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EuPTCVHe1646-21222014000100003

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National varietyEu
Year2014
SourceScielo

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de Charcot: Uma visão actual da neuroartropatia de Charcot

INTRODUÇÃO A neuroartropatia de Charcot (NAC) é uma deformidade óssea e articular do neuropático, em que a arquitectura e a organização estrutural dos ossos estão alteradas, apresentando alterações radiográficas caracterizadas por destruição e remodelação óssea, destruição articular, subluxação e luxação1-4.

Apesar de reconhecer que foi Mitchell o primeiro médico a descrever a destruição osteoarticular associada à disfunção neurológica, foi Charcot que em 1868, fez a primeira descrição histopatológica detalhada das alterações presentes na Tabes Dorsalis. Em 1881, Paget, num congresso médico internacional em Londres, sugeriu a definição doença de Charcot para esta entidade patológica detentora de várias definições4, 5, 6, 7.

Apesar da Diabetes ser actualmente a principal causa de NAC em todo o mundo, em 1936, esta patologia foi pela primeira vez descrita como uma complicação da Diabetes1,2,5,6.

Embora seja reconhecida mais de 300 anos, a NAC continua a ser uma entidade complexa e difícil no que toca ao seu diagnóstico e tratamento. Os profissionais de saúde devem estar, por isso, atentos a esta patologia dada a tendência crescente da Diabetes e das suas complicações5.

O objectivo deste trabalho centrou-se na revisão bibliográfica da NAC a fim de reunir os conhecimentos mais recentes nas várias dimensões desta patologia, nomeadamente epidemiologia, patogénese, apresentação clínica, diagnóstico e formas de classificação.

EPIDEMIOLOGIA A NAC apresenta-se frequentemente sem aviso e pode rapidamente deteriorar-se numa deformidade grave e irreversível do que pode conduzir à ulceração e amputação4,5.

A incidência e prevalência da NAC permanecem desconhecidas devido à dificuldade e ao atraso no diagnóstico decorrentes da inexistência de critérios de diagnóstico clínicos e radiológicos estandardizados6. No entanto, a prevalência relatada oscila entre 0,1 a 0,46,8.

A incidência desta patologia tem aumentado devido, em parte, à melhoria dos métodos de imagem e ao menor número de amputações9.

A NAC é uma complicação complexa da Diabetes que está presente em cerca de 0,8- 8% dos diabéticos e em 10% dos diabéticos com neuropatia e alterações radiográficas associadas9,10.

A incidência e prevalência do de Charcot diferem entre pacientes diabéticos tipo-l e tipo-ll. Pacientes com Diabetes tipo-l apresentam alterações típicas do de Charcot em idades mais jovens e têm maior predisposição para desenvolver a patologia que os diabéticos tipo-ll11.

Esta grave complicação da Diabetes reduz a qualidade de vida e aumenta a morbilidade e mortalidade dos pacientes12.

O de Charcot surge habitualmente na quinta ou sexta década de vida, após cerca de 10 anos do surgimento da Diabetes6.

Apesar de actualmente a Diabetes ser a principal causa de NAC, esta pode surgir associada a hábitos etílicos marcados, siringomielia, neurosífilis, lepra e outras patologias neurológicas4, 6, 9,12, 13.

A NAC atinge igualmente ambos os sexos e apresenta-se habitualmente de forma assimétrica9.

PATOGÉNESE O mecanismo exato da patogénese da NAC ainda não está estabelecido14.

Duas teorias tentam explicar a sua patogénese: a teoria Neurotraumática (Alemã) e a Neurovascular (Francesa). Considera-se, no presente, que ambas as teorias poderão ter um papel importante na patogénese da NAC1,4,5,6.

Segundo a teoria neurotraumática a destruição óssea deve-se à perda sensitiva associada aos repetitivos traumas mecânicos do . O trauma imperceptível combinado com a sustentação do peso no membro afectado causará fracturas e destruição articular características desta patologia6.

