Úlceras por pressão: perceção dos familiares acerca do impacto emocional e
custos intangíveis
Introdução e enquadramento
As úlceras por pressão podem ser definidas como sendo uma úlcera: dano,
inflamação ou ferida da pele ou estruturas subjacentes como resultado da
compressão tecidular e perfusão inadequada (International Council of Nurses,
2011, p. 79). Incluídas como foco de atenção da prática de enfermagem e
reconhecidas como um dos indicadores suscetíveis de indicar ganhos em saúde
obtidos a partir das intervenções autónomas dos enfermeiros (Pereira, 2009;
Aleixo, 2011), as úlceras por pressão constituem um grave problema de saúde
pública, com elevados custos para a pessoa doente, seus familiares, sociedade e
instituições de saúde.
O sofrimento, por sua vez, consiste também num foco de atenção da prática de
cuidados de enfermagem definido como uma emoção negativa: sentimentos
prolongados de grande pena associados a martírio e à necessidade de tolerar
condições devastadoras, isto é, sintomas físicos crónicos como a dor,
desconforto ou lesão, stress psicológico crónico ( ) (International Council of
Nurses, 2011, p. 76). Efetivamente, a existência de uma úlcera por pressão
implica um processo complicado, marcado pela dor, desconforto físico,
psicológico e com impacto emocional para o doente e para os seus entes
queridos.
Enquadrados no âmbito de um estudo de impacto económico, importa não só
determinar os custos diretos e indiretos associados às úlceras por pressão,
como também os custos intangíveis. Estes, habitualmente mais difíceis de
determinar e pouco explorados nos estudos de cariz económico, correspondem ao
impacto da situação de doença na qualidade de vida da pessoa, às perdas
associadas (por exemplo, em termos de lazer, de trabalho, de contacto com entes
queridos), à presença de dor e sofrimento. É indiscutível o impacto emocional e
o sofrimento que a existência de uma úlcera por pressão acarreta, quer para a
própria pessoa, quer para as pessoas que lhe são significativas.
A pessoa com úlcera por pressão pode ainda apresentar outros problemas
associados, os quais são também focos de atenção da prática dos enfermeiros.
Entre estes, destacamos a dor e o sofrimento, comummente associados, pese
embora o facto de o primeiro ' a dor ' assumir um caráter mais físico, mais
facilmente controlável, enquanto o segundo ' o sofrimento ', atendendo ao seu
cariz mais psicológico, emocional e espiritual, adquire maior complexidade, o
que se repercute quer na sua avaliação, quer na definição de estratégias para o
seu alívio.
É a este nível que emerge a problemática do nosso estudo, a qual versa o tema
do impacto emocional e dos custos intangíveis associados às úlceras por
pressão, em particular em termos de qualidade de vida e do sofrimento que lhes
está associado. Neste sentido, os objetivos que lhe estão subjacentes são: (i)
compreender o impacto emocional das úlceras por pressão no doente e família;
(ii) compreender a problemática do sofrimento associado às úlceras por pressão
no doente e família; (iii) determinar os custos intangíveis associados às
úlceras por pressão. Este estudo enquadra-se no âmbito do Projeto ICE 2 '
Investigação Científica em Enfermagem ' Impacto económico das úlceras por
pressão (projeto criado na sequência do Projeto ICE, numa parceria
interinstitucional que envolve escolas e departamentos de enfermagem das
Universidades dos Açores, Madeira e Canárias), tendo como finalidade dar
visibilidade aos custos intangíveis, em particular ao sofrimento, associado às
úlceras por pressão, na perspetiva de quem tem de viver com esta realidade.
De uma pesquisa bibliográfica por nós realizada nas diversas bases de dados
existentes on-line, a nível nacional e internacional, durante a qual procurámos
apreender quais os estudos realizados especificamente neste domínio e
recorrendo à pesquisa dos termos pressure ulcer e suffering, pressure ulcer e
emotional impact, pressure ulcer e costs, verificámos a sua escassez.
Efetivamente, a referência ao sofrimento associado às úlceras por pressão é
efetuada pelos diversos autores que se dedicam ao estudo deste foco, embora a
existência de estudos especificamente dedicados à exploração desta problemática
seja escassa (Baumgarten et al., 2004; Moore e Price, 2004; Tetterton et al.,
2004; Clarke et al., 2005; Correa et al., 2006; Wurster, 2007; Bjarnsholt et
al., 2008; Elliot, 2011). Não obstante, Hopkins et al. (2006) desenvolveram um
estudo piloto de cariz fenomenológico sobre este tema, durante o qual
procuraram analisar e compreender as vivências de pessoas com úlceras por
pressão, considerando a dor e o sofrimento que provocavam, o seu impacto na
vida quotidiana e os mecanismos de coping utilizados para a sua superação.
