História social da enfermagem brasileira: afrodescendentes e formação
profissional pós-1930
Introdução
No Brasil, a passagem do século XIX para o século XX evoca o final de um
sistema político, económico e social estruturado na posse e coisificação de
pessoas, ao mesmo tempo, inaugura o modelo oficial de ensino da Enfermagem
moderna. Deste cruzamento trata o presente artigo, cujo período, marcado por
imprevisibilidades e dissonâncias, recupera origens de problemas ainda hoje
vividos. Contudo, analisar influências do debate racial e seus impactos na
criação de espaços de formação profissional da Enfermagem brasileira exige
rastrear, nas falas inaugurais de um novo tempo, representações impostas aos
afrodescendentes. A República Velha (1889-1930), que baliza o contexto da
institucionalização das ciências aplicadas no Brasil, possibilita redimensionar
imagens sociais que significavam negros como degenerados, como pertencentes a
um tipo humano inferior, excluindo-os do processo de formação e orientação
profissional.
Presentes nos discursos inaugurais do novo regime, as imagens forjadas para os
negros geravam um universo estereotipado, acentuado por uma legitimidade
totalizadora, que pretendia controlar a população afrodescendente e suas
interferências na vida social mais ampla. Como caracterizou Emilia Viotti da
Costa (Costa, 1999), a elite branca sentia-se afrontada ao equipar-se aos que
um dia foram seus antigos cativos, representação que atravessou incólume a
escravidão no Brasil, um dos últimos países a abolir o sistema em 1888. Mesmo
contrária aos princípios da democracia, a mistura das raças e a distinção de
classe social impedia a construção da identidade nacional como imaginada pelas
elites no poder, isto é, regenerada pelo branqueamento produzido pela imigração
europeia. Processadas a partir da noção superioridade/inferioridade tributária
da biologia evolucionista a tendência desconsiderava o brasileiro comum, nessa
medida, classificado como inferior, desprestigiado do ponto de vista da
inteligência e da moral (Mota, 2003).
A desestabilização da ordem e do progresso nas primeiras décadas do Século XX
era associada à incapacidade e ignorância atribuídas aos negros, cuja
ressonância atingiu o movimento de padronização da formação profissional no
Brasil, historicamente reconhecido pela Missão Parsons. A historiografia
existente indica que ao se referir ao contingente de trabalhadores da
enfermagem, que atuava no período imediatamente anterior a 1920, Ethel Parsons
os qualificava como ignorantes, sem condição intelectual, moral e estética para
o trabalho executado pela enfermeira padrão, vale dizer, mulher, branca e
culta (Barreira, 1997; Moreira 1999).
A partir da problematização anunciada, a análise proposta tem como objetivo
ampliar o debate em torno das representações construídas sobre afrodescendentes
no Brasil após a Primeira República (1889-1930), bem como suas influências na
formação da identidade profissional do enfermeiro, em específico, o estudo
analisou como as representações da degenerescência atribuídas aos
afrodescendentes interferiram no processo de construção da imagem social de sua
principal personagem: a enfermeira.
Quadro teórico
Nas primeiras décadas do Século XX, a intolerância frente aos negros recém-
libertos foi balizada e disseminada por médicos e advogados, os quais
vinculavam comportamentos e compleição física de homens e mulheres
afrodescendentes a taras primitivas, que os conduziam naturalmente às margens
da sociedade, da qual emanava o rol de débeis, criminosos e degenerados (Silva,
1945). Práticas disciplinares, datadas do início do século XX, esquadrinhavam o
corpo social eliminando o diferente/divergente.
De maneira unidirecional e progressiva, as sociabilidades existentes dotavam
cidades brasileiras, com especial atenção para São Paulo, de uma vasta rede
institucional de vigilância sanitária e controle social. Vinculados à medicina
e ao direito, administradores de instituições públicas como Instituto de
Identificação, Sociedade de Medicina-Legal e Criminologia de São Paulo,
Hospital de Juqueri, Manicômio Judiciário, entre outros, retomavam o projeto
civilizador proposto à nascente República, avaliada pelas elites políticas e
dominantes como corrompida pelos vícios da democracia. Autointitulados arautos
da civilização, médicos e advogados impunham práticas exemplares capazes de
reprodução em outros centros urbanos, pois o progresso material requerido para
o Brasil deveria pautar-se em uma nova educação dos sentidos, que
reconfigurasse à vida social mais ampla modernizando os costumes.
A vida urbana fabricava redes de sociabilidades diversas, que rompiam limites
impostos pela antiga representação de cultura, orientando práticas sociais
instauradoras a partir de um novo quotidiano, vale dizer, classificado, medido,
testado, identificado, vacinado, impondo ares de um cosmopolitismo às avessas.
