conhecimento científico que está em construção e desenvolvimento referente à espiritualidade nas organizações é, frequentemente, rotulado de subjectivo e sem rigor científico. Este é, de facto, um dos obstáculos que os investigadores terão que ultrapassar. A argumentação não poderá sair do campo da subjectividade, pois a subjectividade faz parte da natureza do conceito espiritualidade, o que não significa que não seja possível criar indicadores comuns e constructos que permitam a sua medição a um nível mais objectivo. São disso exemplo as escalas apresentadas na revisão dos estudos atrás sistematizada que, apesar de serem consideradas ainda insuficientes, permitem a obtenção de dados quantificáveis relacionados com a espiritualidade nas organizações.

Os benefícios de um novo paradigma Rego, Cunha e Souto (2007a) citam Brown, por afirmar que a espiritualidade no local de trabalho é uma espécie de cura para os males da gestão moderna.

Pelas ideias que temos vindo a apresentar até aqui, podemos afirmar que a espiritualidade na organização promove o bem-estar a nível individual e organizacional. Assim sendo, consideramos que uma gestão que tenha em conta a espiritualidade poderia contribuir para o aumento da criatividade das pessoas, as quais melhorariam o seu poder de comunicação, aumentariam o seu comprometimento nas equipas através de um sentimento genuíno de confiança, adoptariam comportamentos éticos e teriam possibilidade de se desenvolver moralmente, pois sentir-se-iam mais identificadas com os objectivos e a visão da organização. Desta forma, as pessoas tentam encontrar sentido, paz, harmonia e, fundamentalmente, felicidade, tal como afirmam Marques, Dhimane King (2007). Se considerarmos que as organizações se personificam através das suas pessoas, então as organizações terão que acompanhar estes desejos. Ao criar ambientes espirituais, as organizações estarão a promover o bem-estar, o equilíbrio, o dinamismo, o empenho, o sentido de identidade e de necessidade da organização para a realização pessoal e, em última análise, a felicidade interna e externa, ou seja, dos colaboradores e dos clientes.

As organizações de saúde As organizações de saúde, mais especificamente as que se dedicam à prestação directa de cuidados, têm um objecto de trabalho que não é senão, o mais complexo e peculiar, a pessoa humana. Neste contexto, a especificidade é essa: trabalhar com pessoas humanas para e com pessoas humanas doentes. Isto implica que os processos de tomada de decisão sejam particulares, pois não são da mesma natureza do que aqueles relacionados com a decisão da cor de uma nova marca de sapatos ou de um novo clip comercial para uma empresa, embora com reconhecida importância. Quando a vida está em jogo de decisão, não outros problemas que se assemelhem a essa complexidade. Aos colaboradores destas organizações, em particular aos enfermeiros, solicita-se um cuidar humanizado durante o seu tempo de trabalho, num contexto que é, quase sempre, de confronto com o sofrimento de pacientes, famílias e de climas organizacionais de insatisfação, se atendermos à actualidade relativamente às alterações na carreira e pretensão de alterações remuneratórias.

Dos enfermeiros espera-se uma prestação de cuidados humanos, ou seja, atendendo a todas as dimensões da pessoa. Tal como na gestão, na área da enfermagem têm aumentado os trabalhos de investigação acerca do lugar e importância da espiritualidade. O encontro do enfermeiro e da pessoa que precisa de cuidados tem sempre a doença como contexto (seja na vertente de prevenção, tratamento ou reabilitação) e a doença ou situações de sofrimento são, indubitavelmente, oportunidades de questionar a vida e reflectir sobre as questões últimas do seu sentido. Então, para a prestação de cuidados holísticos, o enfermeiro deverá entender, também, a espiritualidade da pessoa humana. O enfermeiro convive com o sofrimento e, porque conviver é com viver, é-lhe difícil não pensar na sua própria vida e momentos de sofrimento. As equipas poderão desempenhar um papel catalisador nestes processos, pois a partilha destes problemas aumenta o sentido de espírito de equipa e poderá reduzir a probabilidade de Burnout. Lembramos a obra do enfermeiro Queirós (2005), na qual o autor descreve o Burnout como presente no local de trabalho dos enfermeiros. O local de trabalho dos enfermeiros é de natureza espiritual. Trabalhar com a vida humana é um desafio e uma forma inequívoca de perceber que a pessoa é um ser vulnerável e que a vida tem um fim. De uma forma esperada ou súbita, a morte aparece como uma realidade inexorável.

