Caleidoscópio do Ano Olímpico
Caleidoscópio do Ano Olímpico
Jorge Olímpio Bento
1. Da negação à exaltação [1]
Ainda há desporto? Sim, embora pouco se fale nele. É difícil vê-lo nas páginas
de muitos jornais; e nem com a lupa o vemos nos programas televisivos.
Raramente se ouve falar dele nas conversas do quotidiano, marcadas por disputas
apaixonadas, distantes da razão desportiva; e o mesmo vai sucedendo no discurso
político.
Todavia ainda há desporto e ele fala-nos de elevação e excelência. Nos dias
correntes até está em alta; os Jogos Olímpicos estão à porta e a qualificação
para eles obtida por um número extraordinário de atletas nossos diz-nos que o
desporto resiste e avança contra as vicissitudes das circunstâncias. Por isso
mesmo esta é uma ocasião de festa e de dar largas ao orgulho de afirmar e
elevar os valores desportivos.
São esses atletas e os ideais e princípios de carácter ético e moral, neles
incarnados e simbolizados, que garantem a inigualável e magnetizante força de
atracção do desporto. São eles que fazem dos Jogos Olímpicos dias festivos e
santificados e conferem ao desporto um estatuto cultural, tornando-
o instrumento de enriquecimento do sentido da existência, de melhoria e
embelezamento da vida, nestes tempos de horizontes curtos, de portas cerradas
ao riso e ao canto e enegrecidos pela dureza das privações, restrições e
necessidades.
Sim, são eles que ajudam a manter e irradiar o mito do potencial renovador do
desporto nesta conjuntura de mentiras e falsidades, de alienação e
adormecimento das vontades, de cerco e inquisição, marginalização e perseguição
dos que ousam ter voz e emitir opinião.
São os Jogos e os seus e nossos atletas que vêm até nós com as mãos suadas de
Deuses. Não são meninos de oiro; mas cumulam-se de sol e distribuem-no
generosamente a todos quantos têm a alma e o coração gelados e feridos pela
sombra fria e cortante da amargura, da falta de esperança e de motivos para
cantar e dançar.
Tragam ou não oiro, prata ou bronze, os nossos atletas olímpicos são justos e
sublimes triunfadores. Eles, os seus treinadores e dirigentes são já campeões
do nosso apreço e louvor, da nossa emoção e gratidão. Vamos com eles até
Pequim. Não lhes pedimos nada, a não ser que sintam que são parte de nós, que
estaremos com eles em todo o tempo e que vivam os Jogos com a máxima alegria e
a mais genuína e legítima felicidade. Por favor, riam, cantem e dancem por si e
por todos nós!
2.Da ética, da virtude e da excelência[2]
Devemos ao filósofo Heidegger a proclamação da ética do cuidado' de si e dos
outros. Ela intima cada um em particular e o Estado em geral a cumprir a sua
parte, no tocante à melhoria da vida pessoal e social.
Aquela ética não desculpa ou branqueia, nem – muito menos – consente atitudes e
medidas de incúria, desleixo, imoderação, omissão, moleza, acomodação,
irresponsabilidade, resignação e acrasia. Ela compromete-nos a não pactuar com
actos propícios ao avanço da vileza, do grotesco, desproporcionado e imundo e
contrários ao dever de perseguir, com brio e zelo, a busca da melhoria, da
virtude, da estética e excelência.
A ética do cuidado' de si e dos outros dá hoje muito que pensar e põe a nu os
paradoxos desta hora de fome, de tragédia e miséria físicas e morais. Pouco a
pouco vai-se perdendo a ligação com o outro. O Outro apaga-se no nosso olhar; o
pouco de erotismo sobrante serve, mal e porcamente, para manter um
individualismo inútil e destrutivo. Caímos no regime da pulsão de morte, no
precipício da regressão, negação e destruição. Como se o projecto humano
tivesse fracassado e nos restasse tentar construir, a partir dos escombros, o
projeto de outro animal, com um nome que a solidariedade nos dará.
E agora? O exame e avaliação deste tempo são deveras incriminadores; obrigam-
nos a colocar questões e a renovar os propósitos e caminhos. Vamos renunciar
aos sonhos e ideais? Vamos aprisionar o humanismo? Vamos soçobrar às nossas
mazelas? Vamos trair todos quantos abriram os caboucos e assentaram os pilares
da condição humana? Não há mais forças, estímulos e obrigações no nosso
fracasso?
É verdade factual que não somos ainda humanos. Mas, ao assumir esta postura,
somos quase humanos. Somos imperfeitos? Sim, há em nós muito por fazer! Já não
praticamos a antropofagia como os nossos antecessores primitivos; só que,
alerta Manuel Bandeira (1886-1968), não ser canibal não significa não pensar
canibal. Ao alimentarmos as desproporções sociais estamos a aumentar as bandas
da fealdade, a afiar as garras amargas da necessidade e a alargar as margens
que nos afastam do belo e justo.
