Página da SPC
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Júlio Soares Leite
Presidente da Sociedade Portuguesa de Cirurgia
Uma visão global da Cirurgia Geral em 2013
Numa reunião conjunta promovida pela Direcção da SPC e pela Revista Portuguesa
de Cirurgia, expressei a visão global da Cirurgia Geral, opinião
necessariamente pessoal, mas muito partilhada por vários líderes de outras
sociedades científicas internacionais(1). Os reflexos da enorme evolução
tecnológica e científica da medicina e da cirurgia, bem como a sua crescente
complexidade técnica, conduziram à necessidade da abordagem do doente por
equipas multidisciplinares e à criação de unidades cirúrgicas
subespecializadas, previsão bem descrita por Johnson em 1991, num editorial do
Br J Surg, referindo que general surgery has a future, but the future requires
increasing sub-especialization(2).
O confronto entre os defensores da cirurgia geral e os adeptos da
subespecialização constitui uma polémica que é inerente às situações de mudança
e de progresso; como já foi escrito pelos que procuram uma posição consensual,
o generalista deverá reconhecer os benefícios e a inevitabilidade da
especialização e o especialista terá de compreender que não é o
"dono" exclusivo dessa área cirúrgica(1).
Pellegrini e col.(3) ao discutir a justificação para a reformulação do ensino
da cirurgia nos Estados Unidos referiu que "os residentes terminam o seu
programa tendo apenas efectuado uma ou mesmo nenhuma das intervenções
complexas, tais como esofagectomia, gastrectomia total, ressecção hepática ou
duodenopancreatectomia", acrescentando que "a crescente inovação
tecnológica e o desenvolvimento de diversas subespecialidades cirúrgicas têm
conduzido à formação de cirurgiões gerais indiferenciados e
pluripotenciais."
Na Suécia a limitação do horário semanal de trabalho para 40 horas semanais
forçou também a tendência para a subespecialização, pois só desta forma os
cirurgiões podem ter experiência numa determinada área(4); neste trabalho
sugere-se que a melhoria na qualidade dos cuidados cirúrgicos nesse pais, que
foi recentemente demonstrada nos resultados do tratamento do cancro esófago-
gástrico(5), se deve provavelmente à subespecialização cirúrgica.
Ritchie, na discussão sobre o valor do certificado básico em cirurgia do
American Board of Surgery e sobre a inevitabilidade da especialização
cirúrgica, recomenda que os especialistas sejam os catalizadores na criação de
novos conhecimentos e da inovação tecnológica da sua área, eduquem a nova
geração de cirurgiões, utilizem as suas competências especializadas no
tratamento de casos complexos ou menos frequentes e reconheçam a necessidade de
partilhar os seus conhecimentos e aptidões técnicas com os generalistas,
particularmente nas patologias mais frequentes(1).
Neste contexto, ao nível dos programas de ensino da cirurgia assiste-se à
defesa de um novo paradigma com propostas semelhantes nos EUA e na Europa: um
módulo de cirurgia geral básica e módulos subsequentes de sub-especialidades
cirúrgicas. Nos EUA, as recomendações da American Surgical Association Blue
Ribbon Committee Report on Surgical Education(6) sugerem, após o módulo de
cirurgia básica com duração de 3 anos, uma sub-especialização de mais 3 anos ou
em cirurgia geral (rural ou urbana) ou em diversas sub-especialidades, tais
como cárdio-torácica, plástica, vascular, transplante, trauma e cuidados
intensivos, cirurgia pediátrica, colorectal e oncologia cirúrgica. O módulo de
investigação cirúrgica, com duração de 1 a 2 anos, está incluído entre o da
cirurgia básica e o da especialidade ou no final desta. Outros programas de
pós-graduação são previstos para completarem áreas de sub-especialização, tais
como hépato-bílio-pancreática, cirurgia digestiva alta, trauma e cuidados
intensivos, mama e cirurgia bariátrica.
Na Europa o programa de especialização precoce já existe para diversas
especialidades cirúrgicas. As propostas em discussão na União Europeia dos
Médicos Especialistas (UEMS), expressas nomeadamente por Fernández-Cruz (7),
apontam igualmente para a formação básica em cirurgia geral (5 a 6 anos)
seguida de sub-especialização de mais 1 a 2 anos nas áreas esófago-gástrica,
hépato-bílio-pancreática com inclusão da transplantação, colo-rectal,
endócrina, oncologia cirúrgica (envolvendo especialmente cancro da mama,
melanoma, sarcoma etc.) e trauma com cuidados intensivos; estas
subespecialidades são as que têm recolhido maior aceitação e correspondem
também aos Capítulos existentes na SPC.