Metodologia
Face à problemática em estudo e objetivos delineados, consideramos que seria
oportuno recorrer a uma metodologia de cariz qualitativo, no sentido de melhor
aprofundarmos a compreensão relativa ao impacto emocional, sofrimento e custos
intangíveis associados às úlceras por pressão. O nosso intuito é o de apreender
o modo como as pessoas e os seus familiares vivenciam um processo desta índole,
partindo das expressões utilizadas pelos próprios. Neste sentido, o presente
estudo assume uma vertente fenomenológica, na medida em que pretendemos
compreender o significado atribuído, em termos de impacto emocional e
sofrimento, pelos participantes. Segundo Coutinho (2011, p. 305), a abordagem
fenomenológica permite, ao investigador, ( ) conhecer e compreender um
fenómeno ( ) e, para o conseguir, vai reunir um conjunto de "experiências
vividas" desse fenómeno, interpretá-las, analisá-las e extrair aquilo a
que Husserl chamava a essência do fenómeno ( ).
Para o efeito, enunciámos um conjunto de questões de investigação:
Qual o impacto emocional das úlceras por pressão sobre o doente, na perspetiva
dos familiares?
Quais os sentimentos/emoções experienciados pelos familiares dos doentes com
úlceras por pressão?
Quais as necessidades sentidas pelos familiares dos doentes com úlceras por
pressão?
Qual o impacto das úlceras por pressão na relação existente entre o doente e o
familiar?
Qual o impacto das úlceras por pressão na vida do familiar?
A recolha de dados foi efetuada com recurso a entrevistas, tendo por base um
guião consistente com o Esquema Cardiff de Impacto da Ferida ' versão
portuguesa do Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de
Coimbra (2003).
Como participantes neste estudo considerámos pessoas com úlceras por pressão a
ser acompanhadas nos dois centros de saúde da Ilha Terceira e seus familiares.
Os critérios de inclusão foram: apresentar úlcera por pressão; estar inscrito
num dos dois referidos centros de saúde; estar a receber acompanhamento dos
enfermeiros, no domicílio; apresentar capacidade de discurso oral. Não
definimos, a priori, o número de participantes em estudo, dado que pretendíamos
atingir a saturação teórica dos dados.
Os possíveis participantes foram indicados pelos enfermeiros dos referidos
centros de saúde que procediam à assistência domiciliária de doentes com
úlceras por pressão durante o primeiro semestre de 2010. Durante este período,
foram realizados contactos telefónicos, no sentido de solicitar a colaboração
destes doentes e seus familiares para o estudo. De um total de 23 doentes com
úlceras por pressão inscritos nestes centros de saúde, foram entrevistados 7
familiares; no que respeita aos restantes 16 possíveis participantes, estes não
foram incluídos por razões distintas (internamento, recusa, óbito). Não foi
entrevistado nenhum doente, em virtude de não apresentar status cognitivo que
possibilitasse a realização de uma entrevista.
No que respeita aos participantes, os familiares de doentes que participaram
neste estudo eram todos do sexo feminino, com uma média de idades de 55 anos.
Em termos profissionais, somente uma das participantes estava aposentada, sendo
que as restantes seis exerciam profissões diversificadas e tinham níveis de
escolaridade que variavam entre o ensino básico e o superior. Quanto aos
doentes com úlceras por pressão, todos tinham mais de 60 anos de idade,
apresentavam patologias associadas (AVC, Alzheimer, Parkinson), estavam
completamente dependentes a nível das Atividades de Vida Diárias e tinham mais
do que uma úlcera por pressão com evolução média de 6 meses.
As entrevistas decorreram ao longo do segundo e terceiro trimestres de 2010,
tendo sido realizadas no domicílio dos doentes e familiares participantes neste
estudo. Tiveram uma duração média de 30 minutos, foram gravadas em suporte
áudio e posteriormente transcritas verbatim. O corpus de análise foi
constituído pelo conteúdo integral das entrevistas, tendo-se procedido à sua
análise de conteúdo numa lógica indutiva, fundamentada no discurso das pessoas
entrevistadas.
Salvaguardámos, em todos os momentos deste processo de investigação, os aspetos
éticos inerentes a estudos desta natureza, designadamente, a autonomia e
consentimento informado e esclarecido dos participantes, assim como a
confidencialidade e o anonimato dos dados obtidos. O estudo recebeu a aprovação
das duas instituições nas quais os doentes estavam inscritos.