As alterações sofridas redefiniram sociabilidades na tentativa de eliminação da
memória afetiva do outro, que fosse singular ou atrelado ao universo
sociocultural africano e afro-brasileiro. Ao projetar uma nova sociedade,
idealizada segundo padrões de vida e consumo do mundo europeu, regras de
etiqueta, noções de bem viver, educação dos filhos, literatura consumida entre
outros aspetos eram ditados por compêndios, manuais e publicações congéneres
buscavam higienizar costumes e impor novas práticas sociais a uma sociedade
avaliada como corrompida pela miscigenação (Schwarcz, 1993).
Alinhadas às normas médicas e jurídicas, as elites no poder transformavam
protocolos da medicina e do direito em fundamentos estratégicos, que impunham
regras de comportamento frente à nova realidade social, política, económica,
cultural, portanto, histórica do Brasil. As alterações propostas capacitariam o
brasileiro comum, neste contexto, representado como incapacitado. Se antes o
Brasil era pensado como local de degredo, pela ideia de paraíso ou ainda pelas
utopias do extraordinário, na República as imagens produzidas assumem um
arcabouço científico pautado no modelo evolucionista, que representava o país
como local de incivilidade, imperfeito, comprometido física e moralmente. Tais
diagnósticos acarretaram enorme prejuízo às populações afrodescendentes, alvos
móveis de práticas saneadoras da sociedade, as quais fabricavam tensões
permanentes.
Como destacado por Marta Maria Chagas de Carvalho, critérios raciais traçavam
os limites das intenções republicanas distinguindo populações educáveis,
capazes portanto de cidadania e populações em que o peso da hereditariedade
(leia-se, sobretudo, raça') era marca de um destino que a educação era incapaz
de alterar (Carvalho, 1997, p. 298). A fabricação da incapacidade hereditária
refletia no processo de consolidação da Enfermagem Moderna no Brasil, ao mesmo
tempo, moldava a identidade profissional a partir da exclusão social da mulher
brasileira, miscigenada, afrodescendente que, nesses termos, era depreciada,
representada como menor na escala de valores impostos pela medicina eugénica,
assumidos no bojo da formação profissional da enfermagem brasileira em 1920.
A perspetiva antropológica italiana é singular no que concerne às técnicas
antropométricas utilizadas para controlar o social no início do século XX.
Tributária das dogmáticas do médico italiano Cesare Lombroso, a teoria da
degeneração da raça estabelecia quadros tipológicos reveladores da
personalidade degenerada. A teoria lombrosiana tipificava morfologicamente
homens e mulheres a partir da deteção de estigmas da degenerescência, isto é,
traços comuns, sinais biotipológicos e outras características físicas
identificáveis anatomicamente.
Mesmo considerando não haver consenso entre a classe médica e intelectual em
torno da ideia de degeneração da raça, destacadamente Nina Rodrigues, Araripe
Junior e Manoel Bonfim, que negavam as premissas da supremacia racial, as
representações produzidas pela teoria de degeneração das raças contribuíram
para a difusão da ideia de inferioridade nata. A degenerescência moldava
sociabilidades pautadas em desafetos, humilhações e infortúnios geradores de
tensões permanentes (Mota, 2003). As imagens sociais do negro restabeleciam,
por assim dizer, a ideologia da vadiagem assumida nos tempos coloniais,
impregnando-os a uma condição inferior, uma falsa noção na qual o negro como
sinónimo de escravo forjava uma (anti)imagem depreciada socialmente. Neste
ponto, vale recuperar a máxima "diga-me com quem andas e te direi quem
és", do mesmo modo, determinista, geradora de sociabilidades que afastava
pessoas, sintomaticamente, brancos e negros.
George Reid Andrews caracterizou as relações estabelecidas entre brancos e
negros a partir do que considerou como leituras possíveis das vertentes do
darwinismo social. Mesmo com a existência de expoentes como André Rebouças,
Teodoro Sampaio, Luis Gama extrapolassem representações dominantes, Andrews
afirma que as imagens fabricadas impedia os negros de aproveitar as
oportunidades a eles oferecidas pela sociedade brasileira. Se fracassados no
processo de ascensão social, tal fracasso era por própria culpa, uma
confirmação da preguiça, ignorância, estupidez, incapacidade do
afrodescendente (Andrews, 1998, p. 210). De todo modo, produtores de verdades,
os significados atribuídos aos negros formavam a opinião pública, cristalizando
a figura do desviante a partir da pigmentação da pele. Assim, não é incorreto
afirmar que o projeto civilizador republicano implicou na biologização das
relações sociais esquadrinhado pelo saber-poder médico-jurídico. Todavia, como
afirmou André Mota, posições contrárias ao ideário racial foram minoritárias e
combatidas fulminantemente por um pensamento hegemónico racista e eugénico
(Mota, 2003, p. 46-7).
A condição dos afrodescendentes na Primeira República refletia teorias e outras
ciências derivadas do evolucionismo, cujos significados legitimavam o
antagonismo superioridade/inferioridade, pois articulados a partir de uma
natural supremacia branca. Concentrados em esforços políticos de reorganização
social, movimentos em torno de políticas públicas pretendiam reverter a imagem
social do Brasil no mundo, avaliado como local impuro, propício ao
desenvolvimento de doenças, inclusive, por sua característica maior, a
miscigenação de sua população. Na Primeira República, a visibilidade atribuída
deveria ser diametralmente alterada.