Poderemos olhar para a especialização na cirurgia geral pensando no modelo
organizacional dos centros que são para nós as actuais referências de qualidade
médica nas diversas áreas, para se concluir que a diferenciação e a
multidisciplinaridade constituem um novo paradigma da qualidade cirúrgica.
Na agenda política europeia a qualidade dos cuidados médicos, particularmente
na área oncológica, está a ser reavaliada de forma mais rigorosa e global.
Nesta perspectiva a Sociedade Oncológica Holandesa elaborou uma extensa revisão
da literatura(8) sobre a relação entre resultados oncológicos (mortalidade e
sobrevivência) e volume hospitalar e do cirurgião em tumores pancreáticos,
colo-rectais, mama, bexiga e pulmão, tendo concluído serem os resultados
melhores nos centros diferenciados, com especialização e volume adequado. Nos
estudos de base populacional nacional(9,10), considerando intervenções
complexas, como na bolsa ileoanal, demonstrou-se que foi quatro vezes menor a
falência da bolsa nos doentes operados por cirurgiões (e hospitais) de alto
volume. Numa revisão recente da Cochrane, considerando o cancro colorectal,
foram analisadas 51 meta-análises, com estudos maioritariamente observacionais
(11); as conclusões são coincidentes, os resultados em termos de mortalidade,
sobrevivência e taxa de estomias definitivas favorecem claramente a
centralização dos serviços, resultados já bem demonstrados nos países nórdicos
para o cancro do recto(12). Obviamente que o volume não é o único indicador
indirecto de qualidade e não substitui a indispensável auditoria na avaliação
dos resultados clínicos (mortalidade, sobrevivência).
Está igualmente na ordem do dia a concretização da Directiva Europeia (artigo
12 da Directiva 2011/24/EU) relativa ao direito dos doentes disporem duma rede
europeia de cuidados especializados para diversas doenças frequentes,
nomeadamente oncológicas, para situações críticas (transplantes, queimaduras)
ou doenças raras. Esses Centros de Referencia deverão, de acordo com essas
orientações, ter capacidade científica e técnica para diagnosticar e tratar com
elevada competência, ter uma abordagem multidisciplinar, constituir centros de
ensino, de formação pós-graduada e de investigação e colaborar cientificamente
com os restantes Centros nacionais e europeus.
Estas Directivas revestem-se de enorme importância, devendo constituir a base
do novo modelo de organização de uma rede hospitalar diferenciada, com
dinamização de centros de referência, possibilitando ganhos de qualidade e
eficiência. Para tal será imperioso ouvir as sociedades científicas e a Ordem
dos Médicos. Importa conhecer as boas práticas que são já realidade em vários
países europeus. A centralização do tratamento de doenças digestivas complexas
tem tido sucesso em vários países, com redução da mortalidade e aumento das
taxas de ressecabilidade(13) e, como se vê, constitui uma preocupação europeia.
Importa acrescentar que cada unidade especializada deverá ter capacidade para
cobrir os cuidados electivos, as complicações pós-operatórias e outras
situações urgentes 24 horas por dia, em todos os dias da semana e com quatro a
seis cirurgiões especialistas por unidade(13). Com base nas estatísticas do
Reino Unido têm também sido calculadas as previsões do número de intervenções
necessárias por ano e por milhão de habitantes (14). Estes dados sugerem que
deva existir uma unidade esófago-gástrica (associando eventualmente obesidade)
por 1-2 milhões de habitantes, uma unidade hépato-bílio-pancreática por 2-
4 milhões de habitantes e uma unidade colo-rectal por 1-2 milhões de
habitantes. Esta é uma proposta que pode ser adaptada ao nosso país, com
melhoria da eficiência e manutenção ou mesmo redução dos custos, pois será
espectável uma redução da morbilidade. Naturalmente que deverão ser ponderados
outros factores geográficos, de distribuição demográfica ou das próprias
características institucionais.
Os centros de decisão hospitalares, nomeados por convicções políticas e com
gestores alheados dos problemas médicos, têm muita dificuldade em compreender
que a reorganização dos serviços de cirurgia, de acordo com as evidências
científicas actuais, será fundamental para melhorar a qualidade do tratamento
dos doentes. Foi com o desgoverno e a ignorância das nossas tutelas dos últimos
anos que mergulhámos na grave crise financeira em que vivemos, orientados pelas
regras da conveniência política.
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