Resultados e discussão
No sentido de compreender a perceção dos familiares acerca do impacto emocional
das úlceras por pressão e apreender os custos intangíveis que lhes estão
associados, procedemos à análise de conteúdo das entrevistas, com base no
discurso dos sujeitos. Para o efeito, considerámos as seguintes dimensões de
análise: impacto das úlceras por pressão no doente ' perceção dos familiares,
sentimentos e emoções dos familiares de doentes com úlceras por pressão,
necessidades dos familiares, impacto das úlceras por pressão na relação doente
' família, impacto das úlceras por pressão na vida do familiares e mecanismos
de coping. As categorias foram definidas a posteriori, a partir das palavras
expressas pelos participantes (quadro 1).
Quadro 1 ' Sistematização das dimensões e categorias relativas à perceção dos
familiares acerca do impacto das úlceras por pressão.
No sentido de compreender o impacto emocional das úlceras por pressão sobre o
doente, e atendendo ao facto de nenhum doente participante neste estudo
apresentar status cognitivo capaz para responder a uma entrevista, optámos por
considerar a perceção dos familiares acerca do referido impacto. Assim, de
acordo com estes familiares, existe a noção de que a existência de uma úlcera
por pressão gera dor e sofrimento no ente querido, conforme o ilustram os
seguintes excertos:
- Dor ' "( ) ele, às vezes, queixava-se que lhe doía ( ) às vezes
cramava ( )" (E2); "( ) ele cada vez tem mais dores ou lhe dói
( )" (E3); "( ) ela deve ter dores ( )" (E7).
- Sofrimento ' "( ) vejo o sofrimento que ela tem ( )" (E6);
"( ) ela sofre de toda a maneira ( )" (E7).
De acordo com o International Council of Nurses (ICN) e a Ordem dos Enfermeiros
(OE) (2011, p. 50), a dor consiste no ( ) aumento da sensação corporal
desconfortável, referência subjetiva de sofrimento, expressão facial
característica, alteração do tónus muscular, comportamento de autoproteção,
limitação do foco de atenção, alteração da perceção do tempo, fuga do contacto
social, processo de pensamento comprometido, comportamento de distração,
inquietação e perda de apetite. Por sua vez, conforme já foi referido, o
sofrimento é definido, pelas mesmas entidades, como ( ) sentimentos
prolongados de grande pena associados a martírio e à necessidade de tolerar
condições devastadoras, isto é, sintomas físicos como a dor, desconforto ou
lesão, stress psicológico crónico ( ) (ICN, 2011, p.76). Conforme podemos
depreender, ambos os conceitos estão interligados, o que reforça a perceção
expressa pelos familiares dos doentes com úlceras por pressão acerca da dor e
do sofrimento como resultantes do problema vivido. Considerando que a
existência de uma úlcera por pressão habitualmente decorre num contexto de vida
marcado pela existência de outros problemas e doença(s), esta interligação
remete-nos para o conceito de dor total enunciado por Cicely Saunders (1996),
enquanto sofrimento global em que todas as dimensões ' física, psicológica,
social e espiritual ' estão associadas e intrinsecamente afetadas pela doença.
Assim, cada sintoma que a pessoa experiencia é perspetivado, por si própria,
como uma experiência global, que a afeta no seu todo, pelo que, para os
próprios familiares, se torna difícil destrinçar a perceção que têm face ao
impacto, em termos de dor e sofrimento, que a existência de uma úlcera por
pressão tem para o ente querido. Este aspeto fica também visível nas palavras
dos participantes, quando se referem ao mal-estar que percebem no seu familiar
com úlcera por pressão; vejamos:
- Mal-estar ' "( ) ela faz sempre caretas ( ) quando se mexe com aquela
perna, aquele lado deve ser talvez um dos lados mais sensíveis ( ) mas não é
dor ( ) mas ela tem sempre uma reação naquele perna" (E1); "( ) eu
acho-a mais quebradinha ( )" (E5).
>No que respeita aos sentimentos/emoções experienciados pelos familiares dos
doentes com úlceras por pressão, estes emergiram no discurso de todos os
participantes, designadamente, a angústia (referida pelos 7 familiares
entrevistados), a preocupação (categoria com maior número de unidades de
registo e presente nas palavras de 5 dos 7 familiares entrevistados) e o
sofrimento (mencionada por 4 dos 7 participantes) Nas suas próprias palavras:
- Angústia ' "( ) era uma coisa que me afligia ( )" (E1); "
( ) tenho custo de lhe doer" (E2); "( ) para nós, custa-nos ver ele
a sofrer com isso ( )" (E3); "É uma angústia terrível" (E4);
"A ferida ( ) eu por mim, não consigo ver, não tenho coragem ( )"
(E5); "( ) custa, custa ( )" (E6); "( ) eu só tenho pena ( )
de a ver sofrer daquela forma ( )" (E7).