Por outro lado, na teoria neurovascular, a destruição articular será causada por um reflexo vascular secundário a uma desregulação neurológica autónoma (simpatectomia) que vai causar hiperemia e osteopenia periarticular através da activação de osteoclastos, o que facilita a ocorrência de fracturas com o trauma6, 15, 16.

A neuropatia autonómica resulta numa osteopenia que associada à perda de sensação protectora causada pela neuropatia sensitiva, predispõe à destruição óssea ocorrida durante a marcha, pois o paciente não se apercebe do trauma. A NAC resulta assim deste ciclo vicioso em que o paciente continua a caminhar no doente permitindo o aparecimento de mais lesões16,17.

De referir que a resultante disfunção dos músculos intrínsecos do origina sobrecarga em determinadas áreas, levando ao surgimento de microfracturas, laxidez dos ligamentos e à progressão para a destruição óssea16,17.

Também as citoquinas pró-inflamatórias parecem ter um importante papel na patogénese do de Charcot. A resposta inflamatória causada pelo trauma no originaria um desequilíbrio na regulação da citoquina RANK-L, responsável pela activação dos osteoclastos, originando osteopenia, osteólise e mediocalcinose das artérias do tornozelo5, 6,14,16-20. A figura_1 demonstra o mecanismo explicativo da patogénese da NAC.

Figura_1

APRESENTAÇÃO CLÍNICA E DIAGNÓSTICO Clinicamente a artropatia de Charcot pode-se apresentar sob duas formas, a fase aguda e a fase crónica6.

O diagnóstico da NAC aguda é predominantemente clínico e deve-se suspeitar desta entidade patológica na presença de um com sinais sugestivos de inflamação, na ausência de febre e de uma porta de entrada visível, como feridas interdigitais ou úlceras plantares6,23,24.

O de Charcot agudo apresenta-se com hiperemia, edema, elevação de temperatura superior a 2 graus quando comparado com o outro , pele muito seca e neuropatia sensitiva. A sensibilidade proprioceptiva e os reflexos estão diminuídos ou ausentes. A dor pode estar presente em graus variáveis ou mesmo ausente, dependendo do grau de disfunção nervosa. Os pulsos arteriais do atingido estão mantidos ou mesmo aumentados decorrente da vasodilatação periférica característica da NAC21-24.

A apresentação aguda da NAC pode mimetizar uma crise de gota, TVP ou celulite, daí a importância do doseamento de determinados parâmetros serológicos, como a PCR e o ácido úrico, e da imagiologia na distinção destas diferentes entidades patológicas6,7.

O diagnóstico clínico da fase aguda é difícil e a radiografia muitas vezes não consegue identificar ou distinguir esta entidade de outras condições, falhando o diagnóstico de fratura e/ou luxação. Por sua vez, a cintigrafia óssea com radioisótopo tecnésio apresenta boa sensibilidade e baixa especificidade para esta patologia. É de salientar, contudo, que apenas a ressonância magnética (RMN) é capaz de revelar, com maior pormenor, a natureza do dano e da inflamação óssea e dos tecidos moles adjacentes (edema da medula óssea subcondral com ou sem microfracturas). A RMN é, assim, particularmente útil nos primeiros estadios da doença, verificando-se uma correlação significativa entre a intensidade do edema da medula óssea e determinados parâmetros clínicos, como o edema das partes moles e a dor6, 7, 25.

O diagnóstico da NAC aguda é, portanto, baseado na história e no exame clínico mas deve ser confirmado através de métodos de imagem. A Radiografia do deve ser o primeiro exame de imagem a ser realizado a fim de verificar a ocorrência de fraturas ou subluxações subtis. Quando apesar da suspeição clínica, a Radiografia do é aparentemente normal, a RMN e a imagiologia nuclear podem, algumas vezes, confirmar o diagnóstico7.