Por mais luz que seja derramada sobre as trevas, a era do breu nunca desaparece
de todo; e, por vezes, ressurge com toda a sua escuridão e brutalidade. Como
que a dar razão à desolação de Jorge Luís Borges, ao ouvir dentro e fora de si
vozes de penúria e insuficiência e constatar que os actos atraiçoam a
consciência adormecida: Caminho com lentidão, como quem vem de tão longe que
não tem esperança de chegar.
Todavia não dispomos de alternativa, nem podemos ficar tolhidos pelo
desapontamento e desilusão. Mesmo sendo desigual a luta contra o poder de fogo
das grandes redes de comunicação de massa, o labor de cada um soma-se ao de
muitos viciados em esperança. O pessimismo, a negatividade e a barbárie – esta
hoje tão presente e crescente de uma forma assaz dissimulada! – não justificam
a desistência; antes nos intimam a levar por diante a empreitada. Com o afinco
e noção de quem olha para a frente e se vê muito distante do desígnio que para
si traçou; mas também com o orgulho e encorajamento de quem olha para trás e vê
quanto já andou, quão fundo e medonho era o lugar donde veio.
Não há, pois, outra via, a não ser perseverar em realizar a Humanidade. Cumpre-
nos interiorizar e perfilhar o aviso de Eduardo Galeano: Somos o que fazemos,
mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos. Não temos feito
grande coisa, mas podemos tentar mudar. É isto que nos anima e exorta a seguir
em frente na senda da ética e estética, da virtude e excelência, procurando
iludir o negrume feio da noite com o canto efusivo do optimismo em cada dia.
Ademais a utopia tem uma paciência sem limites. Por isso ela é a prótese de que
mais carecemos nesta hora escura. Precisamos de ser utópicos, mas não
desesperados, nem sequer derrotados. Havemos de parecer e ser muito melhores,
se hastearmos e honrarmos a bandeira da coragem, dos princípios e valores. E
desmascararmos a hipocrisia e a dissimulação. Enfim, nesta era de mágoas,
agonias e opressões importa escutar o Pe. António Vieira: Cada um é as suas
acções e não outra coisa.
3. O Ninho do Pássaro e o prodígio do Homem[3]
A chama acendeu-se no Ninho do Pássaro e mostrou o Sol a romper a escuridão da
noite, a trazer a claridade da manhã e inundar de luz e calor a jornada da
Vida. O Pássaro e o Sol são o homem voador, de corpo, mãos e pés atados à
gravidade do limo da terra, mas capaz de se dar formas de alma e, com as cordas
e asas da vontade, sobrepujar o peso e indolência do mal, erguer anseios,
angústias e apelos ao céu, levitar, subir e sobrevoar o cume da ética e
dignidade.
Da excelsa alegoria recebeu o Humanismo um impulso de renovação e encorajamento
para denunciar e afrontar os fantasmas e horrores desta conjuntura de pasmo e
desolação. Contrariando o império insano da razão tecnocrática, o Homem surgiu
cimeiro. A coreografia, sincronia, suavidade e fulgurância de gestos
esplendorosos, de cantos maviosos e figuras radiosas revelaram o filho do
pecado redimido pela pureza da água, revestido da beleza da verdade, iluminado
pelo fogo da civilização, a adquirir assim teor de Humanidade e levantar voo
para o divino. Situaram-no acima da máquina, o humano à frente do tecnológico,
os fins em plano superior ao dos meios. A técnica e a tecnologia não foram
recusadas - longe disso! Foram, sim, postas no devido lugar, usadas em grau de
apurada exigência e clarividente sabedoria. Afinal as proezas técnicas são
fruto do engenho humano, logo não se sobrepõem ao Homem; este deve refulgir
elevado sobre todas as suas criações.
O Ninho do Pássaro é um arroubo do assombro e deslumbramento. Na excelência
estética das cores, dos sons, desenhos e confabulações, está a arte do detalhe
de um ser minúsculo animado da propensão para imaginar e assumir visões
grandiosas. Um ser artístico' e cultural que inventa e se alimenta da matéria
dos sonhos, símbolos e mensagens. Esse ser é o atleta que escreve, com a
inspiração do querer, os versos do esforço, a tinta do suor, o estilo do rigor
e a métrica da desmedida, poemas de louvor à perfeição. Cria graça e encanto;
sublima o barro grosseiro em seda finíssima, delicada e macia. Sabe que chegou
a hora de se reger; e que está por sua conta e risco, sem manual de instrução.