- Preocupação ' "( ) sempre preocupada, com medo ( ). Foi isto, foi a
preocupação do aparecimento, do medo, o medo de ver" (E1); "Temos
medo que ele piore" (E3); "O que me preocupou mais foi aquele no
artelho" (E4); "( ) preocupava-me as feridas ( )" (E4);
"( ) fico preocupada ( )" (E5); "Estou sempre com o ouvido à
escuta, se a ouço gemer ( ) para ir a ela ( )" (E7).
- Sofrimento ' "( ) um mal-estar constante, a gente não se sente bem
( )" (E4); "Muito triste ( )" (E5); "A gente sofre
( )" (E7).
A angústia corresponde aos ( ) sentimentos de dor intensa e forte, pena e
aflição (ICN, 2011, p. 39), estando em estreita ligação com o sofrimento,
assumindo ambos uma conotação negativa. Por sua vez, a preocupação é definida
como o ( ) dominar e ocupar a mente de forma a excluir outros pensamentos ou a
estar mentalmente distraído (idem, p. 68), referindo-se a um estado de
inquietude, de cuidado constante e antecipado. No caso dos familiares dos
doentes com úlceras por pressão, denota-se esta (pré)ocupação da mente face ao
agravamento da condição das úlceras já existentes, bem como relativamente à
possibilidade de desenvolvimento de outras úlceras.
Além destes sentimentos, emergiram outros, também com conotação negativa,
designadamente a depressão, a injustiça, a revolta e o cansaço. Vejamos:
- Depressão ' "Deu-me uma depressão já há dois anos uma depressão que
não passa nunca passa a depressão " (E4); "( ) comecei foi a
chorar, chorar, chorar ( )" (E7).
- Injustiça ' "Às vezes, é a sacrificação, pronto, caramba!, ou chove
ou isto ou aquilo e logo nos dias em que a gente pode [sair/realizar atividade
de lazer]" (E3); "( ) ela não merecia este sofrimento todo
( )" (E6).
- Revolta ' "( ) esta coisa não aceito muito bem ( )" (E5); "
( ) a revolta é tanta!" (E7).
- Cansaço ' "Cansada cansada ( )" (E3); "( ) fico muito
cansada de lidar com ela ( )" (E7)
De acordo com o ICN (2011, p. 48), a depressão consiste numa emoção negativa:
sentimentos de tristeza a melancolia, com diminuição da concentração, perda de
apetite e insónia. Vivenciar o acompanhamento de um familiar com úlceras por
pressão é, na verdade, gerador deste tipo de sentimento, muitas vezes agravado
pelo cansaço inerente à prestação de cuidados informais. Este, por sua vez, é
definido como uma emoção negativa: sentimentos de diminuição da força ou
resistência, desgaste, cansaço mental ou físico e lassidão, com capacidade
reduzida para o trabalho físico ou mental (ICN, 2011, p. 42).
A revolta, por seu turno, corresponde ao sentimento de raiva e desagrado
intenso, resultante da resposta mental ou física a estímulos internos ou
externos percebidos como negativos e injustos. Em estreita articulação com este
sentimento, encontra-se precisamente o de injustiça, esta entendida como a
ocorrência de algo que não é justo e, portanto, é imerecido. Conforme podemos
depreender a partir de alguns dos testemunhos dos participantes, o sentimento
de injustiça expressa-se em duas vertentes: por um lado, no que respeita à
situação do ente querido, e, por outro lado, em relação ao próprio familiar
que, de alguma maneira, vê a sua vida condicionada pelo problema do ente
querido.
Estes aspetos são também mencionados por Santos (2008) quando identifica a
sensação de prisão, não-aceitação da situação de dependência e vulnerabilidade
do familiar. Além destes, a autora refere-se à tristeza e ambivalência o que
sustenta também os dados obtidos neste estudo.
Outros sentimentos expressos pelos familiares dos doentes com úlceras por
pressão referem-se à aceitação e à esperança. Embora estas categorias estejam
alicerçadas em somente duas unidades de registo, cada, é significativo notar
que emergiram a partir das palavras dos mesmos entrevistados (E4 e E5):
- Aceitação ' "( ) como sou cristã, tive que ter paciência, mas, por
vezes, falta-me muito ( )" (E4); "( ) tenho que me ir conformando
( )" (E5).
- Esperança ' "( ) as feridas ( ) é uma coisa que vai curar" (E4);
"( ) enquanto ela teve só aquela ferida, aquela principal, uma pessoa
estava sempre na esperança" (E5).
