O actual papel da cirurgia no tratamento da úlcera gastroduodenal
INTRODUÇÃO
Desde a década de 1970 que a necessidade de tratamento cirúrgico da úlcera
gastroduodenal (UGD) tem vindo a decrescer. Para isso contribuíram a
compreensão da sua fisiopatologia, o avanço na terapêutica farmacológica
(primeiro com os antagonistas dos receptores H2 e depois com os inibidores da
bomba de protões), a descoberta do H. Pylori1 e o avanço técnico na área da
endoscopia digestiva.2
Hoje, com as terapêuticas disponíveis, é possível tratar conservadoramente
cerca de 90 % da UGD.
Vários estudos mostram que desde 1980 houve um decréscimo de cirurgia por UGD,
quer na Europa, quer nos EUA, na ordem dos 50 a 80%, sendo hoje raras as
indicações para cirurgia electiva.3
A cirurgia continua contudo a ter o seu papel primordial nas complicações da
UGD: perfuração, hemorragia, estenose e intratabilidade. (Quadro_1)
A incidência desta patologia tem vindo a diminuir, mas as suas complicações
urgentes não acompanharam esta tendência. Parece ainda haver um aumento da
incidência de UGD na população idosa provocada pela administração de
AINE's e antiagregantes plaquetares, e consequentemente um aumento de
hemorragia ou perfuração de UGD nesta faixa etária.3,4
Os autores pretenderam avaliar o papel da cirurgia no tratamento desta
patologia durante 10 anos, num período compreendido entre Janeiro de 2001 a
Dezembro de 2010.
Procedeu-se à análise retrospectiva dos processos clínicos dos doentes operados
por UGD pelo Serviço de Cirurgia 1 do Centro Hospitalar Tondela Viseu no
período já referenciado, procurando comparar os dados obtidos com os da
literatura no que respeita a variáveis: idade, sexo, classificação ASA,
factores de risco para predisposição a úlcera, tipo de úlcera segundo a
classificação de Jonhson, indicação para cirurgia, tipo de intervenção, média
dos dias de internamento, morbilidade e mortalidade.
A análise estatística efectuada foi realizada com recurso ao software Minitab
(v.16) tendo-se recorrido à Estatística Descritiva, ao Teste t-student para uma
amostra.
RESULTADOS
Foram operados desde Janeiro de 2001 a Dezembro de 2010, 134 doentes por UGD
complicada, dos quais 83 por perfuração, 34 por hemorragia, 16 por estenose e 1
por intratabilidade. A caracterização desta amostra está representada no Quadro
2.
Os factores de risco encontrados foram: pesquisa de H. pylori positivo,
administração de AINE's ou antiagregantes, alcoolismo, tabagismo, passado
ulceroso conhecido à admissão (descritos no Quadro_3).
Em 90 doentes (67,2%) a primeira manifestação da UGD foi uma complicação aguda
(perfuração ou hemorragia).
Segundo a classificação de Jonhson5, que tem em conta a fisiopatologia da UGD,
as úlceras do tipo II e III, ou seja as que surgem por uma hipersecreção de
ácido, foram as mais prevalentes apresentando-se em 123 doentes (91,8%).
(Quadro_4)
Dos 134 doentes, 117 foram operados de urgência (87%). O procedimento cirúrgico
variou com o tipo de complicação, com os achados intra-operatórios e com a
classificação ASA (Quadro_5).
Os doentes operados por hemorragia foram todos referenciados pelo Serviço de
Gastroenterologia, após tentativa falhada de controlo endoscópico (Quadro_6). A
indicação para cirurgia electiva foi a estenose pilórica e intratabilidade. Por
intratabilidade foi operado apenas 1 doente correspondendo a 0,7% do total de
cirurgias por úlcera gastroduodenal em 10 anos. Analisaram-se as morbilidades
cirúrgicas e médicas de cada grupo. Na amostra total, 32 doentes apresentaram
complicações cirúrgicas e 45 doentes complicações médicas (Quadro 6 e 7).
As complicações cirúrgicas encontradas foram agrupadas em:
anastomóticas (11 doentes); sépticas (10 doentes); parede abdominal (4
doentes); hemorrágicas (5 doentes) e re-intervenções (8 doentes).