Metodologia
Estudo de natureza histórico-social, fundado no levantamento e sistematização
de documentos históricos armazenados no Centro Histórico Cultural da Enfermagem
Ibero-Americana, da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo ' CHCEIA/
EEUSP. Fontes primárias diversas (atas, relatórios, pareceres, memoriais,
manuais) foram balizadas com a produção académica atualizada e concernente ao
tema, vale dizer, a experiência do cuidado pré-profissional executado por
mulheres negras no Brasil e suas interfaces com profissionalização, que deu
origem à enfermagem moderna. As etapas do estudo consistiram em (i)
problematizar a exclusão de afrodescendentes nas origens da profissionalização
da Enfermagem no Brasil; (ii) levantar de fontes históricas primárias que
possibilitassem investigar o passado a partir dos problemas colocados pelo
presente; (iii) cotejar os achados com a produção académica atualizada visando
o estabelecimento de conexões entre as diferentes temporalidades que perpassam
a problemática central, qual seja, analisar a construção imagético-social
simbolicamente consolidada pela profissionalização da enfermagem brasileira e
para sua principal personagem: a enfermeira.
Resultados
Negras Não! A Enfermagem Padrão
Como caracterizado, médicos e advogados apontavam as diferenças raciais como
elemento danoso ao projeto republicano. A ação regeneradora da população
brasileira, eminentemente negra, conduziria à profilaxia do crime, combateria a
pobreza e elevaria a condição socioeducacional da população, contudo, impunham
como imperioso uma gradual mudança biológica, psíquica e social dos
brasileiros. Coube aos controladores da ordem adotar práticas consideradas
profiláticas, capazes de regenerar o brasileiro comum dos atavismos atribuídos
ao passado colonial e escravista, assim, elevar a nação ao estado mais avançado
da vida em sociedade, a cidadania plena. Como afirmou Jurandir Freire Costa a
ordem médica fez do afrodescendente fonte de doenças orgânicas, produtor de
defeitos morais e causa de prostituição (Costa, 1999, p. 122),
representações diametralmente opostas à desejada para a enfermagem e sua
principal personagem.
A historiografia sobre os negros no Brasil República indica que a visibilidade
social de afrodescendentes, ora evocada por representações que os significavam
como ignorantes, ora como naturalmente propensos aos desvios da moral,
acarretava enorme prejuízo à formação da cidadania. Somente na Segunda
República (1946-1964) a representação dominante do negro perde sua força sem,
contudo, desaparecer. Sintomaticamente, o período evoca a criação de escolas de
enfermagem em torno do padrão proposto pelo Decreto 20.109/31, que regulava o
exercício da enfermagem no Brasil e fixava as condições para equiparação das
escolas de enfermagem e instituições relativas ao processo de exame para
revalidação de diplomas (Brasil, 1974). Derivado da institucionalização do
modelo norte-americano encetado pela Missão Parsons, movimento original em
torno da fundação da Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde
Pública, em 1920, reconhecida em 1923 como Escola de Enfermagem Anna Nery, o
decreto fabricou a imagem da enfermeira diplomada no Brasil fundada na exclusão
de afrodescendentes.
Ieda de Alencar Barreira, ao destacar as circunstâncias do advento da
enfermagem moderna no Brasil, revela, nas fímbrias dos acontecimentos, como o
modelo de ensino da enfermagem assumido no bojo da Reforma Sanitária de 1920
permite recuperar o impacto da questão racial no processo de formação
profissional da enfermagem brasileira. Ao analisar processos que conduziram à
implantação da nova profissão, a autora indica que as representações dominantes
interferiram na formação e identidade profissional, pois a visibilidade social
decorrente da oficialização do ensino impedia o ingresso de homens e mulheres
negras, especificamente, a partir da implantação do modelo de ensino proposto
como padrão à profissionalização da arte e ciência do cuidado no Brasil. A
autora caracteriza o processo de consolidação do modelo americano, adotado como
padrão à formação da enfermagem nacional, impedia o ingresso de mulheres negras
ao pontuar que candidatas oriundas de famílias pobres poderiam ser bem
recebidas, mas o mesmo não ocorreria com as candidatas negras... (Barreira,
1997, p. 168-69).
A análise de Luis Antonio de Castro Santos e Liná Rodrigues de Faria acerca da
institucionalização da enfermagem brasileira evoca, do mesmo modo, a questão
racial. Sem realizar uma interpretação mais detida sobre o tema, ambos
consideram que a abordagem deve ser aprofundada, inclusive, pela pouca produção
existente. Os argumentos sugerem que incentivos e investimentos na formação
profissional pós-1930 como os eclipsados pelo Serviço Especial de Saúde Pública
' SESP, financiados pela Fundação Rockefeller, propiciaram mobilidade social e
ascensão profissional de negros ...mas apenas depois dos primeiros tempos de
formação dos quadros dirigentes..., reiterando, de certo modo, a mística
assumida pela Escola de Enfermagem Anna Nery (Santos e Faria, 2004, p. 142).
