Tratamento artroscópico da condromatose sinovial primária da anca
INTRODUÇÃO
A condromatose sinovial primária ou osteocondromatose é uma patologia benigna,
rara, autolimitada, de causa desconhecida1,2,3,4. Histologicamente observa-se
uma metaplasia das células mesenquimatosas da sinovial1,2,3,5.
Macroscopicamente é caracterizada pela formação de nódulos cartilagíneos
sesséis ou pediculados pela membrana sinovial1. Os nódulos podem libertar-se,
formando corpos livres que podem ossificar, levando à degradação progressiva da
cartilagem articular através da fricção mecânica resultante2.
Esta entidade geralmente afecta as articulações, mas existem casos extra-
articulares descritos na literatura, nomeadamente com acometimento de bainhas
tendinosas ou bursas2,6. É uma patologia principalmente monoarticular,
envolvendo preferencialmente o joelho, seguindo-se a anca, tornozelo e
cotovelo, por ordem de frequência2,7,8,9.
Na sua forma secundária, os corpos livres originam-se como consequência da
osteoartrose primária ou secundária1,10.
A classificação de Milgram utiliza 3 estadios: estadio I (doença activa),
sinovial produtora de condromas, mas sem corpos livres; estadio II (doença
activa), sinovial produtora de condromas, com corpos livres; estadio III
(doença não activa), existem corpos livres, mas não há formação de condromas
pela sinovial1,7.
Ocorre sobretudo em pacientes entre os 20 e os 40 anos, havendo um ligeiro
predomínio pelo sexo masculino, apesar dos trabalhos mais recentes demonstrarem
que o predomínio é pelo sexo feminino1,3.
Os sintomas são insidiosos e não específicos, sendo os mais comuns a presença
de dor na anca, particularmente inguinal e limitação da amplitude de
movimentos1,2. Menos frequentemente cursa com crepitação ou bloqueio
articular1.
O primeiro exame complementar de diagnostico (ECD) a ser solicitado na suspeita
desta entidade é a radiografia, particularmente as incidências antero-posterior
da bacia centrada na sínfise púbica e a axial de Dunn ou "cross-table
lateral", seguindo-se usualmente a ressonância magnética (RM)1,2.
Contudo, os condromas não ossificados são de difícil detecção, inclusivamente
na RM1,2,11. Alguns autores mencionam taxas de não detecção de condromas nestes
exames de 18 a 48%1,11. Não obstante o achado radiográfico mais frequente serem
as calcificações intra-articulares2. O alargamento do espaço intra-articular na
anca pode ocorrer, e segundo um trabalho recente está presente em cerca de 57%
dos casos2. Apesar de ser comum na articulação temporo-mandibular acometida
pela condromatose sinovial, existe pouca informação sobre a existência do mesmo
achado na anca2,12-15. Inicialmente justificava-se o aumento do espaço intra-
articular pela presença de corpos livres interpostos, contudo existem vários
relatos de persistência deste alargamento após remoção dos fragmentos2,16.
Outras características radiográficas que podem ser encontradas são erosão
óssea, imagem se subtracção óssea a nível do colo, osteopenia justa-articular e
numa fase final esclerose, osteofitos e diminuição da interlinha
articular2,9,17,18. A TC apesar de não um dos exames de primeira linha pode
revelar a presença de fragmentos, principalmente se forem ósseos.
Apesar do diagnóstico precoce desta entidade ser considerado crucial para a
manutenção de uma anca saudável, não é invulgar o atraso no diagnóstico e
consequentemente no tratamento, motivado pela clínica não especifica e ECD
negativos1,2. Zini R et al e Lin RC et al revelaram nos seus trabalhos um tempo
médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico entre 30 a 38 meses1,19.
