Prevalência do Síndrome de Frey após Parotidectomia
INTRODUÇÃO
O Síndrome de Frey, também conhecido por Síndrome Auriculo-Temporal,
caracteriza-se pela sensação de calor, eritema e sudorese da face no território
da glândula parótida. Este síndrome pode-se desenvolver após traumatismo,
infecção, parotidectomia ou cirurgia da articulação temporomandibular e é
iniciado por qualquer estímulo gustatório (degustar, conversar ou imaginar
alimentos). O eritema é mais comum nas mulheres enquanto a sudorese é mais
comum nos homens1-2.
Apesar da origem do epónimo do Síndrome Auriculo-Temporal se dever ao trabalho
da neurologista polaca Lucie Frey em 1923, a primeira descrição dos sintomas
deste síndrome aconteceu muitos anos antes. A primeira descrição é atribuída ao
relato de Baillarger em 1853 após drenagem de abcesso parotídeo, apesar da
patofisiologia estar incorrecta, pois Baillarger relacionava a sudorese com o
bloqueio do ducto de Stenon. Nos anos seguintes diversos autores como Rouyer,
Borwn-Séquard e Weber descreveram vários casos de Síndrome de Frey traumáticos
ou secundários a drenagens de abcessos. O epónimo deste síndrome foi atribuído
a Lucie Frey pelas suas contribuições importantes no reconhecimento da
inervação simpática e parassimpática da glândula parotídea, pela descoberta do
arco reflexo entre a sudorese e o nervo aurículo-temporal, e a constatação do
atraso temporal entre a lesão e o aparecimento do síndrome. Contudo a
explicação patofisiológica deste síndrome, que se baseia na teoria da
regeneração errónea entre os sistemas parassimpático e simpático, é atribuída a
André Thomas pela descrição publicada em 1927. O primeiro caso de Síndrome de
Frey após parotidectomia, que actualmente é a causa mais frequente deste
síndrome, foi descrito em 1932 por Peter Nassoe3.
A teoria actualmente aceite é a teoria da regeneração aberrante na qual fibras
parassimpáticas do nervo aurículo-temporal são lesadas durante a cirurgia e no
processo de regeneração estas fibras juntam-se às fibras simpáticas das
glândulas sudoríparas subcutâneas. Assim, o reflexo salivar que ocorre durante
a mastigação para além de induzir a produção de saliva também vai induzir a
sudorese e eritema da região parotídea. Os sintomas habitualmente aparecem seis
semanas a seis meses após a cirurgia, por causa do tempo necessário à
regeneração nervosa, mas podem demorar mais tempo estando descrito na
literatura casos que ocorreram 14 anos4.
A prevalência deste síndrome é altamente variável estando dependente da técnica
cirúrgica e do método de diagnóstico do Síndrome de Frey - inquérito vsteste de
Minor1. O teste de Minor, descrito pelo neurologista russo Victor Minor, é o
único método disponível para avaliar objectivamente a sudação dos doentes com
Síndrome de Frey5.
Diversos factores influenciam o aparecimento do Síndrome de Frey. Um desses
factores que se encontra bem definido na literatura é a espessura do retalho
cutâneo, um retalho mais espesso tem menor probabilidade de desenvolver o
síndrome6.
Estão descritas diversas técnicas de interposição de barreiras a fim de
prevenir a regeneração errónea das fibras parassimpáticas: retalho da fáscia
temporoparietal; rotação do sistema musculoaponeurótico superficial;
interposição do músculo esternocleidomastoideu e implantes sintéticos5-7. Os
trabalhos que estudaram estas técnicas mostram diminuição da incidência de
Síndrome de Frey6-7 mas, no entanto, o período de seguimento é curto e ainda
não está bem explícito se estas técnicas previnem ou se apenas atrasam a
regeneração nervosa6. Outra questão que ainda não está respondida é se estas
técnicas de interposição (naturais ou sintéticas) não poderão mascarar o
aparecimento de recorrência tumoral6. Outros trabalhos mostram que alguns
implantes sintéticos estão associados a aumento da incidência de fístulas
salivares5.
O objectivo principal do nosso trabalho é avaliar a incidência e a gravidade do
Síndrome de Frey nos doentes submetidos a parotidectomia pelos mesmos dois
cirurgiões da Unidade de Cabeça e Pescoço (UCP) de Cirurgia Geral do Hospital
de Braga.
Para complementar apresentamos os dados referentes à persistência de paralisia
do facial após a parotidectomia, relação entre a citologia da biópsia e a
histologia da peça cirúrgica e seguimento oncológico.