A aceitação consiste num processo de coping: gerir e controlar ao longo do
tempo, eliminar ou reduzir sentimentos de apreensão ou tensão, restrição de
comportamentos destrutivos (ICN, 2011, p. 37). No caso dos familiares dos
doentes com úlceras por pressão, constata-se, precisamente, este sentimento de
resignação e conformação face à situação que vivenciam, o que, num dos casos,
surge associado às crenças religiosas. Além disso, estes mesmos familiares
experienciam sentimentos de esperança, definida como uma emoção: sentimento de
ter possibilidades, confiança ( ) no futuro ( ), paz interior, otimismo ( )
(idem, P. 53), nomeadamente quanto à recuperação do ente querido e perspetiva
de um desfecho favorável em termos de cicatrização das úlceras por pressão.
Além destes sentimentos, foi possível identificar, no discurso dos familiares
dos doentes com úlceras por pressão que participaram neste estudo, algumas
necessidades: défice de conhecimento e dificuldades económicas. Nas suas
próprias palavras:
- Défice de conhecimento ' "( ) eu tinha que ver e depois sempre a
perguntar e porque é que é assim, e porque é que está essa cor, e porque é que
ontem eu mudei o penso e tinha esta cor, essa aguadilha, é bom ou é mau?, o
que é que o enfermeiro acha? Sempre imensas perguntas " (E1).
- Dificuldades económicas ' "A única coisa que eles me pediram e que eu
não comprei, porque infelizmente não tinha posses já para gastar mais, ( ) é o
meu marido sozinho a trabalhar é aquele colchão antiescara, o de luz"
(E7).
O défice de conhecimento é considerado como um diagnóstico de enfermagem e,
portanto, corresponde a um julgamento clínico a partir do foco
"conhecimento" em que se depreende a necessidade, carência ou falta
de ( ) conteúdo específico de pensamento baseado na sabedoria adquirida, na
informação ou aptidões aprendidas, conhecimento e reconhecimento de informação
(ICN, 2011, p. 45). Por sua vez, as dificuldades económicas podem ser
definidas, enquanto diagnóstico de enfermagem, como rendimento inadequado
(ICN, 2011), na medida em que está deficitário para suprir as necessidades.
É oportuno referir que ambas as necessidades mencionadas emergiram somente a
partir de uma única entrevista cada. Todavia, pensamos que o facto de não terem
sido expressas pelos restantes participantes, não obsta a relevância que
assumem, em particular pelo facto de se constituírem como uma preocupação e
custo acrescidos, quer para o doente com úlcera por pressão, quer para os seus
familiares.
Um outro aspeto relevante para a compreensão dos custos intangíveis associados
às úlceras por pressão refere-se ao impacto que estas têm na própria relação
existente entre o doente e o familiar. A este propósito, as respostas dos
participantes foram díspares:
- Sem alteração na relação ' "Não, não, isso [impacto/alteração na
relação com a mãe] não" (E1).
- Mudança na relação ' "Mudou, mudou muito ( ) agora são muitos mimos,
muitos beijos ( )" (E7).
- Reconhecimento por parte do ente querido face aos cuidados prestados '
"Ele [pai] mudou ele era uma pessoa rígida, a impor regras e agora ele
mudou totalmente a sua forma de agradecimento. Fica todo contente quando vê a
gente, agradece tudo o que a gente faz" (E3).
Além da disparidade existente no modo como os familiares dos doentes com
úlceras por pressão se referem à relação que passaram a estabelecer com o ente
querido, denota-se que este aspeto não foi o que mais se evidenciou ao longo
das entrevistas. Com efeito, cada um dos participantes somente se referiu a
estes aspetos quando questionado diretamente. Não obstante a aparente
irrelevância que este aspeto parece merecer por parte dos mesmos, há que
considerar que a existência de uma doença grave, associada ao desenvolvimento
de úlceras por pressão, contribui para um aumento da vulnerabilidade do doente
e do próprio familiar. A par deste aumento da vulnerabilidade de ambos, ocorre,
frequentemente, uma alteração de papéis, em que a pessoa com úlcera por pressão
passa da condição de marido, pai, mãe, sogro ou sogra, para a condição de
doente. Tal pode gerar um conflito/tensão na imagem que a pessoa tem de si
própria, na imagem que o familiar tem também de si próprio e na imagem que
ambos têm um face ao outro. Além disso, há ainda a considerar as expectativas
sociais e representações culturais face ao que é expectável por parte dos
familiares que, agora, se vêm confrontados com a necessidade de assumirem o
papel de cuidadores.
Quanto ao impacto das úlceras por pressão na vida do familiar, este traduz-se
em dois grandes aspetos: por um lado, nas restrições e perdas associadas à
condição de vida pessoal e familiar anterior à doença e desenvolvimento de
úlceras por pressão do ente querido; por outro lado, nos mecanismos de coping
desenvolvidos a nível individual e familiar.