O tratamento de escolha é o cirúrgico, a opção pela não remoção de fragmentos
intra-articulares está associada a um mau prognóstico, nomeadamente a evolução
para a osteoartrose precoce da anca1,3,20,21. A opção cirúrgica pode ser
artroscópica ou aberta. A primeira permite a realização de um adequado
desbridamento, sinovectomia e remoção de corpos livres com uma abordagem menos
invasiva, embora com acesso muito limitado a porção posterior da articulação. A
segunda é mais agressiva, necessitando de artrotomia da anca, sujeita a um
maior risco de complicações intra e pós-operatórias, incluindo o risco de
compromisso da perfusão da epífise femoral, mas por outro lado permite um
acesso a todas as áreas do compartimento periférico da
articulação1,3,11,19,22,23. Esta associada a um maior tempo de internamento e a
uma reabilitação prolongada1,3,11,19,22,23. Ainda não existe consenso sobre
qual a melhor opção cirúrgica, não obstante trabalhos recentes têm mostrado
bons resultados com o tratamento artroscópico1,3.
CASO CLÍNICO
Paciente de 32 anos de idade, sexo feminino, raça caucasiana, referenciada a
consulta de patologia da anca por colega de outro hospital. Referia dor
inguinal esquerda com 3 anos de evolução, sem história traumática prévia. A dor
ocorria sobretudo quando permanecia muito tempo sentada, a entrar e a sair do
carro e a calçar meias. Negava limitação da mobilidade, crepitação, bloqueio
articular ou rigidez. No último ano apresentou agravamento progressivo das
queixas. Antecedentes pessoais irrelevantes.
No exame objectivo observou-se uma flexão limitada aos 90º, rotação interna de
0º e rotação externa de 10º. FADIR e FABER positivos, "Log roll"
despertava dor com a rotação interna. O "Non-arthritic hip score"
(NAHS) pré-operatório era de 56,25.
Na radiografia em incidência antero-posterior da bacia era possível observar
uma flexão pélvica acentuada, o que condicionava uma falsa proeminência das
espinhas isquiáticas e secundariamente uma retroversão focal (Figura_1_A).
Também apresentava uma pequena perda de "offset" do colo à esquerda
(Figura_1_A). Outros aspectos merecedores de atenção eram uma imagem de elevada
densidade na fóvea (Figura_1_B) e o aumento da interlinha articular à esquerda
(Figura_1_C). Na incidência de "cross table lateral" da anca
esquerda também era possível observar a perda de "offset" do colo,
apresentando um ângulo alpha de 69,3º (Figura_2). Nenhuma das incidências
apresentava imagens características de condromatose sinovial. A paciente também
trazia uma TC que revelava um "herniation pit" provavelmente
relacionado com o conflito femoro-acetabular tipo CAM (Figura_3_A) e duas
imagens invulgares na fóvea, compatíveis com corpos livres, mas sem origem
identificável (Figura_3_B). A artro-RM apresentava uma volumosa sinovite na
ponderação em T1 (Figura_4_A) e um aspecto heterogéneo em T2 (Figura_4_B), que
se mantinham nos restantes cortes e que poderiam ser sugestivos de corpos
livres (Figura_4_C,_D,_E). Sem outras imagens sugestivas de lesão labral ou
cartilagínea.
Figura_1
A hipótese diagnóstica colocada foi de condromatose sinovial primária. Desta
forma a paciente foi proposta para artroscopia da anca com carácter diagnóstico
e terapêutico. Iniciámos o procedimento pelo compartimento central utilizando o
portal antero-lateral (visualização e trabalho) e médio-anterior (visualiazação
e trabalho) sendo possível observar vários condromas no fundo acetabular
(Figura_5A). Posteriormente realizou-se o portal póstero-lateral com intuito de
assegurar a remoção de todos os corpos livres da porção posterior do
compartimento central (Figura_5B). No compartimento periférico procedeu-se à
libertação e remoção dos condromas aderentes à sinovial (Figura_5C). Para
melhorar o acesso à porção antero-inferior do colo femoral tivemos necessidade
de realizar o portal anterior, com intuito de remover o maior número possível
de condromas (Figura_5_D,_E). O objectivo final foi a remoção de todos os
condromas identificáveis (Figura_5_F,_G). Constatou-se um labrum degenerado,
mas estável (Figura_6_A) e uma cartilagem acetabular com lesões grau II de
Outerbridge (Figura_6_B). De seguida procedeu-se a osteoplastia femoral (Figura
6_C). O exame histológico confirmou o diagnóstico.
