Análise do processo de instrução no treino de jovens: um estudo de caso no
basquetebol
Introdução
Ao longo dos anos, vários países têm desenvolvido programas específicos para a
formação de treinadores desportivos. Tais programas são operacionalizados,
basicamente, a partir em um conjunto de conhecimentos formais ou teóricos,
organizados por níveis de progressão bem determinados(66, 69). No entanto,
algumas investigações recentes, realizadas especialmente para esclarecer a
forma como treinadores de sucesso desenvolvem o seu conhecimento profissional,
têm questionado a centralidade destes programas, bem como destacado a
importância do conhecimento prático para a formação(44, 66).
De fato, o treinamento desportivo é uma actividade profissional que requer do
treinador o domínio de um tipo específico de conhecimento ou a associação de
conhecimentos formais e informais, do qual os programas de formação não podem
mais prescindir(46). É um conhecimento obtido por meio da experiência e também
de um processo contínuo de reflexão(28, 30, 32), que permite ao treinador lidar
com as situações cotidianas complexas, de natureza interpessoal, e que envolve
quase sempre valores e significados de prática muito particulares(22).
Um aspecto a destacar é que a temática do conhecimento do treinador constitui
uma linha de investigação em expansão, a qual tem privilegiado o estudo das
características do conhecimento prático de treinadores “experts”. Além disso,
as pesquisas empíricas tem buscado a descrição e o desenvolvimento de modelos
conceituais de actuação, com o propósito de aperfeiçoar os processos de
formação de treinadores(2, 20, 23, 40). Na actualidade, as principais
contribuições nesta linha de investigação são representadas pelos estudos de
Abraham et al.(2); Côté et al.(20); Chelladurai(17); Cushion et al.(23);
d’Arripe-Longueville et al.(24).
Ao estudar a prática pedagógica de professores, Grossman(37) elaborou um modelo
heurístico que tem sido utilizado em diversas áreas para descrever e explicar a
forma como os professores operacionalizam o seu ensino, nomeadamente o
Conhecimento Pedagógico do Conteúdo (PCK). Este modelo tem sido utilizado
também como ponto de partida para investigar e compreender a maneira como
treinadores realizam o seu trabalho, tanto de treinadores ou instrutores
“experts” de hóquei no gelo(31), de golfe(8), de voleibol(4), quanto de
treinadores na formação vinculados à modalidade de basquetebol(43).
Nesta perspectiva, o objectivo deste estudo foi descrever a forma com um
treinador de jovens no basquetebol concebe e articula os componentes
relacionados à execução do seu treino, nomeadamente os propósitos para o
treino; a estrutura e sequência que desenvolve o seu conteúdo; a avaliação das
necessidades, interesses e particularidades dos jogadores; a natureza das
tarefas e as estratégias empregadas para obter a aprendizagem, motivação e
rendimento.
Para atender aos objectivos do estudo e permitir uma interpretação adequada a
respeito do estudo de caso, são fornecidas informações complementares a
respeito da biografia do treinador, como ele descreve a sua trajectória
profissional e formativa e, por último, as principais características do seu
modo particular de trabalho na formação de jogadores de basquetebol,
evidenciadas durante um período específico (corte transversal) do seu trabalho
anual.
Material e Métodos
O método
Para responder às questões norteadoras deste estudo, o método adoptado foi de
uma pesquisa qualitativa. Acredita-se que o uso do termo qualitativo para
caracterizar o método de investigação seja o mais representativo diante da
diversidade de denominações das práticas investigativas desta natureza
encontradas na literatura(45). Trata-se de uma denominação mais ampla e
agregadora que contempla um conjunto de múltiplas metodologias com
procedimentos comuns e complementares entre si, úteis para se chegar a
resolução de um problema de pesquisa(25). Na Educação Física, as pesquisas de
natureza qualitativa têm experimentado um aumento gradativo a partir da década
de 1980(14, 34, 59), assim como nas pesquisas a respeito do treinador(21, 30).
A investigação qualitativa, de acordo com Bogdan e Biklen(10), caracteriza-se
pelo seu carácter descritivo e interpretativo, onde os dados são analisados
principalmente de forma indutiva e os significados pessoais que as pessoas
atribuem às suas vidas são fundamentais. Além da fonte directa de dados ser o
ambiente natural e o investigador ser o instrumento principal de pesquisa, há
um interesse maior no processo gerador do que nos resultados ou produtos
gerados.
