EVAR - 20 anos de história
EVAR ' 20 anos de história
EVAR ' 20 years of history
Prof. J. Fernandes e Fernandes*
* Chefe de Serviço de Cirurgia Vascular, Professor Catedrático e Director da
Faculdade de Medicina, Centro Académico de Medicina de Lisboa, Director do
Instituto Cardiovascular de Lisboa.
A publicação por Juan Parodi em 1991 sobre o tratamento endoluminal do
aneurisma da aorta marcou a evolução da Cirurgia Vascular e revolucionou o seu
tratamento.
A aplicação à doença aneurismática dos mesmos princípios da intervenção
endovascular na doença oclusiva, representou um salto qualitativo (quantic
leap) que surpreendeu a comunidade vascular ainda em processo de digestão
difícil da mudança do paradigma de actuação que outros grupos profissionais
(radiologistas de intervenção e cardiologistas) pareciam impor na clínica
vascular.
Nesse princípio da década de 90 o tratamento cirúrgico do Aneurisma da Aorta
Abdominal representava a reserva de actuação, aparentemente inexpugnável, do
Cirurgião Vascular.
Reflectir sobre estas duas décadas de EVAR e sobre o seu impacto no progresso
do nosso conhecimento científico sobre os mecanismos patogénicos, a história
natural, o diagnóstico e a evolução do aneurisma da aorta constitui um
exercício útil e que se impõe.
O que mudou então nestes 20 anos?
I RASTREIO DO ANEURISMA DA AORTA E RISCO CLÍNICO
No início dos anos 90 prevalecia a regra que aneurisma diagnosticado seria
aneurisma operado independentemente da sua dimensão, tipo ou morfologia.
Correspondia à necessidade de tratar o doente nas melhores condições clínicas
possíveis, prevenir a rotura do aneurisma e prolongar a sua sobrevivência.
O estudo epidemiológico UK 'SAT realizado no Reino-Unido nos anos 80 e
publicado nos anos 90 no qual se comparava vigilância ecográfica com cirurgia
precoce permitiu esclarecer aspectos fundamentais:
O risco de rotura só era clinicamente relevante nos aneurismas com diâmetro
superior a 5.5 cm, pelo que cirurgia precoce em aneurismas com menor dimensão
não parecia representar benefício efectivo.
Eficácia duma estratégia de vigilância ecográfica dos aneurismas de menores
dimensões (diâmetro < 5.5 cm).
A generalização dos programas de rastreio ecográfico do aneurisma da aorta
correspondeu a uma necessidade de Saúde Pública, em especial nos países onde a
sua prevalência era elevada e a doença configurava uma nova epidemia. As
maiores vítimas eram homens com mais de 65 anos de idade e o aneurisma da aorta
abdominal aparecia como responsável por cerca de 6,000 mortes prematuras em
Inglaterra e no País de Gales. A análise de vários destes programas de rastreio
implementados na década de 90 permitiu comprovar redução significativa do risco
de rotura e de 45% na mortalidade relacionada com o aneurisma, bem como uma
tendência de diminuição da mortalidade global destes doentes.
Estas observações fundamentaram a generalização de programas nacionais de
rastreio do aneurisma da aorta sob a égide das organizações científicas e/ou de
Saúde Pública.
No entanto, vinte anos depois, começa a notar-se uma redução da incidência do
aneurisma da aorta abdominal como foi recentemente referenciado em dois estudos
provenientes do Reino-Unido e da Nova Zelândia, provavelmente consequência do
melhor tratamento da aterosclerose e dos seus factores de risco, nomeadamente
tabagismo, hipertensão arterial e dislipidémia e maior frequência de diabetes
mellitus, aparentemente associada a menor risco de doença aneurismatica,
observações que suscitaram dúvida sobre a efectiva necessidade destes
programas. O estudo inglês Gloucester Aneurysm Screening Program iniciado
precisamente há vinte anos, permitiu comprovar uma redução de quase 20% do
diâmetro da aorta abdominal nos homens com 65 anos, facto que poderá sugerir
processo degenerativo mais lento na aorta abdominal e aparecimento mais tardio
do aneurisma.
Serão estes dados indicativos que graças ao melhor management global da
aterosclerose, à adopção de estilos de vida mais saudáveis, a prevalência do
aneurisma está a decrescer? Qual o seu impacto real no sexo feminino, que até
hoje tem sido excluído dos programas de rastreio dada a menor frequência da
doença nas mulheres? Será que deverão ser adoptados novos limites de diâmetro
da aorta abdominal, particularmente no sexo feminino e perante a possível
redução do diâmetro da aorta nos homens? Deverá o limiar de 65 anos para o
rastreio ser alterado?