Conviver com este aspecto e estar implicado nestes processos poderá ser causador de sofrimento às equipas de saúde e em particular ao enfermeiro que acaba por encontrar no rosto dos que cuida a sua própria vulnerabilidade e finitude. A capacidade de desmembrar estas situações, entendê-las e aprender com elas, passa, sem dúvida, pela sensibilidade dos gestores. Porque gerir gente que cuida de gente é menos difícil para quem apresenta um perfil cuidador.

Gerir gente que cuida de gente: gestores cuidadores Gerir gente que cuida de gente deve ser, acima de tudo, um trabalho de coerência, pois existiria um desequilíbrio desumano entre exigir cuidados humanizados, e de qualidade, quando a gestão das pessoas a quem se solicita essa postura não se baseia, também ela, em princípios humanos. A gestão de pessoas numa organização de saúde pode ser o ponto de partida ou a meta de um rosto mais humano na saúde e, simultaneamente, um ambiente mais humano nas equipas e nas organizações. Porque se humanizar é tornar mais humano, tornar mais humano é espiritualizar.

Metodologia Propomo-nos explorar e compreender a percepção que os enfermeiros têm acerca da espiritualidade no local de trabalho. Partimos da seguinte questão de investigação: Qual a percepção dos enfermeiros acerca da espiritualidade no seu local de trabalho?.

O instrumento de colheita de dados foi um questionário constituído por duas partes e que foi respondido por 40 enfermeiros a frequentar o curso de complemento de formação em enfermagem, constituindo uma amostra por conveniência. A primeira parte apresenta nove questões fechadas, relacionadas com as variáveis de atributo, uma questão aberta acerca da vivência espiritual e duas questões fechadas de opinião acerca da temática. A segunda parte do questionário foi constituída pela escala de avaliação da espiritualidade no local de trabalho (Rego, Cunha e Souto, 2007a).

A escala é constituída por 19 afirmações, distribuídas em 5 dimensões, com 6 níveis possíveis de resposta tipo Likert. As dimensões são as seguintes: sentido de comunidade na equipa (inclui itens relacionados com o espírito de equipa, o zelo mútuo entre os membros e o sentido de comunidade e de propósito comum); alinhamento do indivíduo com os valores da organização (inclui descritores relacionados com a compatibilidade dos valores e da vida do indivíduo com os valores da organização); sentido de préstimo à comunidade (inclui itens relacionados com a utilidade e importância do trabalho à comunidade); alegria no trabalho (inclui itens relacionados com o sentido de alegria e de prazer no trabalho); e oportunidades para a vida interior (inclui itens relacionados com o modo como a organização respeita a espiritualidade e os valores espirituais do indivíduo).

A colheita de dados foi efectuada em Novembro de 2008. Foi entregue uma carta de esclarecimento aos participantes, salvaguardando as questões éticas inerentes ao estudo, bem como, as instruções de preenchimento. Foi entregue juntamente com o questionário em envelope fechado a devolver após o preenchimento numa caixa colocada na sala. De referir que a investigadora não estava presente.

A aplicação do instrumento de colheita de dados foi aprovada pelo Reitor da Universidade onde os participantes se encontravam em formação.

Os dados foram analisados através da estatística descritiva, determinando-se frequências absolutas, frequências percentuais e medida de localização, nomeadamente a média e moda. Esta pesquisa decorreu no decurso de uma pós-graduação em gestão de recursos humanos, pelo que, o tamanho da amostra e o tratamento descritivo dos dados constituem limitações da mesma, não obstante, reconhecermos a sua importância na visibilidade de uma temática cuja investigação é ainda exígua em enfermagem.