Para examinar em profundidade, de forma detalhada e “holisticamente” um
indivíduo em contexto(52), realizou-se um estudo de caso qualitativo. Nesta
investigação em particular, o estudo de caso pode ser classificado também como
do tipo interpretativo(63).
A selecção do sujeito foi realizada a partir de indicadores de qualidade
profissional, definidos por critérios objectivos (registos, relatórios de
federação desportiva) e subjectivos (consulta a profissionais, dirigentes e
treinadores) relativamente à reputação profissional(33) e ao tempo de
experiência de prática(9). O treinador investigado obteve, nos últimos cinco
anos, bons níveis de performance ou classificação em competições oficiais;
desfruta de reconhecimento de treinadores e dirigentes a respeito de seu
conhecimento e contribuição na formação de jogadores no basquetebol; está
associado a um núcleo importante e tradicional de formação de jovens jogadores
de basquetebol; possui um mínimo de experiência de prática profissional de 10
anos no ensino do basquetebol; expressou disponibilidade e motivação para
participar do estudo.
O modelo adoptado
Os resultados foram analisados a partir da estrutura do Conhecimento Pedagógico
do Conteúdo (PCK) elaborada por Grossman(37). Os componentes básicos do PCK são
o conhecimento dos propósitos para o ensino do conteúdo, o conhecimento
curricular do conteúdo, o conhecimento das estratégias e o conhecimento do
professor a respeito das concepções e dificuldades das aprendizagens dos
alunos.
O conceito conhecimento pedagógico do conteúdo denota uma categoria particular
de conhecimento, emergente das transformações pedagógicas que o professor
realiza no conteúdo da sua disciplina com o objectivo de tornar a matéria que
ensina compreensível para os alunos(1, 34, 35, 37, 58). No caso específico
desta investigação, ele abrange as transformações que o treinador realiza para
implementar o seu programa de treino.
Os procedimentos de recolha e análise dos dados
Para obter o máximo de informações a respeito do processo de treino deste
treinador, foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas; observação
sistemática das sessões; análise de documentos e anotações pessoais; e
procedimentos de estimulação de memória.
Os instrumentos utilizados na colecta de dados foram: dois roteiros de
entrevistas semi-estruturadas. O primeiro roteiro foi aplicado para identificar
dados biográficos, fontes de conhecimento, propósitos para o ensino,
organização do conteúdo e estratégias de ensino. O segundo roteiro foi aplicado
no final do micro ciclo observado, para identificar a forma como o treinador
avaliou a aprendizagem dos atletas. As informações contidas nas entrevistas
foram captadas e gravadas com gravador digital e foram transcritas com auxílio
de editor de texto. Foram utilizados também entrevistas recorrentes ou
entrevistas ao início e ao final de cada sessão de treino, no sentido de
verificar de forma pormenorizada como estas avaliações e alterações
curriculares ocorreram.
A observação sistemática do treino foi realizada, por um dos pesquisadores, nos
locais onde o treinador desenvolvia suas actividades quotidianas durante um
micro ciclo de treino ou quatro sessões consecutivas, sugeridas pelo próprio
treinador. Estas sessões também foram gravadas em vídeo e áudio. O
comportamento verbal do treinador foi captado por meio de microfone sem fio, de
lapela, preso ao treinador, com receptor acoplado à filmadora digital. A câmara
permaneceu fixada o mais distante possível do investigado, na tentativa de
diminuir o nível de interferência e espontaneidade nas acções de atletas e
treinador. A focalização da amplitude total da quadra foi privilegiada e o
pesquisador manteve-se numa posição fixa, próxima da câmara. Os dados
registados em vídeo e áudio digitais foram armazenados em microcomputador.
Posteriormente, todas as intervenções do treinador foram transcritas com o
auxílio do editor de texto. Os documentos referentes ao planeamento de treino
foram utilizados como fonte complementar de informação.
A última etapa de recolha de dados compreendeu os procedimentos de estimulação
de memória. Tais procedimentos consistiram na reprodução de imagens de vídeo e
áudio dos comportamentos gravados de uma das sessões do próprio treinador
investigado (seleccionada pelo próprio), para que ele explicasse as decisões e
acções realizadas no treino(47, 68). Igualmente, os comentários do treinador
foram armazenados por meio de gravador digital e transcritos para editor de
texto.
