Procedimento de Huntington no tratamento de grande defeito ósseo em
osteomielite da tíbia
INTRODUÇÃO
As grandes perdas ósseas, sobretudo quando associadas a infeção local,
constituem um desafio terapêutico importante. Cirurgias múltiplas, na tentativa
de obter a reconstrução osteoarticular e debelar a infeção, aumentam o risco de
recidiva e resultam frequentemente em defeitos ósseos extensos, podendo levar à
necessidade de amputação do membro. A transposição do perónio ipsilateral para
a tíbia foi realizada com sucesso pela primeira vez em 1903, por Huntington num
defeito de 12,7 cm numa criança de sete anos1. Subsequentemente, vários autores
utilizaram e descreveram técnicas semelhantes.
CASO CLÍNICO
Descreve-se o caso de uma criança de nove anos, do género feminino, raça negra,
natural de Moçambique, drepanocítica, órfã de pais HIV-positivos, com dor
referida à perna e ombro direitos com cerca de quatro semanas de evolução, a
que se associaram lesões pustulosas na face antero-interna da perna. Por ter
iniciado febre e drenagem espontânea, recorreu à consulta externa de ortopedia
infantil. À observação apresentava tumefação e calor a nível do ombro e perna,
fístulas com drenagem sero-purulenta, dor à mobilização passiva e ativa do
ombro, bem como à palpação da perna.
Analiticamente apresentava anemia (Hb 6,26 g/dL), leucocitose (19.20 x 103/µL),
neutrofilia (82.2%), velocidade de sedimentação de 120 mm/h. A pesquisa de
plasmodium e HIV foram negativos.
A radiografia simples do ombro direito apresentava alterações sugestivas de
osteomielite da extremidade proximal do úmero e dos dois terços proximais da
tíbia direita.
Foi internada com o diagnóstico de artrite séptica do ombro direito e
osteomielite crónica da tíbia ipsilateral. Realizou-se drenagem aspirativa de
exsudado purulento do ombro direito e antibioterapia intravenosa empírica com
cloxacilina e gentamicina. Registou-se melhoria clínica e laboratorial com
exame microbiológico inconclusivo, pelo que teve alta hospitalar medicada com
cloxacilina oral, cumprindo um total de sete semanas de antibioterapia.
Nas sucessivas consultas de seguimento verificou-se remissão total clínica e
imagiológica relativa ao ombro direito, mas recorrência da dor e exsudado
purulento a nível das fístulas da perna direita, com evidência de importante
sequestro ósseo. Por subsequente fratura patológica (Figura_1), foi readmitida
três meses após o primeiro internamento. Realizou-se limpeza cirúrgica e
sequestrectomia, resultando perda de um importante segmento da diáfise da tíbia
(Figura_2).
Após estabilização dos tecidos moles, com remissão da drenagem e sinais
inflamatórios locais, oito semanas após o último internamento foi submetida a
primeira fase do procedimento de Huntington com osteotomia proximal do perónio
e fixação tíbio-peronial a este nível (Figura_3 e 4A). Dez semanas depois
apresentava sinais de consolidação e procedeu-se à fixação tibio-peronial
distal. Clinicamente, aos seis meses após a última cirurgia, apresenta um
membro funcional, que permite carga e com alinhamento aceitável. Do ponto de
vista imagiológico apresenta consolidação tibio-peronial e remodelação do
perónio (Figura_4B).
DISCUSSÃO
As grandes perdas ósseas a nível da tíbia constituem um desafio terapêutico.
Neste contexto, diversas técnicas utilizando o perónio como enxerto têm sido
descritas. Uma dessas técnicas utiliza o perónio ipsilateral ou contralateral
como enxerto estrutural não vascularizado. Por este motivo, apresenta taxas de
complicações mais elevadas, nomeadamente fraturas e infeção2. Outras técnicas
utilizam perónio vascularizado, dissecando, isolando e mantendo a sua
vascularização, ou colhendo o enxerto e reanastomosando por microcirurgia.
Nestes casos deve ser realizado um estudo angiográfico pré-operatório3,4.
O procedimento de Huntington envolve a osteotomia do perónio ipsilateral e
respetiva mobilização medial com fixação à tíbia, com dissecção mínima e
mantendo a maioria das inserções musculares1. Estes aspetos permitem preservar
a sua vascularização, sem necessidade de recorrer a complexas técnicas de
microcirurgia, Desta forma, é promovida a consolidação, bem como a sua
integração com a reconstrução do defeito tibial a ser conseguida em oito de
onze doentes, num estudo de Kassab et al5.
No primeiro tempo é realizada exposição e decorticação da tíbia proximal,
desperiostização de cerca de 4 cm e osteotomia proximal do perónio. O perónio é
medialisado e fixado à tíbia proximal. É realizada imobilização cruropodálica
durante cerca de dez a doze semanas até ser obtida a consolidação proximal. No
segundo tempo é realizado um procedimento semelhante a nível da tíbia distal
(Figura_4A). É mantida a imobilização até se constatar consolidação distal,
após a qual se inicia carga parcial protegida com imobilização suropodálica
durante cerca de 6 a 8 semanas. Modificações ao método devem ser realizadas
caso a caso, em função do doente, do defeito ósseo, condições de partes moles
ou presença de infeção5,6.
A fixação da reconstrução é obtida recorrendo a parafusos para fixação tíbio-
peronial e imobilização gessada cruropodálica, que se encontram disponíveis em
qualquer instituição onde se realize cirurgia ortopédica6.
Algumas das desvantagens desta técnica são tratar-se de um procedimento
realizado em dois tempos e de, na eventualidade de não se obter consolidação, o
doente ficar com uma perna flácida, por perda do efeito estabilizador do
perónio intacto6.
Neste caso clínico é apresentada uma complicação da drepanocitose, uma
patologia frequente na África subsariana. A apresentação tardia, comum neste
contexto, tem como consequência um quadro mais exuberante que coloca um
verdadeiro desafio ao ortopedista. A técnica utilizada permitiu obter um
resultado muito satisfatório, com tratamento da infeção e restituição da função
do membro.
Este procedimento revelou-se uma solução eficaz na abordagem de uma situação
clínica complexa, sem necessidade de exames complementares de diagnóstico mais
dispendiosos, ou técnicas de microcirurgia disponíveis apenas em centros mais
diferenciados. Realça-se assim a sua utilidade no tratamento de grandes
defeitos ósseos de uma forma generalizada, mas sobretudo num contexto de
recursos limitados.