No que respeita às restrições e perdas associadas face à condição de vida
anterior, estas referem-se aos seguintes aspetos: restrições nas atividades
quotidianas, restrições nas atividades de lazer e perda da vida anterior.
Vejamos:
- Restrições
* Restrições nas atividades quotidianas ' "( ) no princípio, tinha de
estar sempre dependente de outra pessoa ao fim de semana que era um grande
aborrecimento. O meu marido não podia sair" (E1); "( ) temos que
ficar em casa ( )" (E3).
* Restrições nas atividades de lazer ' "Mudou porque nós geralmente, eu
tenho vários amigos, tenho irmãos, a gente juntava-se fins de semana e isso já
não podemos fazer nada disso" (E3); "( ) a gente saía muito, tinha
o carro ( ) tudo isso parou" (E4).
- Perda da vida anterior ' "( ) quando a gente saía, saía os dois; quando
não saía os dois, eu saía e ele depois ia ter comigo para a gente dar uma volta
na avenida ( ) a tal volta que eu precisava dar, íamos à missa e depois íamos
para casa. A nossa vida era assim, era linda, era linda ( )" (E4);
"Eu tinha uma vida sem preocupação nenhuma ( ) ia ali á baixa, à avenida,
estávamos na marina a tomar o nosso café, vínhamos para casa quando apetecia
( ) Há dois anos que eu posso contar as vezes que saí para ir ali à avenida
tomar um café ( )" (E7).
No que respeita às restrições sentidas pelos familiares de doentes com úlceras
por pressão, estas verificam-se quer no quotidiano, quer nas atividades de
lazer, em que estes familiares veem a sua vida condicionada, sentindo-se
impossibilitados ou constrangidos na satisfação das mesmas. Não obstante, estas
restrições estão para além da existência das úlceras, na medida em que estão
associadas a toda a condição global da pessoa doente, à sua dependência física
e emocional relativamente ao familiar que, frequentemente, assume também o
papel de cuidador informal. Este aspeto é também relatado por Fonseca et al.
(2010) que se referem ao facto de o acompanhamento e cuidado de um ente querido
com dependência se repercutir, quer em termos emocionais, quer na motivação do
familiar para o trabalho, quer, ainda, a nível da sua vida social. No seu
conjunto, estes aspetos contribuem para um acréscimo da vulnerabilidade do
próprio familiar.
Quanto aos mecanismos de coping, os participantes referiram-se sobretudo à
definição e implementação de estratégias familiares e à adaptação propriamente
dita, conforme podemos depreender a partir dos seguintes excertos das
entrevistas:
- Estratégias familiares ' "( ) ela está um mês comigo, um mês com o meu
irmão ( )" (E1); "( ) com o meu irmão é dia sim / dia não, temos de
vir, ao fim de semana é um, outro fim de semana é outro. Portanto, se eu tiver
qualquer coisa num fim de semana, eu troco com o meu irmão. Se o meu irmão não
pode trocar, às vezes pede-se à senhora só para dar o almoço e depois eu faço o
que tenho a fazer e depois venho" (E3).
- Adaptação ' "Tive que me adaptar àquilo e tive que ver aquilo e fazer
por vezes ( ) tinha que fazer o curativo ( ) tive que aprender como é que se
fazia aquilo ( )" (E1); "( ) a gente foi-se habituando e agora já
faz parte do nosso dia-a-dia" (E3).
A definição de estratégias familiares consiste na reorganização do sistema
familiar, de modo a suprir, essencialmente, as necessidades do familiar mais
próximo do doente com úlcera por pressão e, simultaneamente, assegurar a
realização das atividades pessoais e familiares. Assim, a partir do discurso
dos participantes, denota-se que estas estratégias familiares são, sobretudo,
de cariz funcional e não tanto dirigidas para a dimensão emocional e sofrimento
associado à vivência desta situação.
Não obstante, esta possibilidade de organização interna, assegurada através de
estratégias familiares, contribui para uma sensação de preservação da vida
pessoal e familiar quotidiana, o que concorre, consequentemente, para um maior
bem-estar emocional e adaptação à situação. A adaptação consiste, de facto, num
processo de coping, caracterizado precisamente pela assunção de uma atitude:
gerir o stress e ter uma sensação de controlo e de maior conforto psicológico
(ICN, 2011, p. 46).
Num estudo realizado por Santos (2008) acerca do cuidado assumido por
familiares relativamente a idosos com situação de dependência no domicílio,
estes aspetos foram também enunciados. Para esta autora, reportando-se a
Augusto (1994), a capacidade da família para alterar os papéis, os poderes e
as regras de relacionamento entre os seus membros, determina a sua
adaptabilidade para ( ) ultrapassar dificuldades (Santos, 2008, p. 189).