A cristalização de imagens que associavam pobres e negros a classes perigosas
marcou profundamente as relações sociais no Brasil. Tal corolário confere
visibilidade à padronização do ensino de enfermagem, como permite considerar o
artigo publicado na coluna Página de Estudante, do primeiro periódico da
Enfermagem brasileira, a Revista Annaes de Enfermagem. O texto intitulado
"A Eugenia", assim caracterizava o tema: As classes cultas da
sociedade brasileira começam a inquietar-se principalmente diante da ruína
física, mental e moral que tende caracterizar a época atual em nosso país, e já
compreendem a necessidade imperiosa de medidas capazes de conduzir-nos a uma
regeneração progressiva. A leitura dos trabalhos publicados a respeito por
Belizário Penna e Monteiro Lobato, e especialmente pelo Dr. Renato Kehl,
presidente da comissão Central de Eugenia, são verdadeiramente impressionantes,
incitando todos os brasileiros de boa vontade a lutar contra a degenerescência
da raça que, se não for contida em sua marcha avassaladora, acarretará
certamente a decadência da nacionalidade (...) evidentemente não há solução
para os males sociais fora das leis da Biologia! Devemos enfrentar
corajosamente todas as dificuldades e vencer a grande batalha que se impõe para
o aperfeiçoamento eugénico do nosso povo! (...) É isso que nos induz a pensar
na conveniência urgente de reforçarmos as legiões defensoras da Eugenia do
Brasil (...) Sem eugenia nada teremos realizado em proveito do Brasil de
amanhã... (Lopes, 1934, p. 25).
As representações impostas aos afrodescendentes se apresentavam diametralmente
opostas à imagem preconizada para a enfermeira. Marta Cristina Nunes Moreira,
ao analisar as origens da enfermagem brasileira, evidencia uma passagem
esclarecedora do ponto de vista do ingresso de mulheres afrodescendentes na
profissão, em específico, na Escola de Enfermagem Ana Nery. No espaço modelar
da formação profissional no Brasil, o problema gerado pela segregação racial
merece ser reiterado, na medida em que corrobora para desvelar os efeitos do
racismo na sociedade brasileira e suas implicações no âmbito educacional, em
específico na formação da enfermagem nacional:
É verdade que a política de organização da escola tinha sido evitar,
diplomática e estrategicamente, a admissão de negros, até que a opinião pública
em relação à profissão de enfermagem tivesse mudado. Isto era fundamental se se
pretendia atrair mulheres de melhor classe (...). Todas as vezes em que moças
de cor se candidatavam para entrar na escola, havia sempre outras boas razões
para que elas não fossem qualificadas, por isso nenhum problema havia surgido
até então. Na verdade, havia já na escola três estudantes que, apesar de
brancas, mostravam alguns traços de sangue negro. Foi enviada uma carta à
imprensa comunicando que nenhuma pretendente havia sido rejeitada por causa da
cor, mas não foi convincente, e o Departamento de Saúde achou que seria
aconselhável permitir o ingresso de uma moça negra, se acaso se apresentasse
alguma que preenchesse todos os requisitos para a admissão. Esta candidata
apareceu em março [1926], juntamente com as demais pretendentes sob forte
suspeita de que havia sido mandada por um dos jornais, e foi admitida. Isto
provocou uma enxurrada de protestos por parte das alunas, mas, após considerar
a questão, o Conselho de Estudantes finalmente decidiu que qualquer
manifestação de rejeição ou de descortesia para com uma colega de classe
demonstraria falta de respeito e de vontade de cooperar, e assim não houve mais
dificuldades. As estudantes deixaram claro, contudo, que esperavam que não
fosse admitida nenhuma outra negra por algum tempo (Miner apud Moreira, 1999,
p. 637).
É possível supor que as representações construídas sobre os afrodescendentes
referendaram construções que os significavam como inferiores, portanto,
incapacitados para assumirem funções de destaque na sociedade mais ampla, como
as possibilitadas pela profissionalização da Enfermagem. Ao projetar como ideal
as mulheres brancas para os quadros dirigentes da profissão, a enfermagem
padrão forjou a identidade profissional na exclusão de mulheres
afrodescendentes, impedimentos estes que não ocorriam anteriormente, como
atesta a historiografia que trata o tema.
No caso da formação profissional, a exclusão não foi atributo da enfermagem,
mas ocorreu, sem exclusividade, em outras profissões. Se aceitos, deveriam
provar arduamente sua capacidade como reitera Maria Lucia de Barros Mott et al.
ao analisar a formação em Odontologia, quando afirma que exigências em torno de
exames, frequência, taxas e mensalidades acabaram por limitar o diploma às
camadas mais favorecidas da população, expulsando do mercado paulatinamente os
leigos que tinham obtido a profissão com outro praticante e eram, muitas vezes,
analfabetos ou afrodescendentes (Mott et al., 2008, p.98).