No início da colecta de dados, o participante do estudo foi informado a
respeito dos objectivos da investigação e assinou o termo de consentimento
livre e esclarecido, autorizando a gravação e divulgação dos resultados. Além
disso, o projecto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
Humanos em uma universidade pública em Santa Catarina-Brasil (projeto nº180/
2006).
Na análise dos dados utilizou-se a estratégia de triangulação de três
principais fontes de informação. A observação sistemática de treino constituiu
a principal fonte para identificar os conteúdos e as estratégias utilizadas. Os
dados das entrevistas serviram prioritariamente para identificar os dados
biográficos e propósitos de treino. Contudo, os dados das três fontes foram
constantemente confrontados para identificar pontos comuns ou divergentes a
respeito do conhecimento do treinador referenciados ao modelo teórico de
análise. Para o agrupamento e organização das informações referentes às
categorias de análise, previamente estabelecidas, utilizou-se o programa QSR
N.vivo, versão 2.0.
Além da triangulação, foram empregados os procedimentos de checagem pelo
participante e questionamento pelos pares(3, 5, 6, 65, 70), para assegurar a
validade descritiva e interpretativa dos dados. Ainda, para preservar o
anonimato do treinador adoptou-se o nome fictício Fernando.
Resultados e discussão
Quem é Fernando
Fernando nasceu no Estado de Santa Catarina no ano de 1979. Graduado em
Educação Física e com cerca de 10 anos de experiência como treinador na
formação de jogadores, possuía também especialização na área de desenvolvimento
infantil e estava cursando disciplinas no curso de mestrado em Educação Física.
No momento da colecta de dados estava desenvolvendo suas actividades
profissionais em uma escola da rede privada de ensino que engloba uma
associação desportiva e um complexo educacional voltado para a educação básica
e universitária, dentre as quais inclui-se a Faculdade de Educação Física.
Diariamente, seu tempo de actividade profissional se dividia entre o ensino da
Educação Física para estudantes do Ensino Fundamental do colégio e o
treinamento de equipes masculinas com idade entre 10 e 13 anos da Associação
Desportiva. Além da destacada participação (conquistas) em competições
estaduais e nacionais como treinador das categorias mais jovens de formação
desportiva, a valorização profissional de Fernando se amplia e se relativiza à
medida em que a associação desportiva, na qual desenvolve seu trabalho,
conquistou ao longo dos anos uma prestigiada posição no cenário desportivo
estadual e nacional, devido aos consistentes investimentos no basquetebol, seja
na formação ou em equipes profissionais.
Como aprendeu a ser treinador
(fontes de conhecimento)
A principal fonte de conhecimento para tornar-se treinador, segundo Fernando,
provem das constantes observações ou “vendo a atuação de outros treinadores”
que ele acredita serem competentes e que também nutre alguma admiração pessoal.
Aprender por observação ou “apprenticeship-of-observation”(37, 57) compreende
um processo de socialização que ocorre com uma pessoa ou aluno quando este
ingressa na escola ou em um contexto cultural de um professor em particular.
De facto, o seu modo informal de aprendizagem profissional(50) se caracteriza
por duas situações distintas, porém interligadas. Uma situação inicial,
imediatamente ligada à sua tarefa de assistente técnico, que apresenta
características similares ao conceito de mentorização(15, 16, 23), na medida em
que ele permaneceu sobre a orientação do treinador mais experiente no seu clube
por alguns anos (o mesmo que havia sido seu treinador e o estimulou a
acompanhá-lo em competições para realizar o controle das estatísticas das
equipes). O segundo momento de sua aprendizagem profissional ocorreu quando ele
já havia alcançado determinada autonomia como treinador principal, passando a
observar os demais treinadores nas competições em que participava. Nesta
perspectiva, Fernando cita vários treinadores do âmbito estadual com os quais
ele acredita que aprendeu algo.
De outro modo, ele reconhece a importância do papel da experiência na
construção do seu conhecimento para o treinamento. No seu entendimento, a
experiência deve ser tratada a partir de uma leitura do todo, guiada por uma
“linha de pensamento” própria de cada treinador. É também um tipo de
sentimento, uma sensibilidade particular, ou um “feeling” como ele mesmo
denomina. A interpretação que se faz destes argumentos é de que deve haver um
processo mental intermediário (reflexão) de transformação destas experiências.