No seguimento pós-operatório observou-se uma melhoria clínica progressiva. O
NAHS aos 3 meses era de 73,75 e aos 6 e 12 meses de 87,5. De momento, a
paciente não apresenta qualquer recidiva da sintomatologia prévia. De ressalvar
a persistência do aumento da interlinha articular (Figura_7).
DISCUSSÃO
O diagnóstico da condromatose sinovial é muitas vezes difícil. Talvez por isso
alguns trabalhos publicados tenham apresentados tempos médios de 2,5 a 3 anos
até ao diagnóstico1,19. A verdade é que tendo em conta a idade em que
normalmente os pacientes são acometidos por esta patologia, é imperioso o
diagnóstico precoce de forma a evitar a degeneração da cartilagem e o mau
prognóstico1. Contudo nesta faixa etária é sempre imperioso o diagnóstico
diferencial com outras patologias mais frequentes, como o conflito femoro-
acetabular, a doença displásica da anca e a patologia inflamatória.
Zini R et al realizaram 11 artroscopias da anca em doentes com condromatose
sinovial e observaram 82% de bons e excelentes resultados segundo o
"Harris Hip Score", com um seguimento médio de 22 meses1. Boyer3 e
Marchie et al11 encontraram 57 e 48% de bons ou excelentes resultados, com um
seguimento médio de 78,6 e 60 meses, respectivamente. Estes autores referem
recorrência entre 0-21% e taxas de conversão para artroplastia total da anca
entre os 9-20%1,3,11. Os autores correlacionaram as lesões condrais encontradas
com a necessidade de artroplastia total da anca, sublinhando a importância do
diagnostico e tratamento precoce de forma a atrasar ou mesmo evitar a
artrose3,11.
Lin19 e Schoeninger et al23 utilizaram a cirurgia aberta e apresentaram
recorrência entre 0-15%, de acordo com o procedimento (artrotomia isolada vs
luxação cirúrgica da anca) e uma taxa de conversão para artroplastia de 25%.
Por todos os motivos já mencionados, o tratamento de escolha desta entidade é a
remoção dos condromas, apresentando bons resultados, sobretudo quando o
diagnóstico é atempado1,3,5,19,22,23. Hoje já não é recomendada a associação da
sinovectomia, inclusivamente na fase activa da classificação de Milgram1,8,19.
Contudo, os pacientes devem ser informados da possibilidade de recidiva da
doença, que segundo Lin RC et al e Zini R et al se encontra entre 7 a 23% dos
casos1,19.
A artroscopia tem ganho popularidade no tratamento desta entidade em detrimento
da cirurgia aberta, porque é menos agressiva, apresenta menor risco de
complicações, menor morbilidade, menor tempo de hospitalização, menor dor no
pós-operatório, recuperação mais rápida e regresso mais célere ao
trabalho1,3,24,25,26. Para além de todas as vantagens enumeradas, apresenta
outra vantagem a ter em linha de conta aquando da escolha do procedimento a
realizar (artroscopia/cirurgia aberta), que é a facilidade de realizar nova
intervenção em caso de recidiva da doença, incluindo outra artroscopia1.
Contudo este procedimento também apresenta desvantagens, nomeadamente áreas de
acesso impossível. No compartimento central, a área de superfície acessível
média é limitada a 68-75% da articulação27. A porção póstero-medial do
compartimento periférico também apresenta uma acessibilidade muito reduzida27.