As causas de re-intervenção foram: - ventre agudo com fístula da
omentoplastia (1); - deiscência de aponevrose (2); - recidiva da
hemorragia com instabilidade hemodinâmica (3); - fístula do coto
duodenal (1); - obstrução à drenagem gástrica (1).
As complicações médicas foram divididas em:
respiratórias (30 doentes); cardiovasculares (10 doentes); sépticas (5);
neurológicas (10 doentes) e urinárias (2 doentes).
A mortalidade global na amostra foi de 12,7%, ocorreu apenas nos grupos da
perfuração e hemorragia, ou seja em cirurgia de urgência. Estes doentes
apresentavam uma idade média de 76,8 anos (± 7,2) e ASA IV. Dentro de cada um
dos grupos houve uma mortalidade de 8,4% (7 doentes) na perfuração e de 29,4%
(10 doentes) na hemorragia, sendo que 2 doentes do grupo da hemorragia
faleceram intra-operatoriamente.
DISCUSSÃO
A úlcera gastroduodenal é um defeito focal na mucosa gástrica ou duodenal que
atinge a submucosa ou camadas mais profundas.6
A fisiopatologia da UGD é complexa e multifactorial. Cerca de 85% é causada por
infecção por H. Pylori e os restantes casos estão associados à toma de anti-
inflamatórios não esteróides. O desenvolvimento da patologia ulcerosa
relaciona-se com alterações da secrecção ácida, processos de defesa da mucosa e
presença de lesão inflamatória crónica.6 Apoiando-se na fisiopatologia desta
entidade, Jonhson 5 em 1957 classificou as UGD em 3 tipos, tendo, mais tarde,
Csendes7 acrescentado a úlcera sub-cárdica como tipo IV:
● tipo I - úlcera gástrica da pequena curvatura, normalmente
com secrecção ácida normal ou diminuída;
● tipo II - úlcera gástrica do corpo associada a úlcera
duodenal activa ou não, em que existe aumento da secrecção ácida
● tipo III - úlcera pré-pilórica, associada com aumento da
secrecção ácida
● tipo IV - úlcera sub-cárdica, associada a secrecção ácida
normal ou diminuída.
Os factores de risco para o desenvolvimento desta patologia são sexo masculino,
infecção por H. Pylori, consumo de AINE's, alcoolismo, tabagismo, stress,
doença hepática crónica, doença pulmonar crónica e pancreatite
crónica.3,8,9,10,11
Esta patologia afecta cerca de 2% da população adulta nos EUA e estima-se que
cerca de 10% da população irá sofrer desta patologia ao longo da sua vida. Os
homens são afectados duas a três vezes mais que as mulheres.12,13
As úlceras duodenais são mais frequentes nos jovens relativamente às úlceras
gástricas, mas essa diferença vai-se atenuando com a idade.10,12
A nossa amostra revelou também um predomínio do sexo masculino. O consumo de
AINE's e alcoolismo assumem uma grande prevalência nesta amostra como
factores de risco para patologia ulcerosa. A infecção por H. Pylori é
usualmente implicada como o principal agente etiológico, no entanto não
conseguimos objectivar este facto na nossa amostra por insuficiência de dados.