Os dois elementos identificados no processo de aprendizagem profissional deste
treinador, nomeadamente as observações de treinos que realizou ao longo da vida
enquanto ainda era jogador, assistente e treinador principal, assim como o
processo reflexivo sobre tais experiências, têm sido reconhecidos como a forma
de aprendizagem profissional mais comum em treinadores de formação desportiva.
Além disso, têm-se convertido em um linha de investigação própria,
perspectivada numa abordagem teórica de interacção social ou sócio-cultural,
definida por Trudel & Gilbert(66) como “metáfora da participação”.
Os propósitos para treinamento
O conhecimento dos propósitos do treinador pode ser definido como os objectivos
que ele estabeleceu para o treino de determinada matéria. Referenciados aos
valores sociais, os propósitos servem como filtros que condicionam a selecção e
estruturação do conteúdo de uma disciplina, assim como os procedimentos de
instrução no ensino do professor(35). Os valores têm um carácter avaliativo do
que seja prioritário para ensinar(27).
Na base dos propósitos deste treinador, portanto, estão valores pessoais ou
terminais de paixão pelo esporte, traduzidos por ele pela típica
imprevisibilidade dos jogos colectivos (de que nada está definido em um jogo).
Da mesma forma, manifesta o desejo de usufruir de uma vida mais estimulante ou
excitante. Os valores instrumentais foram evidenciados a partir da crença de
que o basquetebol é um jogo de estratégia que implica inteligência (reflexão),
criatividade, capacidade de resolver problemas por parte do praticante. Ainda
mais, determinação, auto-suficiência, certa integridade de carácter ou
honradez.
Lyle(46) destaca a necessidade de haver uma distinção entre o que, com
frequência, se denomina de filosofia do treinador, tratado aqui como
propósitos, e o modelo de treino. Nesta perspectiva, o modelo de treino pode
ser baseado em um conjunto de crenças que implica na obtenção de vantagem ou
desvantagens do uso de métodos, estratégias defensivas/ofensivas, ou qualidades
que o treinador deseja ver nos jogadores para alcançar o nível de rendimento
esperado. A filosofia do treinador, por outro lado, pode englobar este modelo
de performance e os valores mais gerais ou os valores sociais.
Relativamente aos propósitos ligados ao modelo de treino, seguindo a definição
de Lyle(46), o treinamento de Fernando guiou-se por um modelo de jogo defensivo
que desejava implementar para a participação de seu grupo no Festival de
Basketball, que seria realizado no final daquele ano. Neste sentido, este
treinador estabeleceu este modelo (táctico) de jogo, fortemente marcado pelos
aspectos defensivos, e a partir do qual o seu treinamento foi idealizado.
A ideia central deste modelo defensivo era de que os jogadores de sua equipe
deveriam proteger a sua cesta e induzir os jogadores atacantes ao erro,
explorando a regra dos 24 segundos de posse de bola do ataque. Para isso, seu
trabalho foi guiado pelos “princípios operacionais” estabelecidos por Bayer(7),
nomeadamente “impedir a progressão dos jogadores e da bola para a minha própria
baliza (cesta)” e “protecção da minha cesta e do meu campo”(p.47).
A organização dos conteúdos
Fernando elaborou uma “programação” para o treinamento anual e descreve por
tópicos todas as actividades a serem realizadas. Cada tópico corresponde a um
micro-ciclo quinzenal de trabalho. Foram aproximadamente 20 (vinte) micro-
ciclos durante o ano em que houve a investigação. O plano diário, por sua vez,
foi realizado mentalmente em função das circunstâncias de treino e de
aprendizagem dos jovens. Contudo, em algumas sessões de treino ele utilizou-se
de pequenos “lembretes”, nos quais estavam indicados os temas ou exercícios
planejados para o dia.
Em termos gerais, o planeamento baseia-se em uma abordagem que envolve as fases
de jogo. O primeiro “bloco” de conteúdos correspondeu ao ataque e o segundo
“bloco” à defesa. Sinteticamente sua programação consistiu em: avaliação
inicial a partir da observação dos jovens em situação de jogo, treino da
técnica ofensiva, introdução a defesa individual e zona, treino do contra
ataque, ataque de posição, defesa individual (defesa ao atacante sem bola e com
bola), treino de defesa pressão individual e pressão zona, participação em
competições locais e internas.