É de realçar que o atraso no diagnóstico correto da NAC aguda apresenta consequências graves, na medida em que o paciente ao continuar a fazer carga no afetado irá aumentar a destruição óssea e o surgimento de deformidades no características da fase crónica22-24,26.

Na fase crónica da NAC, o não apresenta sinais inflamatórios, embora o edema permaneça. Nesta fase existe deformidade do devido à diminuição do arco plantar e ao equinismo causado pelo encurtamento do tendão de Aquiles. Estas deformidades resultantes do atingimento osteoarticular e muscular originam locais de hiperpressão e aumentam a probabilidade de ocorrência de úlceras e amputação, em simbiose com a isquemia característica desta fase15,22,27,28.

CLASSIFICAÇÃO Têm sido propostos diferentes sistemas de classificação para a NAC, sendo a classificação anatómica de Sanders-Frykberg uma das mais populares. A NAC pode ser classificada segundo vários parâmetros como por exemplo o estadio clínico, a localização anatómica e o estadio da história natural da doença. As classificações existentes não têm valor prognóstico nem influenciam o tratamento4-6.

Classificação Clínica Clinicamente a NAC pode ser dividida no estadio agudo ou crónico. Na fase aguda ou activa o apresenta sinais inflamatórios marcados (rubor, edema e calor) atingindo mais frequentemente o mediopé. A dor pode estar ausente, dependendo do grau de neuropatia. Neste estadio o não apresenta deformidades e a imagiologia é tipicamente normal5, 6.

Por outro lado, na fase crónica ou inactiva, os sinais inflamatórios locais regridem progressivamente, permanecendo, no entanto, o ruborizado mas com temperatura semelhante à do contralateral. É nesta fase que o pode desenvolver deformidades características como colapso do arco plantar no mediopé, originando a "deformidade rocker-bottom" e a convexidade medial do mediopé5,6.

Classificação Anatómica Vários autores propuseram classificações anatómicas da NAC de acordo com os padrões de atingimento do e tornozelo, pois embora esta doença tenha sido verificada em outras localizações corporais, no paciente diabético esta afeta quase exclusivamente o e o tornozelo3.

Em 1991 Sanders e Frykberg propuseram a classificação anatómica da NAC mais usada actualmente. Segundo esta classificação, a NAC pode ser dividida em cinco padrões diferentes de acordo com as articulações envolvidas3,5,7 (Figura_2).

O tipo I presente em 15% dos pés com NAC, atinge as articulações metatarsofalângicas e interfalângicas do . O tipo II, o mais comum, responsável por 40% dos pés de Charcot, atinge as articulações tarsometatársicas ou articulação de Lisfranc. O segundo padrão mais comum, o tipo III, presente em 30% da NAC, caracteriza-se por um atingimento das articulações naviculocuneiforme, talonavicular e calcaneocubóide. O padrão tipo IV (10%) atinge as articulações do tornozelo e a subtalar. Por último, o tipo V, presente em 5%, afecta a região do calcâneo. Os tipos IV e V apresentam mau prognóstico devido à anómala distribuição da carga durante a marcha3,5,7.

A classificação anatómica de Sanders e Frykberg é apresentada na Tabela_1.

Existe ainda uma classificação anatómica mais simplista que caracteriza esta entidade em 3 tipos diferentes de acordo com a localização do atingimento do : antepé (articulações metatarsofalângicas e interfalângicas), mediopé (articulações do tarso e tarsometatársicas) e retropé (articulação do tornozelo e calcâneo)10.

Também Dounis classificou a NAC em três tipos distintos. O tipo I atinge o antepé, o tipo II o mediopé e o tipo III causa instabilidade severa ao atingir o retropé. O tipo III subdivide-se em tipo IIIa( se atinge o tornozelo), tipo IIIb( se atinge a articulação subtalar) e o tipo IIIc( se reabsorção do talus e/ou calcâneo)10.

