Trombose venosa profunda e sua relação com trombofilias e neoplasias: estudo
retrospectivo
INTRODUÇÃO
A trombose venosa profunda (TVP) é uma patologia com uma elevada incidência e
que acarreta uma elevada morbi-mortalidade. Para além da ocorrência frequente
de síndrome pós-trombótico, poderá também levar à ocorrência de tromboembolismo
pulmonar que, por sua vez, poderá ser fatal ou resultar em hipertensão pulmonar
crónica.[1] [2]
Trata-se de uma doença multifactorial, assentando a sua etiologia em factores
genéticos, adquiridos e ambientais, e que, frequentemente, co-existem num mesmo
indivíduo.[3]
Por vezes, representam a primeira manifestação de outras doenças, nomeadamente
trombofilias ou neoplasias. [4]
São conhecidos numerosos factores de risco, nomeadamente a idade avançada,
intervenção cirúrgica recente, traumatismo, imobilização prolongada, neoplasia,
trombofilias, SAF, história de pacemaker ou catéter venoso central (CVC),
gravidez, toma de contraceptivos orais, terapêutica hormonal de substituição,
doença inflamatória intestinal, entre outros...[5, 6, 7]
A TVP é, frequentemente, passível de ser prevenida, pelo que, dever-se-à,
sempre que possível e justificado, apostar na sua profilaxia.[8]
Tendo em conta a elevada morbi-mortalidade que acarreta, o seu diagnóstico
precoce é também fundamental, assim como a determinação da sua etiologia por
forma a prevenir eventos futuros e, como já foi referido, para diagnosticar
patologias que até então ainda não haviam sido reconhecidas.
Com a elaboração deste estudo retrospectivo, os autores tiveram como objectivo
avaliar os resultados obtidos nos protocolos instituídos no seu Serviço para
despiste de trombofilias e neoplasias em doentes com o diagnóstico de TVP. Isto
para, por um lado, e dados os elevados custos que implicam, ter noção se se
justifica a sua aplicação e, por outro, caso se justificasse a sua aplicação,
rever quais os exames incluídos nesses protocolos que são efectivamente
relevantes em termos clínicos.
MATERIAL E MÉTODOS
Para a elaboração deste estudo retrospectivo procedeu-se à consulta dos
processos hospitalares de todos os doentes com idade igual ou inferior a 50
anos, internados no Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular dos Hospitais da
Universidade de Coimbra, entre 01 de Janeiro de 2006 e 31 de Dezembro de 2010,
com o diagnóstico de TVP e, em seguida, analisaram-se, entre outras, variáveis
epidemiológicas, factores de risco e os resultados obtidos através dos
protocolos para despiste de trombofilias e de neoplasias.
Dos protocolos constava a realização dos seguintes estudos/exames:
> Hemograma com Plaquetas
> Tempos de Protrombina e de Cefalina Caolino
> Fibrinogénio, PDF, Factor V, Factor VIII, Plasminogénio, Antitrombina III,
Proteínas C e S
> Velocidade de sedimentação
> Anticorpos anti-fosfolipídicos
> Anticorpos anti-citoplasmáticos e ANCA
> Homocisteinémia
> Crioglobulinémia
> Factor Reumatóide
> Risco trombótico
• Factor V Leiden
• Factor V H1299R
• Protrombina GA 20210
• Factor XIII V34L
• Fibrinogénio beta G/A-455
• PAI 4G/5G
• Glicoproteínas GP3A
• MTHFR C677T
• MTHFR A1298C
• ACE Ins/Del
• APO B R3500Q
• Apo E ' (alelos 2, 3 e 4)
> Estudo do Complemento
> Proteinograma Electroforético
> Determinação do Grupo Sanguíneo
> Bioquímica
> Serologias (VIH, hepatites)
> Radiografia torácica
> Electrocardiograma
> Ecografia (em situações mais específicas)
> TAC (em situações mais específicas)
RESULTADOS
De um total de 89 doentes, 64 (71,9%) eram do sexo feminino e 25 (28,1%) do
masculino. A média de idades foi de 33,3 ±10,0 anos, sendo que a idade mínima
foi de 15 anos.
| GRÁFICO 1 | Distribuição etária
Em termos de localização da TVP, verificou-se um claro predomínio a nível ílio-
femoral esquerdo.
| GRÁFICO 2 | Localização da TVP. MS esq ' membro superior esquerdo; MS dto '
membro superior direito; VCI ' veia cava inferior
Relativamente a factores de risco, 78,7% dos doentes apresentavam, pelo menos,
um factor de risco, sendo que o mais prevalente foi a toma de contraceptivos
orais, seguindo-se o consumo de tabaco. 14,6% dos doentes já haviam tido, pelo
menos, um episódio prévio de trombose venosa profunda e esse havia sido, na
maioria dos casos, no mesmo membro. De salientar também que sete doentes (7,9%)
apresentavam já história familiar positiva para TVP/TEP e dois (2,2%) tinham
pais consanguíneos.
| GRÁFICO 3 | Factores de risco. CVC ' catéter venoso central
No que diz respeito ao tratamento, apenas uma doente não foi submetida a
heparinoterapia ab initium (heparina de baixo peso molecular ou heparina não
fraccionada) durante o internamento por história recente de cesariana
complicada por volumoso hematoma retroperitoneal, tendo-lhe sido colocado um
filtro temporário na veia cava inferior. Em nove doentes (10,1%) foi também
realizada fibrinólise sistémica com alteplase e numa doente efectuada
trombectomia venosa. Setenta e um doentes (79,8%) tiveram alta com indicação
para manter anticoagulação oral e a totalidade indicação para manter contenção
elástica.