Durante a recolha de dados, o treino de Fernando esteve focado
preponderantemente ao aspecto da táctica individual, nomeadamente aos papéis do
defensor nas acções ao atacante sem a posse da bola (defesa ao atacante sem a
bola). Para Oliveira(51), estes conteúdos correspondem a um conjunto de
“papéis” (atacante com bola, atacante sem bola, defensor) que os jogadores de
basquetebol devem assumir durante as fases de jogo (ataque e defesa). Na
defesa, em particular, os papéis são pressionar, sobremarcar, recuperar a bola,
ajudar e flutuar. O termo papéis é também utilizado por Moreno(38) na análise
da estrutura funcional dos desportos de cooperação/oposição.
No caso deste treinador, estes conteúdos foram treinados com ênfase à
sobremarcação (defesa ao jogador sem bola do lado da bola ou 1ª linha de passe)
e à flutuação. A pressão ao jogador atacante com bola e ao atacante sem bola
completam a sua proposta curricular. Estes últimos não foram exactamente o
objectivo principal deste micro-ciclo, contudo as actividades propostas por
este treinador culminavam quase sempre com situações de 1 x 1 com estímulo a
defesa individual simples e pressão.
A instrução no ensino
Verificou-se que Fernando subordina os aspectos técnicos ao táctico, sem que
isso represente alguma desvalorização do primeiro em relação ao segundo. A
questão que se coloca, portanto, é como este treinador treinou estes conteúdos
ou qual o comportamento de instrução foi mais marcante na realização desta
tarefa. Relativamente a estes comportamentos, percebeu-se que suas instruções
(pré-instrução) foram em menor proporção e de carácter geral, ou seja, o
treinador transmitia conteúdos mas não especificava ou particularizava formas
de executar habilidades ou decisões tácticas(29). Por outro lado, o
detalhamento do conteúdo e a quantidade das intervenções foram diferentes para
as instruções que ocorriam durante a prática das actividades (feedback
pedagógico). De certo modo, estas formas de intervenções foram aquelas que mais
caracterizam o comportamento de treino de Fernando, destacadamente pelo seu
envolvimento e interacção com os jovens e pelo desejo de fornecer o máximo de
informações no momento mais apropriado, ou como ele mesmo indica, de não deixar
“…fugir muito as oportunidades de correção”.
Outra característica verificada no treino de Fernando foi o uso da verbalização
como o seu modo preponderante e mais peculiar de actuação, em detrimento ao uso
da demonstração. Muito embora, em vários momentos as duas formas tivessem sido
utilizadas, conjuntamente e de modo complementar. Descrever a prestação ou
informar ao jovem a forma como ele realizou, assim como prescrever o
comportamento desejado, é outro ponto característico do treinador,
principalmente para os conteúdos técnicos. Porém, levar os jovens a “pensar”
por meio de formas “interrogativas” para não ser apenas “um receptor de
mensagens e de ideias” é marcadamente o objectivo fundamental deste treinador
O incentivo à reflexão e a participação consciente do jovem na aprendizagem
revela, em um primeiro momento, a valorização deste treinador ao processo de
mediação do jovem na construção do próprio conhecimento. Num segundo momento, a
preocupação de provocar nele um processo de pensamento convergente para a
descoberta de um conceito ou princípio previamente estabelecido. No caso
particular de Fernando, a pretensão foi de “induzir” os jovens ao seu modelo de
jogo, ou seja, um comportamento de instrução que se aproxima do estilo de
ensino por descoberta guiada ou convergente, na qual a aprendizagem se
manifesta a partir de respostas específicas e correctas sobre o conteúdo,
decorrentes de um processo e sequência de questionamentos orientados pelo
professor(48, 49). No treino do jogo, esta estratégia está associada aos
modelos de ensino de base construtivista e modelos de ensino para a
compreensão, na qual o praticante é confrontado com situações problema
(tácticas) e é incitado a resolvê-las. Os debates, as discussões e os
questionamentos remetem à aprendizagem por compreensão dos conceitos tácticos,
levando à acções mais conscientes durante o jogo(11, 26, 36, 48, 67).