Deus trabalhou com afã durante sete dias e deixou de propósito a obra
incompleta para que o Homem fosse o visionário, o arquitecto, o sujeito e o
realizador do oitavo dia da criação: o da conclusão do Seu projecto.
Durante algumas horas o mundo viveu uma configuração quase perfeita da magia e
do encantamento. Não pela exibição do poder da força, mas por uma liturgia da
leveza, singeleza, sensibilidade e harmonia oníricas, pelo saber e sabor
dulcíssimos da comunicação e entendimento entre os homens. Eles vieram de todas
as direcções, do Sul e do Norte, do Este e do Oeste; escalaram montanhas,
atravessaram depressões, rasgaram trevas e abriram horizontes para ultimar a
Torre de Babel e no céu estrelado pintar as telas e celebrar as bodas da
família da Humanidade. Cantaram e dançaram como crianças feitas de fantasias e
ideais que incendeiam a alma, enternecem o coração e humedecem os olhos. Apolo
e Dionísio, Prometeu, Hércules, Buda, Lao-Tsé, Moisés, Cristo e Maomé surgiram
irmanados. Auschwitz, Hiroxima, o Gulag e Munique foram exorcizados. A relação
entre contemporaneidade e tradição, progresso e natureza, local e universal,
estranho e familiar tingiu-se de equilíbrio e sintonia, não dando azo à crise e
cupidez da desarmonia. O dragão não andou esquecido, mas a primazia foi para a
pomba branca e refulgente da paz, a mais sublime e exaltante expressão da forma
humana. Porque é a da suprema virtude do Homem: a humildade de respeitar e
admirar os outros, próximos e distantes, de se espantar, inebriar e deslumbrar
com as suas diferenças, grandezas e feitos. Confúcio bateu palmas e exclamou
num rompante de contentamento: Os nossos amigos vieram de longe, tão felizes
que nós estamos! Quando o estrangeiro vem até nós, é Deus que nos visita.
O Ninho do Pássaro reavivou o sentido da mensagem e colocou-o numa altura de
obrigação e afeição conforme à do incitamento olímpico. Os mitos não são
imaginados para serem descartados; pelo contrário, são criados para nos
servirem de bússola e tentarmos viver de acordo com eles. Se os seguirmos, por
certo seremos muito melhores e ajudaremos a tecer, a afirmar e colorir o
prodígio e a maravilha do Homem, a fabricar outro mundo: o mundo do melhor de
cada um, dos outros e de todos.
4.Balanço dos Jogos[4]
Os Jogos Olímpicos chegaram ao fim, deixando muitos desiludidos. Os primeiros
são os que, durante meses e até ao último dia, se esfalfaram a criar um clima
de desconfiança e depreciação da China. Viam polícias em toda a parte a impedir
o mínimo espirro e invadir o silêncio dos pensamentos, a reprimir e prender
tudo quanto mexesse; o ar seria irrespirável e a humidade insuportável, as
marcas do horror e crueldade estariam em todo o lado e não sei quantas
desgraças mais. Afinal o balão saiu furado; os chineses deram uma lição de
sabedoria ao mundo em vários capítulos. Os Jogos de Pequim ficarão na grata
memória de todos quantos se movem por valores, princípios, ideais e utopias
para uma Humanidade estética e eticamente engrandecida.
Há mais desiludidos: uns por se reverem na mentalidade que só celebra o
vencedor e põe em cima dos restantes o estigma de derrotado; outros por
julgarem que um campeão olímpico se faz com a facilidade com que se inventam
comentadores do futebol ou com a esperteza e a dolce vita da ética indolor que
garante êxito nalguns domínios. Essa gente baixa e mesquinha, sem pudor,
exigências e escrúpulos, quando escreve ou fala de desporto diz obscenidades:
só devia ir aos Jogos quem tem hipótese de ganhar e não todos os atletas com
condições para lá estar!
É verdade que alguém se enganou acerca do local e do momento dos Jogos. Pensou
que eram em Lisboa e nas profusas entrevistas dadas a jornais, televisões e
páginas cor-de-rosa. Mas aí não se forja a têmpera do vencedor olímpico. Os
Jogos iam ter lugar em Pequim, no mês de Agosto. Era lá, no confronto com
outros, que os desejosos de medalhas deviam demonstrar os seus méritos. De nada
valia para isso andar, ao longo do ano, a juntar vitórias e proventos em
sucessivos torneios e meetings, esperando a consagração olímpica como corolário
natural dos sucessos anteriores. Os Jogos seriam a hora e a prova da verdade.
A fanfarronice e faramalha tiveram rédea solta. A incultura e ignorância ainda
dominam e muito: Mourinho é o melhor treinador do mundo, Cristiano o melhor
jogador, a Telma a melhor judoca, a Vanessa a melhor triatlista e por aí fora.