MATERIAL E MÉTODOS
Dos 42 doentes submetidos a parotidectomia desde a criação da UCP em Maio de
2005 foram excluídos nove doentes, tendo sido seleccionados para o estudo os
restantes 33 doentes. Em nenhum doente foram utilizadas técnicas de prevenção
do Síndrome de Frey, excepto a tentativa de conservar um retalho espesso (não
passível de avaliação por ser um estudo retrospectivo e este dado não constar
objectivamente nos relatos cirúrgicos).
Os critérios de exclusão foram: cirurgia há menos de três meses (três doentes),
doentes falecidos por causas não relacionados com patologia parotídea (quatro
doentes), re-intervenção por recidiva de tumor da parótida (um doente),
dificuldade em deslocar-se ao hospital por AVC (um doente).
A técnica cirúrgica utilizada para a realização da parotidectomia superficial
foi a seguinte: 1) desinfecção da pele com solução de iodopovidona (Betadine®
- Mundipharma, Basileia, Suíça); 2) infiltração de adrenalina diluída em
cloreto de sódio a 0,9% ao longo do local da incisão; 3) incisão cutânea
vertical pré-auricular prolongada posterior ao ângulo da mandíbula e depois ao
longo do ramo da mandíbula 2cm inferior (incisão de Blair modificada ou Lazy
S); 4) dissecção do retalho cutâneo anterior da cápsula da glândula parotídea
com o cuidado de manter sempre o retalho o mais espesso possível; 5)
identificação do tronco comum do nervo facial; 6) dissecção e preservação dos
ramos do nervo facial; 7) ressecção do lobo superficial da glândula parotídea
dissecado; 8) lavagem do campo cirúrgico com cloreto de sódio a 0,9%; 9)
revisão da hemostase; 10) colocação de dreno aspirativo; 11) aproximação do
tecido celular subcutâneo com com fio de poliglactina 3-0 (Vicryl® 3-0 -
Ethicon Inc, New Jersey, EUA); 12) encerramento da incisão cirúrgica com cola
biológica (Dermabond® - Ethicon Inc, New Jersey, EUA).
Os doentes foram convocados telefonicamente para compareceram no Hospital de
Braga entre 7 e 23 de Novembro de 2011. Às mulheres foi-lhes comunicado
previamente para comparecerem sem maquilhagem na face e aos homens para virem
sem barba. A estes doentes foi-lhes realizado uma entrevista clínica sobre
complicações pós-operatórias relacionadas com a parotidectomia e o grau de
interferência dessas complicações na sua vida diária. Foi-lhes aplicado o teste
de Minor para avaliação objectiva do Síndrome de Frey. Este teste não foi
aplicado a um doente por referir alergia à iodopovidona. A todos os doentes
foi-lhes pedido consentimento oral para a aplicação do questionário, para a
realização do teste de Minor e para a documentação fotográfica dos resultados.
O teste de Minor foi realizado com a aplicação de solução alcoólica de
iodopovidona a 7,5% (Braunol® - B. Braun Melsungen AG, Melsungen, Alemanha)
nas regiões massetérica, pré-auricular, pós-auricular e temporal, depois de a
solução ter secado na pele foi aplicado pó de amido. Foi oferecido ao doente
uma rodela de limão para ser mastigada durante aproximadamente um minuto.
Posteriormente foi observada a presença ou não de coloração azul-escura na face
do doente o que permitiria identificar os doentes com Síndrome de Frey. Este
teste foi aplicado bilateralmente a fim de utilizar o lado não operado como
controlo e assim poder excluir os falsos positivos. O teste de Minor foi
considerado como positivo quando ocorreu alteração na coloração do pó de amido
e negativo quando não ocorreu essa coloração. Os resultados positivos foram
fotografados após a colocação de uma régua junto da coloração para
posteriormente ser calculada a área através do programa Adobe Photoshop® CS4
(Adobe Systems Incorporated, São José, EUA).
A gravidade do Síndrome de Frey foi determinada de acordo com o modelo
desenhado por Luna-Ortiz e colaboradores (2003)1 e por uma escala numérica
contínua de 0-10 em que o valor "0" corresponde a inexistência de
percepção de sudação e "10" uma sudação tão excessiva que inibisse o
doente de ir jantar a casa dos pais/filhos.
RESULTADOS
Os doentes convocados para este estudo correspondem a 78,6% dos doentes
submetidos a parotidectomia pela UCP do Hospital de Braga. Os doentes
apresentam média de idade de 49 anos, sendo a maioria do sexo feminino (54.5%).
A maioria das intervenções foram parotidectomias superficiais (97,0%) com
lateralidade similar (direito 51,5%; esquerdo 48,5%) e tempo médio de cirurgia
de 84 minutos (mínimo 50 minutos; máximo 114 minutos).