Estas questões dominarão certamente a investigação clínica na próxima década e
ajudarão a definir com maior rigor os limites e indicações da intervenção
terapêutica.
Mas um facto parece comprovado: a redução significativa ' 33% - da mortalidade
operatória aos 30 dias nos doentes nos quais o aneurisma da aorta assintomático
foi detectado no âmbito dum programa de rastreio versus o diagnóstico em
consulta ocasional. As razões para esta observação poderão ser: idade mais
jovem dos doentes incluídos em programas de rastreio, aneurisma com menor
dimensão e anatomia menos complexa favorecendo tratamento endovascular, menos
co-morbilidades que podem agravar o risco operatório em idade mais avançada.
São razões que merecem consideração e que, na minha opinião, continuam a
justificar a necessidade e a vantagem de programas nacionais de rastreio.
II PATOGÉNESE E EXPANSÃO DO ANEURISMA DA AORTA
Nestas duas décadas houve um reforço notável da investigação biomédica,
genética e molecular, com o objectivo de clarificar os mecanismos patogénicos
responsáveis pela dilatação da aorta. E parece-me evidente que toda esta
investigação foi suscitada pela nova tecnologia imagiológica e consequente
acumulação de dados objectivos da evolução das dimensões da aorta após EVAR.
Foi de facto um benefício colateral, para o qual contribuiu também a enorme
quantidade de informação proporcionado pelos programas de rastreio ecográfico e
o impacto potencial da intervenção farmacológica.
Uma avaliação exaustiva da informação acumulada nesses estudos e publicada
recentemente por Janet Powell veio evidenciar variabilidade na taxa de
crescimento dum aneurisma da aorta e a sua dependência do diâmetro: um
aneurisma com 3.5 cm de diâmetro máximo poderá levar 6.2 anos a chegar aos 5.5
cm, enquanto que outro com 4.5 cm levará cerca de 2.3 anos a atingir os 5.5 cm.
A tentativa de quantificar o ritmo de crescimento dum aneurisma da aorta
abdominal é fundamental para poder apreciar com objectividade benefício
eventual de intervenção farmacológica, nomeadamente a que parece dirigida ao
controle dos enzimas responsáveis pela degenerescência da parede da aorta.
Com efeito, destruição das fibras elásticas, produção anormal de colagéneo com
menor resistência à distensibilidade da aorta, consequência de incremento da
acção das metalo-proteinases parece constituir o mecanismo patogénico
fundamental. Intervenção terapêutica sobre a expressão genética destes enzimas
tem conduzido a vários estudos sobre intervenção farmacológica, como o
propanolol, uso de antibióticos como a doxiciclina ou estatinas os quais não
têm sido conclusivos.
Mas esta é uma área de investigação promissora, nomeadamente com o
desenvolvimento de modelos animais de doença aneurismática, e que certamente
dominará a atenção da comunidade vascular na próxima década.
III EVAR: EFICÁCIA E DURABILIDADE
A incorporação da inovação diagnóstica ou terapêutica na prática clínica é um
desafio. Obedece a regras de evidência científica, as quais devem ser
compatibilizadas com a criatividade e procura de novas soluções.
A actuação da comunidade vascular mundial perante a contribuição de Juan Parodi
pautou-se por princípios de rigor científico e consubstanciou várias etapas:
1º Definição de metodologia de avaliação e critérios de selecção
2º Introdução de uma nova semiologia diagnóstica e estandartização de uma nova
semântica com conceitos como endoleak, fixação, estancidade (sealing),
endotensão, remodeling do aneurisma
3º Desenvolvimento da Imagiologia vascular, nomeadamente TAC RMN com
reconstruções tridimensionais, central'luminal configuration e estudos
dinâmicos e funcionais, uma verdadeira revolução na prática clínica.
4º Organização de registos nacionais e internacionais como o EUROSTAR
promovendo saudável cooperação multicêntrica
5º Realização de estudos randomizados comparando a terapêutica endovascular com
a terapêutica cirúrgica convencional após estabilização do desenvolvimento
tecnológico das endopróteses.
Não foi uma tarefa fácil. Havia que incorporar as consequências do constante
desenvolvimento tecnológico e a comparabilidade entre diferentes devices,
nomeadamente em relação aos seus fundamentos biomecânicos, resistência e
consequências clínicas adversas entretanto reportadas. Foram várias as
endopróteses utilizadas que vieram a ser rejeitadas posteriormente, em
detrimento de novos enxertos com maior flexibilidade, melhor fixação mecânica,
navegabilidade intra-arterial mais facilitada e maior resistência ao stress
hemodinâmico.