Resultados Através da análise estatística dos dados é possível saber que os respondentes têm uma média de 41 anos e 75% são do sexo feminino, dado este que vai ao encontro da natureza predominantemente feminina da profissão. Os sujeitos da amostra, em 82% dos casos, desempenham as suas funções profissionais em contexto de cuidados de saúde diferenciados, ou seja, em contexto hospitalar. A amostra é heterogénea relativamente ao tempo de serviço, pois os sujeitos têm entre 6 e 30 anos de serviço. Porém, verificamos que a maioria desempenha funções entre 11 e 20 anos. No que diz respeito aos dados resultantes das respostas às questões abertas colocadas, constatámos que, embora 87% da amostra tenha considerado a espiritualidade no local de trabalho um fenómeno importante, as respostas tendem a fixar-se equilibradamente em posições extremas, nomeadamente, entre os sujeitos que pensam muitas vezes e os que raras vezes pensam na questão da espiritualidade no local de trabalho, como podemos verificar no gráfico 1.

A questão relacionada com a vivência espiritual obteve 79% de respostas, sendo notório o reducionismo da espiritualidade à religião, pois entre os respondentes, 93% referiram apenas a sua religião e os restantes referiram viver a sua espiritualidade na família e nas alegrias do quotidiano.

Relativamente à escala podemos verificar os resultados apresentados no gráfico nº2, distribuídos por cada dimensão. Nesta segunda parte do questionário, contámos com 38 sujeitos da amostra, visto dois não terem respondido. Ao analisar a espiritualidade no local de trabalho para cada dimensão considerouse baixa para um resultado igual ou inferior a 3, moderada para um resultado entre 3 e 5 e alta para um resultado igual ou superior a 5. Assim, podemos verificar que em todas as dimensões o resultado foi moderado. Uma atenção especial para a dimensão sentido de préstimo à comunidade que se encontra num nível elevado. Na apreciação do gráfico nº2 destacamos a dimensão alegria no trabalho com 4,6.

Discussão A maioria dos participantes do estudo exerce a sua profissão em contexto de internamento e têm maior probabilidade de encontrar utentes e famílias sujeitas a situações de elevado grau de sofrimento agudo. Mesmo as doenças crónicas podem apresentar períodos de agudização. Estas situações são promotoras de introspecção e promoverão no enfermeiro, de forma mais ou menos explícita, esse pensamento. Por outro lado, os profissionais de cuidados de saúde primários vivenciam uma continuidade de cuidados, quer na vertente preventiva, quer na de reabilitação, muitas vezes durante anos, tornando-se elementos próximos do doente e da família. Embora de natureza diferente, os problemas vivenciados pelos clientes podem suscitar no enfermeiro sentimentos que o levem a pensar a vida e o seu sentido. Um ambiente organizacional favorável deverá repercutirse na qualidade das actividades desenvolvidas pelo enfermeiro, bem como, no sentido ético que reconhece na sua intervenção. Como afirmam Rego, Cunha e Souto (2007a, p.10), quando os profissionais encontram no seu trabalho significado para as suas vidas, esse trabalho transforma-se de emprego em vocação. O resultado da dimensão alegria no trabalho poderá parecer dissonante, que, atrás expusemos que o enfermeiro trabalha em contexto de sofrimento. Aqui reconhecemos uma vertente espiritual, na visão transformadora do sofrimento em alegria, não por menosprezo dos sentimentos das pessoas, mas pela oportunidade de ajudar essas pessoas a ter mais qualidade de vida e bem-estar. A este propósito, no estudo transversal que efectuaram com 30 enfermeiros de uma unidade semi-intensiva e de uma unidade de oncologia, Pedrão e Beresin (2010) encontraram scores positivos no nível de bemestar espiritual dos enfermeiros.

De referir, ainda, que a totalidade da amostra tem um vínculo estável com a organização (todos os sujeitos pertencem ao quadro). A amostra é toda constituída por enfermeiros graduados. A experiência profissional que estes enfermeiros contam permitenos afirmar que terão vivenciado múltiplas situações e contextos de ambiente organizacional diferentes, transformando-os. Pelos resultados da escala, e nesta população, poderíamos dizer que os enfermeiros com vínculos laborais seguros percepcionam a espiritualidade no local de trabalho como moderada.