Singularmente, Wellington Mendonça de Amorim e Fernando Porto (Porto e Amorim,
2007), ao apresentarem o quadro de diplomadas da Seção Feminina da Escola
Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras Alfredo Pinto, em 1923, permitem
entrever a presença de uma mulher negra. Mesmo considerando a hipótese de que o
espaço existente na Praia Vermelha era na verdade um pequeno núcleo de formação
de auxiliares de médicos psiquiatras do Hospital de Alienados e não uma escola
de enfermagem, como discute a sociologia das profissões, a evidência é
indicativo seguro da tradição do cuidado exercido por afrodescendentes no
Brasil (Campos e Oguisso, 2008). Ainda assim a evidência confirma a
possibilidade de ingresso de afrodescendentes em espaços educacionais,
realidade improvável para modelo proposto como padrão de ensino reconhecido e
autorizado pelo ananerismo.
Avaliados como registos históricos, as evidências permitem afirmar que as
representações da degenerescência contribuíam para a recusa da participação
afrodescendente na formação dos quadros dirigentes da enfermagem moderna
brasileira, em específico, entre as décadas de 1920/1930, realidade
indubitavelmente alterada nos anos 40 com a fundação da Escola de Enfermagem de
São Paulo, da Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo, novo espaço
formador da enfermagem brasileira, que passa a admitir homens e mulheres
negras.
Discussão
Formação e orientação profissional pós-1930
A História, como a história de todos os homens, essencialmente política, vista
de cima, escrita por grupos hegemónicos, secularmente instituídos esteve
durante muito tempo caracterizada como única possibilidade de verificação do
passado. Hermeticamente fechada, a escrita da história identificava como digno
de ser perpetuado somente ações realizadas por homens ilustres, estadistas,
líderes, naturais condutores da história. A experiência de homens e mulheres
comuns não era considerada meritória o suficiente para compor a narrativa
histórica, cuja historiografia lhes impunha a condição de marginais da
história.
No Brasil, a escrita de uma história menos generalizante, valorizada por
modelos teorico-filosóficos em detrimento das experiências humanas, aconteceu
sob o signo da interdisciplinaridade. A produção historiográfica nascida da
recusa de uma história tradicional preconizava que historiadores, ao escreverem
a história, não mais deveriam privilegiar o longo tempo dos acontecimentos ou
selecionar fatos considerados relevantes como os fundados no económico. Ao
contrário, era preciso reescrever a história narrando experiências vividas
tanto por pessoas ilustres, como por inominados, narrar seus feitos, suas lutas
e resistências, com atenção para sua quotidianidade como propunham os
historiadores ingleses ligados a new left ou os franceses da nouvelle histoire.
Movimentos de historiadores interessados na ampliação do universo de análise
histórica contribuíram para conquistas de novos objetos, novas abordagens e
novos problemas lançados ao ofício do historiador. Neste processo, as mulheres
assumiram papel de destaque, pois o reconhecimento de suas experiências
contribuiu para destituir limites que encerravam seu passado na soleira das
ações masculinas. Quase nunca mencionadas pela historiografia dominante,
experiências vividas por mulheres eram sublimadas, diminuídas em suas ocupações
e fazeres. As explicações atingiam inclusive a anatomia de seu sexo, pensado
desde os gregos como algo não evoluído, o que justificava o rebaixamento do
género feminino frente ao homem.
A história da enfermagem moderna é um marco da luta contra a influência da
dominação masculina na vida social da mulher. Na construção histórica da arte e
ciência do cuidado, as enfermeiras abriram uma possibilidade singular de
emancipação da mulher da tutela masculina, ainda que exaltadas também pela
docilidade, e o hospital extensão do lar, que fortalecia a ideia de submissão
inerente à condição feminina. Identificada a partir das qualidades da
feminilidade (nem sempre compatíveis e aceitáveis pelas mulheres, sobretudo, as
que negavam a natureza) a profissionalização via modelo nursing, proposto
originalmente por Florence Nigthingale (1820-1910), implicava reconhecer
construções discursivas que esquadrinhavam seus papéis sociais estigmatizando-
as.
As experiências de cuidar/cuidado são também representadas pela marginalização
das cuidadoras, significadas como prostitutas, delinquentes e prisioneiras sem
considerar especificidades da história das mulheres, assim como da formação das
cidades, fenómenos que ocorreram concomitantemente ao processo de
profissionalização da Enfermagem. No caso brasileiro, o estudo do cuidado pré-
profissional exercido por amas de leite, babás, aparadoras, e no âmbito do
masculino por padres, pastores e soldados não foi realizado a contento,
entretanto, as vicissitudes da Segunda Guerra Mundial redimensionaram a
profissão, o profissional e o profissionalismo. A década de 1940 propiciou às
mulheres novas perspetivas no mundo do trabalho, pois inseridas no universo
académico e como eleitoras reivindicaram a emancipação que o cosmopolitismo
trouxera. Indústria cinematográfica, novas tecnologias hospitalares,
necessidade de formação de mão de obra especializada foram decisivos às
mudanças processadas.