É uma história fascinante que evoca o período de expansão da cirurgia arterial
nas décadas de 40 e 50, desde o wrapping do aneurisma com celofane, efectuado
em Albert Einstein no princípio dos anos 50 e que conteve o aneurisma durante
cerca de 4 anos até á sua rotura fatal, às tentativas de trombose induzida e
exclusão do aneurisma com fios metálicos, à introdução dos homo-enxertos que
permitiram a ressecção do aneurisma e a manutenção da continuidade arterial, ao
uso de material sintético e à técnica de inclusão endo-aneurismática.
A eficácia de EVAR, em comparação com a cirurgia convencional, veio a ser
comprovada pelos estudos randomizados e controlados realizados na Europa, o
estudo holandês DREAM e os dois estudos EVAR 1 e 2 efectuados no Reino-Unido
que ajudaram a clarificar os benefícios e as limitações da tecnologia
endovascular, nomeadamente
Redução significativa da mortalidade precoce aos 30 dias
Diminuição da mortalidade determinada pelo aneurisma (aneurysm'related death)
cujo benefício era evidente até aos 4 anos, não obstante a maior necessidade de
reintervenção endovascular para tratamento de complicações associadas ao EVAR.
Estes resultados suscitaram um enorme entusiasmo e expansão da tecnologia
endovascular. Conceitos como anatomia favorável do aneurisma e escolha do
doente ( patient´s choice) na decisão terapêutica passaram a integrar a prática
vascular.
No entanto, os resultados aos 8 anos e publicados em 2010 demonstraram
Desaparecimento da vantagem inicial de EVAR na sobrevivência dos doentes
Mortalidade associada a rotura de aneurisma da aorta pós EVAR
Maior necessidade de intervenção endovascular com risco acrescido de
complicações fatais e readmissão hospitalar
Estas observações foram confirmadas em estudo subsequente de Schermerhorn num
vasto grupo de doentes da base de dados do sistema Medicare nos EUA, com maior
frequência de reintervenções tardias e readmissão hospitalar em doentes
submetidos a EVAR quando comparados com a cirurgia aberta - 9.6 % versus 7.6 %,
p<.001- as quais tinham um efeito negativo sobre a sobrevivência aos 6 anos dos
doentes submetidos a EVAR.
Estes dados e a apresentação dos resultados preliminares do Estudo ACE
realizado em França e dirigido por J. P. Becquemin, no qual não foi sequer
demonstrado benefício inicial na redução da mortalidade cirúrgica precoce com
EVAR, obrigam a reflexão e re-avaliação objectiva da metodologia EVAR.
Importa analisar as seguintes questões: quais as razões para a ocorrência de
rotura pós EVAR? Será a rotura uma inevitabilidade, por falência mecânica da
endoprótese ou expressão de concepção definitivamente errada da técnica?
Existirão outras razões como management inadequado no seguimento pós
terapêutico? Houve selecção terapêutica pouco rigorosa? Deverá EVAR ser
reservado para doentes com maior risco cirúrgico e menor esperança de vida?
Wyss analisou em detalhe as roturas de aneurisma pós ' EVAR no âmbito dos
estudos ingleses. A sua incidência é menor que 1% / ano e um número não
negligenciável parece ter ocorrido quer precocemente ' o que sugere indicação
inadequada, ou erro técnico ' quer em doentes nos quais tinham sido
identificadas complicações tardias, mas que não foram objecto de intervenção
terapêutica.
Na nossa experiência de 11 anos, identificámos duas situações de rotura pós-
EVAR, uma aos 3 anos de seguimento e associada a desconexão de ramo de
endoprótese Vanguard (cuja utilização foi abandonada pouco depois) e que foi
tratada cirurgicamente com sucesso e outra 6 anos após tratamento com
endoprótese Excluder, que falhou o seguimento nos últimos 18 meses e precedida
por sindroma febril inadequadamente tratado, com morte do doente duas semanas
depois da cirurgia aberta. Três outros doentes tiveram necessidade de
intervenção: endovascular num doente, para correcção de endoleak tipo 1 aos 12
meses, e nos outros dois, por cirurgia convencional. Um dos doentes tinha
aumento do aneurisma por três pontos de endoleak tipo 2, que foram suturados,
comprovando-se na operação ausência de outras complicações e boa fixação da
endoprótese Zenith aplicada 4 anos antes e outro doente que desenvolveu
progressão da doença aneurismática proximal 7 anos após tratamento com enxerto
Endologix e que obrigou a reconstrução aberta toraco-abdominal com sucesso.