Embora o presente estudo aborde a problemática do sofrimento associado às
úlceras por pressão, há que considerar que, os doentes com úlceras por pressão
que participaram no mesmo, assumem algumas das características dos idosos
mencionados no estudo de Santos (2008), designadamente no que concerne ao grau
de dependência e ao seu status físico e mental. Além disso, conforme já
referimos, a existência de uma úlcera por pressão não é vivida de modo isolado,
estando inerente à condição integral do doente e repercute-se, de modo também
integral, na vida dos seus familiares.
Conquanto não constasse das questões de investigação, os participantes
referiram-se ainda a dois aspetos que, em nosso entender, contribuem para uma
melhor compreensão dos custos intangíveis associados às úlceras por pressão: os
recursos e o papel do enfermeiro (quadro 2).
Quadro 2 ' Sistematização das dimensões, categorias e subcategorias relativas à
perceção dos familiares acerca dos recursos e papel do enfermeiro no
acompanhamento de pessoas com úlceras por pressão.
A maioria dos entrevistados aludiu aos recursos que costuma utilizar para lidar
com a situação que vivenciam, assim como mencionaram o contributo dado pelos
enfermeiros. Assim, considerando que os custos intangíveis se referem às perdas
que não são suscetíveis de serem quantificadas, e atendendo a que este estudo
se inscreve no âmbito de um projeto mais vasto relativo ao impacto económico
das úlceras por pressão (ICE2), julgamos oportuno refletir acerca dos recursos
usados pelos familiares dos doentes com úlceras por pressão, bem como sobre o
papel do enfermeiro.
Quanto aos recursos, estes são sobretudo os seguintes:
- Recursos pessoais
* Recursos pessoais externos
Apoio de familiares ' "( ) o meu marido toma bastante conta dele. É
bastante atencioso. Vai ver a ferida " (E3).
Apoio de cuidadora ' "( ) tem uma senhora aqui todo o dia com ela
( )" (E7).
Apoio de outros profissionais de saúde ' "( ) a médica de família dela
agora vem cá sempre que é preciso" (E5).
* Recursos pessoais internos
Características pessoais ' "( ) sou uma pessoa que em adapto a coisas
complicadas ( )" (E1).
Crenças ' "Demoramos quatro meses para arranjar a senhora. A gente
procurava mas, é assim, havia duas, três, quatro senhoras, mas como era homem,
elas não queriam. Depois, esta senhora já tinha trabalhado num lar e indicaram-
ma e foi Nosso Senhor que pôs a mão" (E3).
- Recursos materiais ' "( ) comprou-se uma bota para proteger"
(E4).
- Recursos informativos
* Livros ' "( ) eu também depois fui para os livros ( ) ver aquilo o que
é que poderia degenerar ( )" (E1).
Os recursos referidos, embora, na sua maioria, sejam tangíveis e, portanto,
quantificáveis, são suportados pelos familiares dos doentes com úlceras por
pressão. Logo, não costumam ser contabilizados nos orçamentos e relatórios
financeiros produzidos pelas entidades e instituições de saúde. Além disso, há
que considerar que estes recursos, não só implicam custos económicos diretos,
como contribuem para um aumento das preocupações dos familiares e,
consequentemente, determinam e exacerbam o sofrimento experienciado pelos
mesmos.
No que concerne aos recursos propriamente ditos, estes convergem com os que
foram enunciados por Santos (2008) que se refere, precisamente, à aceitação
interna da situação, ao apoio informal e ajuda através da religião. Por sua
vez, Petronilho (2007, p. 159) salienta a importância da informação escrita
para o cuidado informal à pessoa doente no domicílio, considerando-a como ( )
um recurso valioso para clarificar algumas dúvidas que possam surgir enquanto
estão sozinhos.
Relativamente ao apoio dos enfermeiros, este foi considerado pelos familiares
dos doentes com úlceras por pressão nos seguintes termos:
- Tratar a úlcera por pressão ' "As enfermeiras vêm cá e fazem o
tratamento" (E5).
- Apoiar ' "Apoiavam, apoiavam ( ) apoiavam qualquer coisa ( ) com o
tempo, uma pessoa, já a confiança é outra [Referindo-se ao enfermeiro]"
(E1).
- Informar ' "As enfermeiras diziam assim: se carregar ( ) e ficar a
marca não era bom sinal ( )" (E1).
- Demonstrar ' "( ) ir vendo, aprendendo com vocês [Enfermeiros], eu cá
aprendi foi com vocês" (E1).
- Determinar ' "( ) as enfermeiras ( ) perguntam sempre se ela teve
febre" (E7).