Durante o internamento foram diagnosticados cinco tromboembolismos pulmonares
(5,6% dos doentes), um deles com necessidade de realização de fibrinólise.
O protocolo de despiste de trombofilias e de neoplasias foi realizado em 65
doentes (73,0%).
Após revisão de bibliografia actualmente disponível acerca de trombofilias
considerou-se que nem todos os estudos realizados no nosso Serviço teriam
relevância em termos clínicos, pelo que se consideraram como relevantes apenas
os seguintes factores: [3,9-24]
> Factor V de Leiden
> Protrombina G20210A
> PAI 4G/5G (apenas quando em homozigotia e em associação a outro factor)
> Deficiência de antitrombina III
> Deficiência de proteína C
> Deficiência de proteína S
> Aumento do factor VIII
> Hiper-homocisteinémia
> Anticoagulante lúpico
> Anticorpos anti-cardiolipinas
> Anticorpos anti-ß2-glicoproteína-1
Posto isto, verificou-se que a alteração mais prevalente na nossa população de
doentes foi o aumento do factor VIII, seguido da heterozigotia para o factor V
de Leiden.
| GRÁFICO 4 | Resultados
Para além das trombofilias congénitas e dos casos de SAF, foram também
diagnosticados um caso de gamapatia monoclonal, um de neoplasia do pulmão e
outro de cordoma do sacro.
Em resumo, dos 65 doentes a quem foram aplicados os protocolos, em 41 (63,1%)
identificou-se uma trombofilia congénita, dois casos de SAF, um de gamapatia
monoclonal, um de neoplasia do pulmão e outro de cordoma do sacro. Apenas em 19
doentes (29,2%) não se identificou nenhuma trombofilia congénita, SAF ou
neoplasia.
Em termos de orientação ulterior, o doente a quem se diagnosticou a neoplasia
do pulmão foi orientado para Consulta de Pneumologia, o doente do cordoma do
sacro para Consulta de Ortopedia e dos restantes doentes, 49 (75,4%) foram
orientados para a Consulta de Hematologia. Dos doentes orientados para esta
última consulta, 40 (81,6%) tiveram indicação para fazer anticoagulação oral
por um período igual ou superior a 12 meses.
DISCUSSÃO
No nosso estudo observou-se um predomínio de doentes do sexo feminino (71,9%)
provavelmente porque na faixa etária estudada (doentes com idade igual ou
inferior a 50 anos), as mulheres apresentam factores de risco que são
exclusivos do género feminino, ie. a toma de contraceptivos orais e a gravidez.
[25]
Em termos de critérios de internamento, foram internados no nosso Serviço todos
os doentes com TVPs proximais cuja área de residência pertencia aos então
Hospitais da Universidade de Coimbra. Casos de TVPs mais distais, menos graves
e, quando assegurado o devido acompanhamento, efectuaram o tratamento em
ambulatório. Por este motivo, se justifica que a localização mais frequente da
TVP tenha sido a nível ílio-femoral. Dentro das TVPs ílio-femorais, 79,5%
destas envolveram o membro inferior esquerdo, o que está de acordo com a
literatura onde tem sido descrito que estas são cinco vezes mais frequentes à
esquerda do que à direita e que tal se relaciona com a compressão da veia
ilíaca esquerda pelas artérias ilíaca direita e quinta lombar. [26]
Uma elevada percentagem dos doentes (78,7%) apresentava, pelo menos, um factor
de risco e em 14,6% havia história de, pelo menos, um episódio prévio de TVP, o
que reforça a necessidade de apostar nas prevenções primária e secundária desta
entidade que acarreta uma elevada morbi-morbilidade.
Durante o internamento foram diagnosticados cinco tromboembolismos pulmonares,
os quais provavelmente terão já ocorrido sob terapêutica anticoagulante/
fibrinolítica já instituída.
Constatou-se que se realizaram estudos que, à luz dos dados actualmente
disponíveis na literatura, não têm relevância clínica, o que acarretou custos
desnessários e levou a que, após a elaboração deste estudo, se alterassem os
protocolos.
Embora na literatura venha descrito que a trombofilia congénita mais prevalente
na raça branca é a mutação do factor V de Leiden, no nosso estudo esta ocupou a
segunda posição, precedida pelo aumento dos níveis plasmáticos do factor VIII.
Dos doentes a quem foram aplicados os protocolos, apenas em 29,2% não se
identificou nenhuma trombofilia congénita, SAF ou neoplasia. De salientar, mais
uma vez, a elevada percentagem de trombofilias congénitas (63,1%), assim como a
identificação de dois casos (3,1%) de SAF, um (1,5%) de gamapatia monoclonal,
um (1,5%) de neoplasia do pulmão e outro (1,5%) de cordoma do sacro.
Dos doentes estudados, 75,4% foram orientados para a Consulta de Hematologia,
sendo que 81,6% deles tiveram indicação para fazer anticoagulação oral por um
período igual ou superior a 12 meses e, em alguns casos, foram também
convocados os familiares de doentes para realização de estudos para despiste de
trombofilias.
CONCLUSÕES
Tendo em conta a elevada prevalência de polimorfismos genéticos que conferem
risco trombótico acrescido e os não raros casos de SAF e de neoplasias ocultas
presentes nesta população de doentes, considera-se que, apesar dos elevados
custos, se deverá continuar a fazer o despiste deste tipo de patologias. No
entanto, os protocolos deverão ser actualizados periodicamente por forma a
evitar custos desnecessários.