No Brasil, o American way of life ampliou usos e costumes diametralmente
opostos aos vividos em décadas anteriores ao negar o destino que conduzia as
mulheres ao casamento e à maternidade em favor de uma vida voltada para o
trabalho. Sob forte pressão masculina, rechaçadas por valores tradicionais, as
mulheres, aqui avaliadas no movimento de profissionalização do cuidado no
Brasil, conquistaram definitivamente seus lugares na sociedade do trabalho, não
mais permanecendo reclusas ou ociosas (Campos e Oguisso, 2008).
Edith de Magalhães Fraenkel foi uma dessas mulheres. A primeira diretora da
Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP) é considerada
personalidade marcante da enfermagem brasileira. Em 1939, ao aceitar o convite
feito pela Fundação Rockefeller para organizar e dirigir a Escola de Enfermagem
de São Paulo passou o ano de 1940 nos Estados Unidos e Canadá, onde observou a
organização e funcionamento de instituições congéneres, em específico, em
relação à formação e ao exercício profissional. Sua biografia revela que
permaneceu na direção da EEUSP entre os anos de 1941 e 1955, sucedida por sua
vice-diretora, Maria Rosa de Sousa Pinheiro, que dirigiu a escola entre 1955 a
1978 (Carvalho, 1980). O período desvela um momento em que a EEUSP sofreu
importantes remodelações com a criação do Curso Superior de Enfermagem,
manutenção do Curso Normal de Enfermagem e instalação de cursos de Pós-
Graduação destinados a preparar docentes para escolas de enfermagem e
administradores de unidades de serviços de saúde. Com o apoio de Glete de
Alcântara, Haydée Guanais Dourado, Ruth Borges Teixeira, Yolanda Lindenberg
Lima e Zilda de Almeida Carvalho, as duas primeiras diretoras projetaram a
EEUSP como a maior Escola de Enfermagem da América Latina, que durante os anos
de 1944 a 1951 contou com a colaboração da enfermeira norte-americana Ella
Hasenjaeger na organização e planejamento de estágios, efetivação de
intercâmbios e conquistas de bolsas de estudo nos Estados Unidos e Canadá para
alunas e professoras da EEUSP (Carvalho, 1980).
O contexto histórico evoca a criação de diversas escolas de enfermagem no país,
assim como a sedimentação das primeiras ideologias educacionais regulamentadas
em nível governamental em território brasileiro. O modelo de assistência à
saúde, preconizado a partir das novas diretrizes de ensino, vale dizer, a Lei
775/49, reconfigurou a posição assumida pela enfermagem no âmbito médico-
assistencial a partir da configuração de um currículo mínimo, estabelecido pelo
Estado. Fundada no bojo das reformas do ensino superior de enfermagem no país,
a Escola de Enfermagem de São Paulo destacou-se historicamente por projetar a
assistência para o campo da administração, realizada por enfermeiras chefes,
sobretudo no âmbito hospitalar, movimento que encontrava ressonância com o
desenvolvimento urbano do país, em específico da cidade de São Paulo.
A Lei 775/49, que regulamentou o ensino de Enfermagem no Brasil, atribuiu ao
Governo Federal o reconhecimento das escolas de enfermagem, pois os quadros
dirigentes da enfermagem nacional não se encontravam totalmente preenchidos
pós-1930. A extensão territorial brasileira forçava o Governo a expandir a
formação de profissionais para além do eixo Rio-São Paulo, no intuito de
atingir todo o território. Tal demanda levou poderes públicos a propor
incentivos a jovens interessadas na profissionalização da arte e ciência do
cuidado. No caso paulista, às professoras primárias, lotadas no Estado de São
Paulo, que desejassem ingressar na profissão de enfermagem, havia autorização
para afastamento, sem vencimentos, de suas atividades como professoras
primárias, isto é, como forma de incentivo ao desenvolvimento da profissão, no
caso da primeira turma da EEUSP, voltado à formação de corpo docente. A
primeira turma, formada em 1946, era composta somente por professoras
primárias. Das dezasseis diplomadas, oito foram contempladas com bolsas de
estudo da Fundação Rockefeller para cursos de pós-graduação nos Estados Unidos
e Canadá, as quais, em seguida, foram contratadas como professoras (Campos e
Oguisso, 2008).
Para as que residiam em outros estados da federação, desejosos por melhorias no
campo do atendimento a saúde, a forma de ingresso na Escola de Enfermagem
implicava convite ou indicação. Os critérios de seleção, excetuando-se a
necessária apresentação de diploma ginasial, ainda que burlas ocorressem, eram
bastante difusos. Considerava-se prioritário a indicação de redes de
sociabilidade nas quais os candidatos viviam e trabalhavam não em detrimento do
aspeto educacional, mas como indicadores para a formação de uma nova liderança,
que atuaria junto ao Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Caso as
interessadas recebessem bolsas de estudo oferecidas por organismos
governamentais, a aprovação e ingresso eram imediatos.