A maioria dos doentes foi proposta para parotidectomia por diagnóstico
citológico de adenoma pleomórfico (66,7%), seguido de tumor de Warthin e lesão
cística (cada um com 9,1%) (gráfico_1). A histologia da peça cirúrgica mostrou
que 63,6% dos nódulos correspondiam a adenoma pleomórfico, 15,2% a tumor de
Warthin e 9,1% a carcinoma epidermóide (gráfico_2). O cruzamento destes dados
indica que houve concordância entre a biópsia e a histologia em 72,7% dos
doentes.
A avaliação realizada por anatomia patológica mostrou que o peso médio das
peças enviadas foi de 20 gramas (mínimo 8 gramas; máximo 46 gramas).
O período de seguimento oncológico variou entre 6 e 47 meses. Destes doentes,
apenas um apresentou recidiva ao fim de 42 meses.
Dos 33 doentes convocados, compareceram para avaliação no Hospital de Braga 27
doentes (81,8%), todos eles submetidos a parotidectomia superficial. Destes
doentes, 13 (48,1%) referiam uma ou mais alterações na face após a cirurgia,
sendo na sua maioria do sexo feminino (tabela_1). A maioria destas alterações
foram paralisias faciais temporárias (tabela_2) sendo que apenas um doente
apresenta parésia muito ligeira da dependência do ramo marginal do facial, que
por ter mais de um ano a consideramos permanente (Imagem_1).
Nove doentes (33,3%) referiram sintomas de eritema e/ou sudação aquando da
ingestão alimentar, destes doentes a maioria refere que esses sintomas
iniciaram até seis meses após a cirurgia, existindo apenas um doente no qual os
sintoma iniciaram três anos após a cirurgia. Dos sete doentes que referiam
sudação, apenas um refere essa sudação como excessiva classificando-a como
"6" na escala de 0-10, sendo que os restantes classificaram-na como
"1", "2" ou "3".
O teste de Minor foi positivo em sete doentes, um dos quais não tinha referido
manifestações clínicas. Houve também três doentes, todos do sexo feminino, que
referiam eritema e/ou sudação mas que tiveram teste de Minor negativo. A média
da área afectada foi de 9,71cm2, sendo esta média muito superior nos homens do
que nas mulheres (tabela_3). A menor área medida foi de 0,63cm2 (Imagem_2) e a
maior de 20,19cm2 (Imagem_3).
De acordo com o modelo da gravidade da cirurgia desenhado por Luna-Ortiz e
colaboradores (2003)1, três doentes (42,9%) apresentaram Síndrome de Frey
moderado e quatro doentes (57,1%) Síndrome de Frey grave (tabela_4).
DISCUSSÃO
Diversos factores como a técnica cirúrgica usada, interposição de barreiras e
mesmo os métodos de avaliação influenciam a incidência de Síndrome de Frey nos
doentes submetidos a parotidectomia.1 Três meta-análises recentes avaliaram a
prevalência do Síndrome de Frey clínico e a positividade do teste de Minor nos
doentes submetidos a parotidectomia com e sem técnicas de interposição
(naturais e/ou sintéticas) (tabela_5).7-9 Os resultados são discrepantes,
contudo parece haver melhores resultados com os implantes sintéticos8 do que
com a técnica de interposição de retalho do músculo esternocleidomastoideu.9
Todos os doentes operados pelos mesmos dois cirurgiões da UCP do Hospital de
Braga foram convocados para avaliar a incidência do Síndrome de Frey e o grau
de interferência desta complicação no dia-a-dia. A incidência deste síndrome
objectivável pelo teste de Minor no nosso centro (26,9%) vai de encontro a
vários resultados existentes na literatura.7-9
Os sintomas do Síndrome de Frey tendem a variar com o sexo do doente. As
mulheres tendem a apresentar maior incidência de eritema e as áreas de sudação
pequena ou mesmo ausência de sudação. Por outro lado, no nosso estudo os homens
apresentaram exclusivamente sudação com áreas em média quatro vezes superiores
às mulheres.
Aplicando a escala de classificação da gravidade desenvolvida por Luna-Ortiz1
temos resultados semelhantes aos descritos por ele: 42,9% com síndrome moderado
e 57,1% com síndrome grave. Estes valores parecem sobrevalorizar os efeitos do
Síndrome de Frey no nosso centro, pois apenas um doente refere a sudação como
excessiva e classificou-a como "6" numa escala de 0-10, sendo que os
restantes classificaram-na como "1", "2", ou "3".
A existência de apenas um doente (o que corresponde a 3,8% dos doentes
avaliados) que classifica o grau de sudação como "6" faz questionar
se a utilização de técnicas de interposição de barreira no nosso centro
cirúrgico iria melhor os resultados da incidência de Síndrome de Frey
valorizável pelos doentes.
Também o facto de somente um doente apresentar uma parésia ligeira da área do
marginal mostra que a parotidectomia pode, em mãos experientes, ser uma
cirurgia de baixa morbilidade.