De acordo com o ICN (2011, p. 100) tratar consiste numa ação do tipo atender:
cuidar, aliviando, terminando, removendo ou resguardando alguma coisa,
referindo-se, no caso dos participantes, ao conjunto de cuidados prestados à
úlcera por pressão. Por sua vez, apoiar define-se como assistir: ajudar social
ou psicologicamente alguém a ser bem sucedido, a evitar que alguém ou alguma
coisa fracasse, a suportar o peso ( ) a aguentar uma situação considerada
difícil (ICN, 2011, p. 95). Informar é a ação de comunicar: alguma coisa a
alguém (idem, p. 97) e, neste caso, diz respeito ao ato de transmitir
informação no sentido de aumentar o conhecimento dos familiares relativamente
às úlceras por pressão, quer em termos de tratamento, quer de prevenção. A este
nível, também se reflete a ação de demonstrar, esta definida como executar:
mostrar ( ) um comportamento observável (idem, p. 96), que visa a aquisição e
desenvolvimento de capacidades por parte do familiar para tratar uma úlcera por
pressão no domicílio, caso tal se revele necessário. Por último, determinar
consiste na ação: encontrar ou estabelecer algo de modo preciso (idem, p. 96)
e, de acordo com o participante que se referiu a esta intervenção do
enfermeiro, tal está associado ao ato de determinar sintomas que a pessoa com
úlcera por pressão possa ter evidenciado.
Face ao exposto, denota-se a primazia percebida pelos entrevistados quanto às
intervenções de cariz mais instrumental, cujo objetivo se dirige, sobretudo,
para os conhecimentos e capacidades do familiar no sentido de lidar com a
presença duma úlcera por pressão. Estes resultados, ainda que indiretamente,
vêm ao encontro dos referidos por Petronilho (2008, p. 20) que, reportando-se a
Coleman et al. (2004), afirma que a ação dos profissionais de saúde na ajuda
aos doentes e respetivos familiares cuidadores ( ) no regresso a casa ( )
reportam-se a informação importante sobre dimensões dos cuidados de saúde como:
a gestão do regime terapêutico, a gestão da sua condição de saúde, o
reconhecimento de sinais e sintomas de agravamento ( ). Embora uma das
intervenções enunciadas tenha sido o apoiar, não se evidenciou a valorização e
consequente intervenção dos enfermeiros a nível do impacto emocional e do
sofrimento experienciado pelo doente e familiares, devido precisamente às
úlceras por pressão.
Conclusão
Os resultados deste estudo contribuem para uma melhor compreensão acerca do
modo como os familiares vivenciam o processo de acompanhamento de um ente
querido com úlceras por pressão. Tendo como objetivo determinar os custos
intangíveis das úlceras por pressão, verificamos que, no âmbito do presente
estudo, estes estão essencialmente associados a sentimentos de angústia,
preocupação, revolta, injustiça, depressão e cansaço, os quais concorrem para a
existência de sofrimento. Pese embora a limitação inerente ao facto de não ter
sido possível compreender o impacto emocional das úlceras por pressão no
próprio doente, constatámos que, sob o ponto de vista dos familiares, este
consideram que o ente querido vivencia um processo marcado pela dor, mal-estar
e sofrimento. As necessidades de informação e de cariz económico também
emergiram como aspetos a considerar que, por sua vez, comportam custos, na
medida em que implicam uma resposta adequada por parte dos serviços de saúde e
sociais (custos tangíveis) e exacerbam o sofrimento já experienciado pelo
doente e família (custos intangíveis).
Além disso, percebe-se que as úlceras por pressão têm implicações na relação
existente entre a pessoa doente e o familiar, bem como na vida pessoal,
familiar e social deste. Com efeito, os próprios recursos internos e externos
do familiar passam a ser mobilizados em torno do ente querido e das
necessidades que este possa apresentar, designadamente em termos de adaptação à
situação e de definição de estratégias pessoais e familiares que lhes deem
resposta.
Não obstante a relevância que as úlceras por pressão têm, há que salientar o
facto de, segundo os resultados deste estudo, estas serem consideradas, pelos
familiares, como mais um problema a ter em conta dentro de um quadro mais vasto
inerente à condição global do doente e, portanto, como fator acrescido e
exacerbante do sofrimento que está associado a esta vivência. Embora tal não
seja quantificável e objetivável em termos monetários, constatamos, pois, que o
sofrimento associado às úlceras por pressão comporta custos intangíveis que
exigem uma atenção e intervenção privilegiada por parte dos serviços de saúde.
A este propósito, e considerando que é o enfermeiro o profissional de saúde
quem habitualmente se desloca com regularidade a casa dos doentes com úlceras
por pressão e que lida com os familiares deste, entendemos que se encontram
numa posição privilegiada na equipa de saúde no sentido de abordar e ajudar a
superar o sofrimento associado a esta problemática.