Deste modo, os acordos travados durante o processo de organização e construção
da EEUSP, caracterizados como Programa Enfermagem implicavam na formação de
enfermeiros capazes de suprir a demanda nacional, pois estes disseminariam os
ensinamentos recebidos em outros estados do Brasil. O SESP, que atuava junto ao
Ministério da Educação e Cultura, ao conceder bolsas de estudo a candidatos de
outros estados, com especial atenção para os que se encontram nas regiões
norte-nordeste do Brasil, com destaque para a Amazónia e o Pará, redimensionou
a identidade forjada para a Enfermagem brasileira erigida pelo Departamento
Nacional de Saúde Pública (DNSP) na década de 1920, pois entre as bolsistas
SESP figuravam homens e mulheres afrodescendentes.
Exterioridades aparentes: mulheres negras na enfermagem
O conjunto das transformações sofridas nas décadas iniciais do século XX
condensou problemas na ordem dos relacionamentos individuais e coletivos. Ações
controladoras do corpo social, articuladas por intelectuais ligados ao direito
e à medicina, concentravam na cientificidade do período a efetividade das
respostas requeridas forjando realidades imagéticas e discursivas. Retomando o
estudo de George Reid Andrews, ao examinar a educação na passagem de 1940 para
1950 na cidade de São Paulo, o autor relata um episódio no qual a diretora de
um colégio católico, ao estabelecer níveis de exigência para admissão de
alunas, deixava patente a difícil relação entre brancos e negros no âmbito mais
amplo da sociedade.
Para conseguir um diploma, um negro precisa mostrar talento e conhecimento; de
outra forma não vai passar aqui. Quanto aos brancos, qualquer idiota pode
passar; eu mesmo vou abrir o portão para ele (...) exigimos mais de uma preta
que de uma branca, para a aceitarmos. A situação é muito delicada e uma garota
de côr, para ser respeitada, deve ser superior a uma branca nas mesmas
condições (Santana apud Andrews, 1998, p. 246).
O espaço social produzido no início do século XX redefinia práticas
construtoras do próprio mundo social, as quais atribuíam novos significados às
imagens produtoras de verdades ou, como apontou Roger Chartier (Chartier,
1991), considera os signos visíveis como índices seguros de uma realidade que
não o é, por apropriar-se de representações assumidas de modo inconteste,
transformavam correlatos de poder, status ou outro distintivo capaz de incluir
ou excluir pessoas e grupos sociais. No caso específico da enfermagem, é
possível dizer que a Escola de Enfermagem de São Paulo reconfigurou não somente
a formação profissional, mas a identidade profissional da Enfermagem no Brasil,
pois incluiu disciplinas que não existiam no antigo modelo como Enfermagem
Psiquiátrica e Moléstias Tropicais, assim como possibilitou a reintegração de
homens e mulheres negras na Enfermagem brasileira.
Registos fotográficos, que retrataram candidatas antes e após o término do
curso, documentam aspetos pouco explorados pela historiografia, como os
atinentes à imagem da enfermeira. No caso das afrodescendentes, a fotografia
anexada à Ficha de Admissão, antes do ingresso no curso, revela mulheres
tímidas, simples, ao passo que uma segunda fotografia, muito provavelmente
retratada no contexto da formatura, aponta transformações importantes e emitem
significados múltiplos, pois desvelam mulheres posicionadas, altivas, no caso,
que venceram os racismos próprios da época.
Boris Kossoy (Kossoy, 2000), ao refletir sobre a imagem fotográfica,
caracteriza seu produto como poderoso instrumento para veiculação de ideias e
consequente formação de opinião e manipulação pública. De acordo com o autor,
as imagens fotográficas são fontes de informação decisivas nas diferentes
vertentes de investigação histórica, porém, não se esgotam em si mesmas, ao
contrário, constituem-se como ponto de partida ou pista para se desvendar o
passado. Nesta perspetiva, se comparadas, as imagens permitem observar mudanças
significativas na aparência das alunas afrodescendentes diplomadas pela EEUSP.
Tal visibilidade é revelada pelo uso da maquilhagem, tratamento de
sobrancelhas, penteado, direção do olhar, postura, alinhamento dos ombros e
outros sinais que produziam efeitos de um novo comportamento, inclusivo,
afastando vinculações existentes e que poderiam depreciá-las. Ainda que a noção
de aparência implique simulação da realidade, portanto, ocultamento de uma
realidade diferente, a imagem da enfermeira profissional evidencia que a
mudança estética das diplomadas afrodescendentes reverberava a função social
destas mulheres na sociedade brasileira, cujas biografias constatam a
prerrogativa anunciada, vale dizer, de formação de uma nova liderança,
genuinamente brasileira.
Ainda que a EEUSP incluísse mulheres afrodescendentes, estas eram transformadas
para, deste modo, aproximá-las das representações forjadas não somente para a
enfermeira profissional, mas para a mulher nos anos dourados, portanto, não
estava restrita às questões relativas ao que hoje é considerado como
profissionalismo. A mudança estética revelada pelas fotografias que retrataram
as diplomadas da segunda turma, no término do curso, pode ser um mecanismo
estrategicamente elaborado, vale dizer, que compunha a exterioridade aparente
da enfermeira na tentativa de aproximá-las da imagem ideal, moderna,
cosmopolita e elegante (Campos e Oguisso, 2008).