O treino baseado na busca da participação activa do jovem é um indício marcante
no trabalho de Fernando em direcção à abordagem construtivista(56). Após
revisão bibliográfica sobre a temática do construtivismo, Chen e Rovegno(18)
incluem a aprendizagem activa como um dos elementos centrais desta abordagem e
destacaram, em estudo no ensino da Educação Física elementar, que professores
experts facilitavam a auto-responsabilização e auto-regulação por engajamento
dos alunos em actividades de resolução de problemas, guiando-os ao pensamento
crítico sobre a qualidade do movimento e percepção de seus próprios limites na
construção do próprio conhecimento.
O uso frequente de procedimentos de questionamento deste treinador,
direccionados individualmente para cada jovem a partir do envolvimento pessoal,
bem como a utilização do primeiro nome fornecem indícios de que ele reconhece a
aprendizagem como um processo individualizado, típico do construtivismo. Além
disso, representa também uma forma particular de manter a atenção e o
engajamento consciente dos jovens na prática das actividades.
A aprendizagem pela compreensão, no entendimento de Fernando, não se esgota no
treino da táctica, mas se estende ao treino de outros conteúdos, revelando a
sua concepção sobre aprendizagem. Da mesma forma, acredita que o conteúdo do
basquetebol não deve ser treinado isoladamente, sem relação com o contexto real
de jogo, cabendo ao treinador ressaltar a utilidade prática e imediata do
conteúdo. Este modelo de instrução, segundo Fernando, foi construído com o
passar do tempo e com a reflexão sobre sua experiência de prática profissional,
aliada a busca incessante para treinar mais e melhor.
As tarefas de aprendizagem
Na descrição das tarefas de aprendizagem, realizou-se uma adaptação do modelo
de Rink(55), relativamente à progressão e complexidade para os jogos de
invasão. Por outra parte, acredita-se que a utilização conjugada deste modelo
com o “gradiente de tipologias” de Cami(64) acrescenta clareza na análise das
modificações que Fernando implementou nas tarefas de aprendizagem.
A principal característica do treino de Fernando (Tabela 1) foi a utilização de
tarefas do tipo sintética (formas jogadas), evidenciando duas formas de
tratamento distintas. No primeiro conjunto de tarefas, nomeadamente aquelas
tarefas realizadas na primeira e segunda sessão de treino (1x2 e 2x3), houve
modificações mais significativas no planeamento do que nas tarefas da terceira
sessão de treino (1x1, 2x2 e 3x3). Nas primeiras tarefas, as modificações
criaram vantagens e desvantagens ao defensor: a) vantagem espacial, a medida em
que os jogadores iniciavam o exercício do mesmo ponto fixo na quadra e no mesmo
momento; b) desvantagem numérica, haja vista que havia um defensor e dois
atacantes (1x2).
Tabela 1. Tempo de exercitação nas tarefas de aprendizagem.
O primeiro tipo de modificação (espacial) permitiu ao jovem defensor (pelo
menos nos primeiros instantes do exercício) realizar a leitura da situação,
analisar as suas possibilidades de resposta em relação às acções do atacante e
orientar-se ou realizar o ajustamento corporal mais adequado para acompanhar,
em deslocamento defensivo, o atacante sem bola. Por outro lado, a condição de
desvantagem numérica para o defensor foi amenizada dado que o atacante com a
posse da bola estava fixo em um ponto da quadra (atacante parado). Nestas
circunstâncias, considera-se que o nível de complexidade de decisão e execução
se manteve facilitado, em virtude do menor nível de exigência aos processos
perceptivos do jovem defensor.
O segundo grupo de tarefas sintéticas (1x1, 2x2 e 3x3), utilizadas
especificamente na 3ª sessão de treino, distingue-se do primeiro grupo porque
as situações de treino se mantiveram mais próximas do jogo formal. Foram
preservados os elementos da estrutura formal do basquetebol, bem como as
relações entre estes elementos, inserindo o jovem praticante em um contexto de
prática sensivelmente mais complexo, ao nível perceptivo, decisório e de
execução.