A homogeneidade da amostra nestes dois indicadores de caracterização não nos permite perceber se outros tipos de vínculos laborais terão outra expressão nos resultados, configurando uma limitação do estudo.

O sentido de préstimo à comunidade foi a dimensão que se destacou e associamos este fenómeno à natureza cuidadora da profissão de enfermagem, tradicionalmente ligada a uma vertente caritativa que persiste nas bases de formação profissional e na ética da relação com a pessoa doente.

De salientar que na questão aberta, relacionada com a vivência espiritual, apenas dois enfermeiros abordaram a espiritualidade numa vertente não religiosa, o que nos parece uma visão reducionista de um conceito tão abrangente e complexo. Como afirmam Marques, Dhiman e King (2007, p. 35), é possível uma liderança e um ambiente organizacional espiritual sem que se siga alguma doutrina religiosa particular.

Esta constatação poderá implicar a necessidade de uma melhor definição prévia de espiritualidade em trabalhos futuros.

Conclusão A espiritualidade é uma dimensão da pessoa humana, conferindo-lhe uma natureza interpretativa relativamente às suas vivências. Seja qual for a forma como se caracteriza - ateu, agnóstico ou espiritual o ser humano necessita encontrar sentido na sua vida e respostas às questões que esta vai colocando, de forma mais ou menos súbita.

Porque o Homem pensa, decide e faz-se pessoa nas relações interpessoais, caracteriza-se igualmente por uma vertente social, onde se concretiza. Nesta esfera social poderemos encontrar o mundo do trabalho e, em particular, as organizações.

As organizações são organismos vivos, porque são constituídas por pessoas que entre si tecem teias de relações e comunicação que, em si mesmas, configuram a organização. Nestes tempos conturbados, em que a noção de estabilidade e perenidade se esbateu, cada vez mais a busca de uma vantagem sustentável se baseia na definição clara de uma visão e de uma missão motivadoras que sirvam de base à construção de uma identidade distintiva.

Uma gestão capaz de motivar os colaboradores será certamente uma das formas mais eficazes de o alcançar. O local de trabalho, dada a importância de que se reveste, quer para o trabalhador individual, quer para a sua organização, quer para a comunidade em que se insere, deverá ser encarado não apenas como uma fonte de rendimento monetário, mas também de realização pessoal e social. Porque as organizações são constituídas por pessoas que necessitam satisfazer necessidades de amor, pertença, desenvolvimento e préstimo.

A espiritualidade no local de trabalho é um tema relativamente recente na investigação da gestão de recursos humanos, entendidos, também por isso e cada vez mais, como pessoas. Neste virar de século, em que muitas descobertas e avanços foram conquistados, segue-se uma fase da descoberta interior da própria organização. Não importa somente a imagem exterior, mas também ou mais a imagem interna, entenda-se o clima favorável ao desenvolvimento, realização e bem- estar das pessoas. Neste estudo, com uma amostra constituída por enfermeiros, considerou-se de interesse compreender a sua percepção acerca da espiritualidade no local de trabalho, caracterizado pelo valor da saúde, sofrimento e vida, bem como, de profissionais aos quais o profissionalismo faz imperar uma atenção às pessoas na sua totalidade.

Percebeu-se que este fenómeno é percepcionado pelos enfermeiros e, assim deverá ser atendido pelos gestores. Sugere-se mais investigação relativamente à percepção dos gestores, em relação à espiritualidade no local trabalho, como também, estudos acerca da satisfação das equipas com liderança espiritual e repercussões na produtividade.

Reconhecendo as limitações desta pesquisa considera-se um contributo para o despertar, para o aprofundamento do conhecimento, pois trata-se de um tema emergente no debate científico na área da gestão e os trabalhos disponíveis foram realizados em organizações que não pertenciam ao universo da saúde.


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