A distribuição da doença pode também ser descrita usando a classificação de Brodsky (Tabela_2). A NAC geralmente inicia-se na região tarsometatarsal, apesar de poder ser vista na articulação mediotársica, tornozelo ou nas fraturas patológicas do calcâneo7.

Classificação de Roger Roger propôs uma classificação que considera a presença de complicações que podem ocorrer na NAC, como a presença de deformidades, ulceração e osteomielite, e que poderá ser útil na previsão da necessidade de amputação (Gráfico_1). Esta classificação é constituída por dois eixos (XY) e combina as características do exame clínico, radiográfico e anatómico. O eixo X marca a localização anatómica do e tornozelo atingido e é dividido em três regiões: antepé, mediopé e retropé/tornozelo. O eixo Y descreve o grau de complicação presente: A indica NAC aguda sem deformidade, B representa um de Charcot com deformidade; C representa um com deformidade e ulceração e D inclui osteomielite. Assim, movendo-se através do eixo X (envolvimento anatómico) e / ou para baixo, o eixo Y (factores complicadores) a NAC torna-se " mais complicada " e portanto, maior risco de amputação7,23,27.

Classificação baseada na história natural da doença Em 1966 Eichenholtz propôs uma classificação que correlacionava os achados clínicos com os achados radiográficos, baseando-se na aparência radiográfica da NAC e no seu curso fisiológico. A classificação de Eichenholtz divide a NAC em 3 fases distintas e lineares: desenvolvimento, coalescência e consolidação. No  estadio I (desenvolvimento da doença) existe eritema, edema e aumento da temperatura; a radiografia do é normal, mas pode existir debris ósseos nas articulações, fragmentação óssea subcondral, subluxação ou fratura4-6. No estadio II ocorre a diminuição gradual dos sinais inflamatórios e a doença torna-se mais evidente ao nível radiológico (ocorre reabsorção dos debris ósseos com nova formação óssea e esclerose). No estadio III (consolidação da doença), não sinais inflamatórios e radiograficamente verifica-se remodelação dos ossos e articulações afectados. É durante esta fase que as deformidades podem alterar a arquitetura do , predispondo à ulceração6.

Em 1990 foi proposta uma adaptação à classificação de Eichenholtz a qual incluía uma fase anterior à fase de desenvolvimento, o denominado Estadio 0 ou fase inflamatória (Tabela_3). Segundo esta classificação, a NAC inicia-se com um trauma não perceptível decorrente da neuropatia, originando um com sinais inflamatórios, muitas vezes confundido com celulite, gota ou TVP. Esta fase pode preceder o surgimento das alterações radiográficas em até um ano e pode ser detectada através da RMN. As lesões cumulativas podem evoluir para graves deformidades do , ulceração e amputação. A identificação desta fase prodrómica pode impedir a progressão para as últimas fases da NAC prevenindo mais deformidades e complicações4, 5, 29, 30.

CONCLUSÃO A síndrome da NAC é uma complicação importante resultante da diabetes e da neuropatia. O mecanismo exato da sua patogénese ainda não está esclarecido apesar de considerar-se, no presente, que quer a teoria neurotraumática quer a neurovascular poderão ter um papel importante.

Apesar de esta condição ser considerada uma das complicações importantes da Diabetes, esta é identificada apenas numa pequena percentagem de Diabéticos.

Devido ao atraso no diagnóstico e tratamento da NAC esta progride para a formação de úlceras, aumentando assim o risco de amputação, daí a importância de um diagnóstico e tratamento precoce.

Embora vários autores tenham apresentado diferentes sistemas de classificação com alguma importância clínica, estes não possuem valor prognóstico nem influenciam o tratamento.

Trata-se de uma neuroartropatia com consequências individuais e sociais importantes, que estando predominantemente associada à epidemia da Diabetes, merece especial atenção a fim de diagnosticarmos e tratarmos precocemente esta complicação decorrente deste grave problema de saúde pública.


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