Considera-se que as relações cruciais no contexto de jogo são aquelas que se
estabelecem entre os jogadores (defensores e atacantes; cooperantes e
opositores) na medida em que estes (jogadores) são referenciais móveis e
activos no jogo, diferentemente de outros elementos estruturais, como campo e a
cesta. Esta condição móvel e activa requer do praticante não só uma capacidade
de decisão e execução, mas sobretudo um nível mais acurado de percepção.
O fornecimento de uma quantidade elevada de informações aos jogadores
inexperientes ou com nível elementar de prática, de acordo com Tavares (61,
62), dificulta de sobremaneira a obtenção de decisões e respostas mais
ajustadas às circunstâncias do jogo. Por consequência, cabe ao treinador
elaborar propostas pedagógicas que graduem a quantidade e velocidade de
fornecimento destas informações de modo a reduzir a complexidade do
processamento.
Ainda, no segundo grupo de tarefas, as modificações estiveram mais a cargo das
características próprias das formas de jogo reduzido. No caso das tarefas de um
contra um (1x1), o jogador defensor viu a complexidade aumentada com exigência
de defender um espaço maior (meia quadra). O jogador deveria decidir o que
fazer e como fazer em um leque de várias acções possíveis, sujeitas a acção
livre ou activa do atacante e dependente do seu nível ou qualidade de
percepção. Ademais, havia por parte do treinador a tentativa de induzir o jovem
defensor ao conceito defensivo proposto.
Durante o treino em situação (1x1), Fernando acrescentou uma regra que
estimulava a emulação e o esforço, ao mesmo tempo que exigia mais rigor em
relação às regras de jogo. Esta iniciativa compreendeu uma tentativa externa
para aumentar o interesse e o engajamento individual dos jovens. A regra
imposta consistia em premiar o atacante que convertesse uma cesta, adquirindo o
direito de realizar mais um ataque na outra metade da quadra. De modo
semelhante, o defensor ao obter a posse da bola realizaria o próximo ataque.
A modificação “quem faz cesta, continua atacando” voltou a ocorrer somente na
tarefa de (3x3), mantendo as limitações do exercício a cargo apenas da própria
característica da atividade sintética/forma básica de jogo. Acredita-se que a
avaliação positiva do treinador daquela sessão de treino foi o principal motivo
pelo qual ele não realizou mais modificações nas tarefas. Com efeito, as
modificações foram maiores no primeiro grupo de tarefas e foram sendo menos
utilizadas nas situações de 2x2 e 3x3, em virtude de os jovens estarem a
corresponder mais adequadamente às demandas dos níveis de exigência da prática.
Sob a forma de jogo modificado, a tarefa do tipo global foi utilizada em três
sessões de treino. Na segunda e terceira sessão, elas serviram como actividades
de preparação com ênfase ao aspecto recreativo e de preparação orgânica.
Contudo, havia em sua estrutura alguns elementos ou conteúdo técnico e táctico
implícito.
Na quarta sessão, o jogo modificado tomou quase a totalidade do tempo de
treino. Foram actividades de 5x5 em uma metade da quadra, frequentemente
denominada de ataque contra defesa. Para Cami(64), este é um tipo de trabalho
global que opera adaptações a elementos estruturais do basquetebol,
nomeadamente o campo de jogo. Embora na tarefa se tenha um ataque activo e
organizado taticamente, com um conjunto múltiplo de decisões possíveis de serem
tomadas (mas não total como no jogo), as acções dos atacantes foram
completamente sob forma de ataque posicional sem as fases de transição de jogo.
Esta modificação altera o nível de imprevisibilidade do jogo e da velocidade do
ataque. Ainda, a exercitação do sistema táctico (exigido pelo treinador naquele
treino) favoreceu o processo perceptivo dos jovens defensores, à medida em que
esta pratica torna o ataque mais lento do que em um jogo formal. Os objetivos
deste tipo de tarefa na proposta de treino de Fernando eram de assegurar alguma
naturalidade ou “fluidez” para o conceito defensivo ensinado.
Por último, este treinador realizou o jogo formal de basquetebol sem
modificações. O objectivo era estabelecer uma situação real de competição entre
as duas equipes, contemplando a intensidade e a velocidade de execução
inerentes ao jogo. Contudo, suas intervenções verbais eram constantes quanto ao
controle dos conceitos de ataque e defesa que desejava implementar.