Maria Aparecida de Oliveira Lopes (Lopes, 2002), ao recuperar contendas
travadas em São Paulo referente aos padrões de beleza preconizados como ideais
para as mulheres nas primeiras décadas do Século XX, revela como estes influíam
nos mecanismos de inclusão social, sobretudo, da classe trabalhadora
afrodescendente. A autora afirma que representações da marginalidade eram
associadas a um conjunto de gestos, posturas e comportamentos por sua vez
vinculados à estética, padrões de beleza e outros atributos que excluía ou
incluía as pessoas, com destaque para os cabelos lisos e aclaramento da pele.
Tais aspetos perpassam a documentação consultada, que revela ser a aparência um
atributo considerado na avaliação de alunas, estudantes de Enfermagem como
permite entrever o Regulamento instituído pela EEUSP, a ser observado durante
as horas de trabalho no Hospital das Clínicas: 5. Quando uniformizada, a
estudante deverá usar penteado simples, com redes nos cabelos, que devem estar
cuidadosamente limpos. Os cabelos não devem tocar a gola do uniforme. 6. As
unhas deverão estar sempre cuidadas, limpas e curtas. É permitido o uso somente
de esmalte claro. 7. Não é permitido o uso de meias abaixo do joelho.
Aconselha-se o uso de cinta-liga. 8. Rouge e bâton, podem ser usados
moderadamente.
Considerados como portadores de traços menos delicados, julgados grosseiros, de
má qualidade, malfeitos, rudes, a visibilidade forjada para os negros,
sobretudo em relação aos que não conquistaram posições mais elevadas na
sociedade, confrontava com a representação atribuída aos de epiderme clara,
nesta medida, julgada afável, saudável, bonita, valores que deveriam possuir
qualquer pessoa de bem, confiável oriunda de boas famílias (Lopes, 2002).
Estudos sobre a imagem exterior, aparente da enfermeira, simbolicamente
instituída na indumentária usada desde a fundação do St. Thomas Hospital
Nightingale Training School at Nurses, em 1865, na cidade de Londres,
Inglaterra, por Florence Nightingale, qual seja, o uniforme (Salgueiro, 2000).
Não obstante, a vida moderna implicou mudanças profundas nos modos de agir das
populações. No Brasil pós-1930 ascender socialmente exigia preocupar-se com
aspetos do quotidiano que, no caso dos negros, eram avaliados com rigor
excessivo. O controlo atingia moda, traquejo social, cuidado com formas
corporais e exposição de desejos, sobretudo os relativos à sexualidade, terreno
fértil no campo das representações sociais da Enfermagem, como a que associava
as primeiras cuidadoras como oriundas da prostituição e marginalidade social,
muitas vezes sem a consideração necessária dos lugares assumidos a duras penas
por mulheres na História.
Conclusão
Múltiplas representações foram forjadas para a enfermagem, contudo,
significados distintos deslindam mulheres altruístas, interessadas em alcançar
os benefícios oferecidos pela profissionalização. A perspetiva referenda ainda
o sentido histórico atribuído ao ensino no processo de transição do trabalho
escravo para o trabalho livre, cujas vicissitudes marcaram poderosamente a
história da saúde no Brasil, aqui analisadas no âmbito da profissionalização/
profissionalismo da Enfermagem, abordagem que exige continuidade de
investigação. Do mesmo modo, a presente reflexão permite considerar como
mulheres negras criaram e recriaram seus lugares no âmbito do cuidado enquanto
arte, ciência e ideal.
A reintegração de mulheres negras na enfermagem não foi aceita de forma
unidirecional, sem prejuízos. Ao romper a antiga representação que apresentava
as enfermeiras presas a reducionismos, as mulheres negras, ilustres inominadas,
redimensionaram a visibilidade estético-social da enfermeira brasileira ao
enfrentar, com primazia, o universo restritivo da enfermagem profissional,
branqueada, cuja investigação histórica não foi suficientemente realizada. A
noção corrente impunha que pessoas de cor, sobretudo as que alcançavam posição
mais elevada na sociedade, deveriam portar-se de forma exemplar, demonstrar
capacidades acima da média, destacar-se como exemplar para que a distinção
provocada não desabonasse suas condutas, evitando desagravos indesejáveis, mas
costumeiros.
Estudos históricos devem favorecer a formação de competências e habilidades que
refaçam sociabilidades e mentalidades fundadas no racismo, no preconceito, na
discriminação, na intolerância. Tais comportamentos atingem poderosamente o
saber-fazer do enfermeiro impactando no processo de cuidar/cuidado. Neste
ponto, a história da enfermagem revela sua utilidade, pois somente o
conhecimento dos processos históricos permite avançar no desenvolvimento
humano, em todas as suas dimensões.