A incidência e prevalência da úlcera UGD diminuiu nos últimos 25 anos.12 Esta
redução deve-se à diminuição da prevalência por infecção por H. Pylori.14
Lassen et al, num estudo sobre a incidência desta patologia entre 1993 a 2002
na população dinamarquesa encontrou uma redução de cerca de 0,55/1000
indivíduos/ ano na ulcera duodenal e 0,56 a 0,4 / 1000 indivíduos / ano na
úlcera gástrica.15
As principais complicações da UGD são a perfuração, a hemorragia, a estenose e
a intratabilidade.16
Vários estudos mostram que as complicações urgentes da úlcera gastroduodenal
(perfuração e hemorragia) não acompanham o decréscimo de prevalência da
patologia não complicada.4,15,12,2 Este resultado pode ser produto de um
envelhecimento da população nos países ocidentais e consequentemente um aumento
no uso de AINE's e antiagregantes para o tratamento das suas co-
morbilidades. 17,18, 11
A hemorragia é mais comum que a perfuração4,17,15, estando descrita com uma
incidência na população em geral de 19,4 a 57 casos por 100000 indivíduos nos
EUA enquanto que a incidência da perfuração é de 3,77 casos a 14 casos por
100000 indivíduos.4
A estenose, ou seja, a obstrução à drenagem gástrica, ocorre em 2% dos doentes
com doença UGD.19 A úlcera intratável é hoje rara, e as causas subjacentes para
que não cicatrize podem ser: a não adesão do doente à farmacoterapia,
resistência do H.pylori à antibioterapia instituída e ainda falsos negativos de
pesquisa do H. pylori.12
Devido aos bons resultados do tratamento médico, o tratamento cirúrgico da UGD
não complicada tornou-se obsoleto. Actualmente a cirurgia está reservada para
as suas complicações.2,7-12,16
Bardhan et al, numa análise retrospectiva desde 1977 a 2001 sobre as alterações
na abordagem da úlcera gastroduodenal concluem que a cirurgia electiva teve uma
diminuição de 4,3% para 0,2% na úlcera duodenal e de 4,2% para 0,3% na úlcera
gástrica.12
A grande maioria das operações realizadas por UGD são de urgência (82%), e
procede-se a cirurgia de controlo de danos em 80% dos casos3,13, não sendo
realizada cirurgia redutora de ácido. Isto justifica-se pela necessidade de uma
actuação rápida e eficaz pelo cirurgião, de modo a reverter o processo de
instabilidade destes doentes. O nosso estudo corrobora estes dados, uma vez que
87% dos doentes foram submetidos a cirurgia urgente e em 83,8% destes doentes
procedeu-se apenas a controlo local de danos (79 doentes com perfuração e 17
doentes com hemorragia). A estes doentes está associada uma elevada média de
idades e de classificação ASA, o que pode explicar este tipo de abordagem.
No entanto, a diminuição da cirurgia electiva por UGD, pode dificultar a
formação dos cirurgiões mais novos, que mais tarde ou mais cedo serão
confrontados com situações de urgência.23,24,25,26,2
A abordagem de cada uma das complicações está bem definida na literatura.
O tratamento preconizado na perfuração da UGD é a cirurgia que não tem como
intenção, na maioria dos casos, tratar a doença ulcerosa, mas travar a
contaminação peritoneal com procedimentos simples como a omentoplastia e a
lavagem.27,28,29 Este é o tratamento cirúrgico preconizado no nosso Serviço em
associação com a irradicação do H. Pylori e a vagotomia química com IBP's
no pós-operatório, tornando-se um procedimento eficaz.
A via laparoscópica tem uma eficácia semelhante à via aberta.30,22 Outras
abordagens descritas, como o tratamento conservador com antibioterapia e a
drenagem per-cutânea de abcessos contidos, podem ser utilizadas em doentes
seleccionados que têm elevado risco cirúrgico, que apresentem estabilidade
hemodinâmica, necessitando de uma vigilância clínica apertada.31,11,24,28
Relativamente a esta complicação verifica-se uma taxa de mortalidade entre os
10,5 aos 29% 4,44,45,15, e está associada ao aumento da idade, co-morbilidades,
choque, acidose metabólica, hipoalbuminemia, insuficiência renal aguda e atraso
no tratamento cirúrgico.33,34,35,
No nosso estudo a taxa de morbilidade foi de 24% e a taxa de mortalidade de
8,4%, números inferiores à maioria dos estudos.
A abordagem da hemorragia por UGD é multidisciplinar, envolvendo internistas,
gastroenterologistas, intensivistas e cirurgiões.
Inicialmente deve ser avaliado o estado hemodinâmico do doente e implementadas
medidas de ressuscitação. O risco do doente é estratificado através de scores
baseados em dados clínicos e analíticos como o de Blatchford ou Rockall antes
da realização da endoscopia (Quadros 8 e 9).36,37,13
Os doentes de elevado risco deverão ser internados e ser submetidos a
endoscopia digestiva alta, hemostase, terapêutica endovenosa com inibidores da
bomba de protões e monitorização clínica.36,37,38,39
A endoscopia digestiva alta mostrou ser eficaz em reduzir a recorrência da
hemorragia, diminuir a necessidade de cirurgia urgente e a mortalidade global
associada à hemorragia por UGD.40,41 A angioembolização é referida como uma
opção antes da abordagem cirúrgica, nomeadamente em doentes com elevado risco
cirúrgico e quando é desconhecida a localização da hemorragia.36,38
No entanto a recorrência de hemorragia após hemostase por endoscopia pode ir de
0% a 31%, consoante as séries.4,42,43,44
A classificação de Forrest que se baseia nos achados endoscópicos na hemorragia
por UGD, é um instrumento importante para a planificação do tratamento
endoscópico e da cirurgia urgente, predizendo o risco de recidiva hemorrágica,
a necessidade de cirurgia urgente e a mortalidade associada a cada achado.