Parece claro que a tecnologia EVAR está claramente associada a menor
mortalidade precoce e a benefício terapêutico a médio prazo, mas o seu sucesso
exige protocolo rigoroso de seguimento anual dos doentes para monitorização das
dimensões do aneurisma e detecção de complicações eventuais que possam impor
intervenção correctora, endovascular ou convencional, nomeadamente se houver
aumento do diâmetro do aneurisma.
A generalização da metodologia EVAR em casos limite, nomeadamente com colo
proximal muito tortuoso ou com comprimento reduzido < 1.0 cm, sem recurso
endopróteses fenestradas ou ramificadas, poderá vir a acarretar um maior risco
de complicações tardias e reduzir o benefício expectável da terapêutica menos
invasiva.
De facto, nestes casos devem aplicar-se as lições aprendidas na cirurgia
convencional para o tratamento dos aneurismas justa e/ou para-renais: a
cirurgia deve incorporar a reconstrução das artérias renais e viscerais para
permitir a realização da anastomose proximal em aorta não aneurismática.
Se a opção for endovascular nestes casos dever-se-á contemplar a utilização de
próteses fenestradas ou ramificadas, para assegurar a sua fixação adequada em
aorta normal e incrementar a sua durabilidade.
A nossa experiência, ainda limitada, leva-nos a adoptar os princípios definidos
para a utilização destas novas endopróteses, e que tornam possível o tratamento
de aneurismas com morfologias complexas e extensão proximal justa ou para-renal
e da aorta toraco-abdominal.
IV QUE FUTURO?
A tecnologia endovascular trouxe um benefício inequívoco no tratamento da
doença aneurismatica da aorta e das artérias periféricas. O seu carácter menos
invasivo, realização sob anestesia local e/ou raquidiana, redução do
internamento hospitalar, das necessidades transfusionais e, indiscutivelmente,
maior conforto para os doentes, representa um avanço qualitativo muito
relevante.
A sua utilização no tratamento do aneurisma da aorta torácica está
indiscutivelmente associada à redução da mortalidade e do risco de paraplegia,
facto que tem sido referido em publicações recentes.
A possibilidade de tratamento de aneurismas da crossa da aorta associados a
procedimentos de debranching dos troncos supra-aórticos como temos vindo a
realizar, a utilização de próteses ramificadas custom'made em doentes com
aneurisma toraco-abdominal e os resultados provenientes de centros de
excelência e publicados por Roy Greenberg, Eric Verhoven e S. Haulon confirmam
o enorme potencial terapêutico da tecnologia EVAR que, de facto, representou
uma mudança fundamental na prática de cirurgia vascular.
As lições destas duas décadas parecem-me óbvias:
1º Desenvolvimento da Imagiologia sofisticada da aorta, e cuja aplicação é
indispensável para a definição da estratégia terapêutica.
2º Rigor na selecção dos doentes. Compromisso com morfologias menos favoráveis
parece claramente associada a maior taxa de complicações a médio e longo prazo,
maior necessidade de reintervenções, menores benefícios e custos mais elevados.
3º Generalização de EVAR em doentes com rotura de aneurisma da aorta abdominal
e torácica, como tem sido defendido por Frank Veith, e no tratamento das
roturas traumáticas da aorta, como tivemos a oportunidade de apresentar no
Congresso da SPACV em 2010.
No entanto três realidades se impõem.
Primeiro, o tratamento endovascular requer programas rigorosos de vigilância e
monitorização pós-operatória; qualquer compromisso no rigor da sua aplicação
acarretará insucessos que poderiam ter sido evitados e corrigidos por via
endovascular.
Em segundo lugar, a cirurgia aberta, convencional, continua a ser uma
alternativa terapêutica indispensável, porventura mais dirigida para casos mais
complexos e difíceis, inadequados para o tratamento endovascular, o que
necessariamente coloca problemas para assegurar treino, formação e manutenção
da competência aos cirurgiões vasculares.
Em terceiro lugar, a necessidade de centralizar, em unidades de referência com
experiência em cirurgia endovascular e aberta, o tratamento do aneurisma da
aorta, de modo a proporcionar a melhor opção terapêutica para cada doente e
optimizar os resultados a curto e longo prazo.
Estas questões configuram a necessidade de um debate indispensável e urgente
entre nós e essa será missão indeclinável das instituições académicas e das
sociedades científicas.