São os melhores, logo ganham com toda a certeza. Como se no desporto houvesse o
melhor e não somente aquele que, numa dada prova, suplanta os outros, nada
mais. E como se a vitória estivesse garantida por suposto merecimento e pelas
marcas antes alcançadas e não pela prestação na competição em causa. Enfim o
ovo já era certo, sem ter saído do buraco da galinha; e a pele do urso já era
vendida, sem o animal ter sido capturado.
A folia excessiva do carnaval dá luto na quaresma e não ressuscita na Páscoa;
festeja no mar e afoga-se à vista da praia. Não é assim que as medalhas vêm
parar ao pescoço. Não foi assim que Rosa Mota, Carlos Lopes, Fernanda Ribeiro e
Nelson Évora se coroaram de glória, mas com serenidade e rigor nas palavras e
atitudes; souberam conter-se e aguardar o dia e lugar certos para então sim se
excederem, saírem do comedimento e nos encherem de contentamento.
Percebe-se a decepção; dava jeito que o desporto adoçasse, mais uma vez, o
estado de frustração nacional. Mas é soez, perverso e inaceitável crucificar
atletas e dirigentes como bodes expiatórios do desencanto. A olimpíada que
agora se fechou constituiu um ciclo de nítido avanço do nosso desporto. Com
efeito o desenvolvimento não se mede apenas pelas vitórias finais; avalia-se
também e sobretudo pelos êxitos logrados no percurso. Ora este ciclo olímpico
alargou em muito a nossa valia desportiva: cresceu o número de atletas e de
modalidades e subiu o nível de resultados com acesso aos Jogos, elevou-se a
competência dos técnicos, melhoraram os apoios, limaram-se arestas na
cooperação, ganhou-se uma consciência mais apurada da necessidade de
disponibilizar no devido tempo os meios necessários, conjugaram-se vontades e
recursos científicos e laboratoriais para o controle do estado e evolução do
treino e ficou provada uma elevada proficiência neste domínio. Por tudo isto
nem o governo nem, muito menos, o COP podem ser alvo de censura. Ao invés, é
justo reconhecer que, nesta olimpíada, o COP atingiu um notável índice de
vitalidade e relevância. Outra é a visão de vampiros, abutres e necrófagos
sempre à espreita.
5. Fados e desgarradas[5]
Coitados dos administradores de bancos e afins afogados em fraudes e falências!
Dão entrevistas em páginas dos jornais, bem como em canais de rádio e
televisão. Foi tudo simples e transparente; enriqueceram da noite para o dia,
sem cometer qualquer ilicitude; o dinheiro veio de todos os cantos ao seu
encontro, soprado pelos ventos do trabalho virtuoso, inteligente e honrado.
Ainda se fazem milagres!
Mas agora estão em apuros e vivem dificuldades. O quadro é pungente e a
torrente de lágrimas da sua ingenuidade e inocência inunda a nossa profunda
compaixão. Atrevo-me a apelar à tradicional solidariedade dos adeptos do
futebol: vamos todos depositar um Euro, só um, numa conta aberta a favor destas
indefesas vítimas da maldade e indiferença da liberdade e desregulação do
mercado?!
Olho a teia dos negócios e da política e os seus senadores e, não sei porquê,
vem-me à memória o conto Ali Babá e os Quarenta Ladrões. Vou relê-lo, para ver
se percebo melhor. Mas será ainda esse o título do conto? A quadrilha terá só
um chefe e aquele número de larápios?
Nas Ciências do Desporto ocupamo-nos a estabelecer, entre outros assuntos, o
perfil do atleta com sucesso. Há estudos na matéria e até já há quem tente
manipular a genética para produzir, por encomenda, os futuros campeões. Ora
cuidava eu que íamos na vanguarda; mas que grande desilusão! Afinal na política
estão muito mais avançados; o segredo foi a alma do negócio. O que mais se vê
são políticos de sucesso nesta era de mercado neoliberal. Mas ninguém nos diz
explicitamente quais são os traços marcantes do seu perfil de ganhadores.
Gostava de saber se a ética, a decência, a transparência, a rectidão, a nobreza
de carácter, a honra e a decência contam para alguma coisa. Por favor, não há
por aí alguém que me tire do estado de desengano crescente?!
Resta exclamar como Sá de Miranda (1495-1558): M'espanto às vezes, outras
m'avergonho.
[1] Texto escrito em 24.07.2008.
[2] Texto escrito em 31.07.2008.
[3] Texto escrito em 08.08.2008, após a cerimónia de abertura dos Jogos
Olímpicos de Pequim.
[4] Texto escrito em 28.08.2008.
[5] Texto escrito em 27.11.2008.
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