(Quadro_10) As úlceras classificadas como tipo Ia (hemorragia activa em jacto),
tipo Ib (hemorragia activa em toalha) e tipo IIa (vaso visível) estão
associadas a uma necessidade de intervenção cirúrgica urgente em cerca de 35%
dos casos.45,46,47,48
As indicações para cirurgia são 41,47,8,37:
● falência do tratamento endoscópico;
● instabilidade hemodinâmica apesar das medidas de ressuscitação;
● recurrência da hemorragia
● necessidade de > 4 unidades de glóbulos vermelhos em 24h ou de 8 U
em 48h.6
As indicações relativas são tipo de sangue raro, recusa transfusional, úlceras
gigantes (> 2cm), hemorragia de grande volume, choque na apresentação do
quadro, idade avançada, co-morbilidades severas.37,13 A taxa de mortalidade
associada à hemorragia por UGD é de 8,6 %, estando relacionada com a presença
de co-morbilidades, idade superior a 60 anos, primeira manifestação da doença e
choque hipovolémico. 4,17,50,5,15,51,52,53
A cirurgia é o último recurso para evitar a exsanguinação do doente quando a
endoscopia ou a angioembolização falham 23,35.54,44,47,49,37, verificando-se um
aumento da taxa de mortalidade para 15 a 25 % 45,37,51. Esta taxa está
relacionada com o numero de episódios de hemorragia e de tentativas
endoscópicas, população idosa e úlceras de abordagem difícil.37,48,55,44
Verificamos que os doentes que nos foram referenciados por hemorragia foram
submetidos a pelo menos uma tentativa de controlo endoscópico (máximo de 3).
Todos os doentes foram operados de emergência em choque hemorrágico. A
necessidade média de U CE foi de 10,5 U / doente. Dois casos faleceram intra-
operatoriamente. Em 5 doentes houve recorrência de hemorragia no pós-
operatório. A mortalidade global foi de 29,4%.
Tratam-se de doentes críticos, politransfundidos, em coagulopatia, refractários
a todas abordagens médicas. Existem autores que defendem a intervenção
cirúrgica precoce nestes doentes de alto risco.28,49,37
A estenose ou obstrução à drenagem gástrica é o resultado do edema e da
cicatrização no bulbo duodenal ou piloro. A sua abordagem inicial é
conservadora, com descompressão gástrica colocando uma sonda naso-duodenal, a
administração de inibidores da bomba de protões de forma a reduzir o processo
inflamatório e a erradicação do H. Pylori. Se o doente permanecer com sintomas
de obstrução à drenagem gástrica podem ser realizadas dilatações
endoscópicas.19,9 A cirurgia poderá estar indicada quando a patologia for
refractária às medidas anteriormente descritas. Esta pode consistir na
vagotomia e procedimentos de drenagem gástrica.9 No nosso estudo constatamos
que os doentes tinham todos tentativas prévias falhadas de tratamento
conservador. A intervenção eleita foi a vagotomia troncular associada a
ressecção gástrica (56,3%).
A intratabilidade de uma UGD pode estar associada a outras patologias que
deverão ser excluídas (Sindrome de Zollinger-Ellison, neoplasia). 56Normalmente
são situações refractárias às múltiplas tentativas terapêuticas médicas. A
cirurgia preconizada envolve o tratamento definitivo da doença ulcerosa. Em 10
anos apenas se operou um caso por intratabilidade, confirmando a trajectória
decrescente do tratamento desta complicação pelo cirurgião.
CONCLUSÕES
A cirurgia electiva da úlcera gastroduodenal não complicada desapareceu da
nossa prática. A intratabilidade é hoje uma indicação rara para cirurgia. Os
doentes que necessitam de cirurgia, são-no maioritariamente em contexto de
urgência e em condições clínicas hostis.