Considerações finais
A perspectiva do ensino dos jogos para a compreensão surgiu a partir de uma
proposta desenvolvida por Bunker e Thorpe(12) como alternativa metodológica ao
modelo tradicional de ensino, na qual a técnica é desenvolvida a partir de
tarefas rigidamente estruturadas fora do contexto natural de jogo(13, 36, 39,
41, 42). Ao longo dos anos, algumas contribuições teóricas têm proporcionado o
aperfeiçoamento do modelo e a ampliação dessa abordagem, sendo a compilação
elaborada por Metzler(48) a respeito dos modelos instrucionais uma referência
importante desta tendência(13).
Sobre este assunto, Metzler(48) recomenda que um modelo de instrução faz
referência a um coerente e compreensivo plano de ação que implica,
necessariamente, numa orientação teórica de base e em um conjunto próprio de
expectativas de decisões e ações para alunos e professores. No caso particular
da abordagem do ensino para a compreensão, ressaltou o predomínio do domínio
cognitivo e do conteúdo táctico, a estruturação das tarefas baseadas resolução
de problemas tácticos e também a busca constante do professor ou treinador pelo
engajamento e motivação do jovem.
No que diz respeito à orientação teórica de base, o construtivismo tem sido a
referência mais consistente para fundamentar o ensino para a compreensão(19,
36, 48, 56). De fato, o construtivismo não é propriamente uma teoria, mas um
conjunto de teorias de conhecimento e aprendizagem que compartilham princípios
e que, por meio da criação de uma “concepção construtivista”, busca fornecer
subsídios para a resolução de situações de ensino e aprendizagem(56, 60).
A concepção de treino para compreensão é visualizada no treinador investigado a
partir da sua valorização aos processos mediadores de aprendizagem. A
preocupação constante deste treinador para manter a atenção dos jovens durante
o processo de instrução, muitas vezes utilizando procedimentos de
questionamento (interrogando), outras vezes criando situações de debate, remete
ao princípio da participação consciente e activa na aprendizagem. Acredita-se
que estas situações configuram-se em uma tentativa de desenvolver um tipo de
pensamento na acção, que permita ao jovem compreender ou apropriar-se do
conhecimento. A aprendizagem nesta perspectiva implica reconhecer que uma
pessoa aprende quando é capaz de utilizar-se do que sabe ou do que aprendeu, em
circunstâncias variadas, de forma flexível e autónoma, obtendo um nível
satisfatório de sucesso(53, 54).
Um aspecto a destacar é que, no caso particular do treino do basquetebol, a
ideia de acrescentar à compreensão o factor desempenho ou de transformação do
conhecimento, parece ser o tipo de aprendizagem mais adequada para agir em um
contexto instável e imprevisível, como se constata nos jogos desportivos
colectivos. Além de atribuir significado, explicar, relacionar e repetir, é
necessário aplicar e acrescentar um saber fazer coerente e convincente.
Outra evidência da aproximação do trabalho do treinador investigado ao ensino
para a compreensão está na forma como o conteúdo foi organizado (conhecimento
curricular) e na estruturação das tarefas (estratégias). Relativamente ao
primeiro ponto, notou-se que o treinador partiu de uma situação na qual o jogo
(o todo) foi privilegiado e, a partir do qual decorreu a selecção e o treino
dos demais conteúdos (partes). Em termos práticos, verificou-se a subordinação
dos conteúdos técnicos e da táctica individual aos princípios de jogo colectivo
de ataque e defesa. Além disso, o treino dos conteúdos técnicos ou da táctica
individual só se justificava ou tinha significado à medida que era aludido ao
modelo de jogo almejado.
As tarefas utilizadas, preponderantemente do tipo sintético e global,
evidenciam por sua vez a tentativa do treinador investigado de promover uma
interacção activa do jovem com um meio ou contexto de jogo, globalmente
preservado e tipicamente complexo. A aprendizagem levada a cabo deste modo,
mesmo que por meio de situações de jogo reduzidas, permitia ao jovem perceber
um pouco as relações que se estabelecem no jogo e as consequências recíprocas
das suas acções e decisões nos demais elementos. Nas tarefas realizadas, o
jovem passou a actuar numa “via de mão dupla”, por um lado aprendia sobre a
realidade do jogo e, por outro lado, era capaz de modificar a sua acção e de
outros, configurando um processo de interacção e mudanças constantes.