Fístula aorto-cava: Caso clínico
Introdução
As Fístulas Aorto-Cava (FAC) primárias são extremamente raras e estão
associadas a elevada mobi-mortalidade.
Esta patologia foi descrita pela primeira vez por Syme em 18311 e a primeira
cirurgia bem sucedida foi realizada por Cooley et al. em 19542.
Tradicionalmente as FAC primárias contrariamente às secundárias são definidas
pela ausência de manipulação aórtica prévia, ocorrendo em território aórtico
abdominal nativo doente.
As FAC são complicações raras que envolvem menos de 1% de todos os AAA. Mais de
80% das FAC relatadas estão relacionadas com a rotura de AAA, outras possíveis
causas são relativas a situações de trauma penetrante, aneurismas micóticos,
doença de Takayasu e doenças do tecido conjuntivo3.
Cerca de 98% dos doentes que se apresentam com uma FAC, tal como não poderia
deixar de ser, são homens (dada a maior prevalência de AAA no sexo masculino),
que se encontram na 6ª ou 7ª década de vida, com factores de risco
ateroscleróticos como tabagismo e hipertensão4.
Caso clínico
Doente do sexo masculino de 68 anos de idade, com antecedentes de pesados
hábitos tabágicos (75 unidadesmaço-ano), etílicos, hipertensão arterial,
diabetes mellitustipo 2 com atingimento de orgãos alvo, dislipidemia,
insuficiência renal crónica, cardiopatia isquémia com enfarte agudo do
miocárdio em 2006 e submetido a cirurgia de revascularização do miocárdio no
mesmo ano, doença arterial peroférica categoria 2 (classificação Rutherford),
AAA de 5cm (angio-TC realizada 5 meses antes deste episódio) (fig._1). Após
introdução do catéter nos ramos de suprimento da artéria hipogástrica, foi
feita a embolização com 2 HydroCoils (AZUR Peripheral HydroCoil da Ter)
recorreu ao serviço de urgência (SU) do Centro Hospitalar de S. João com
queixas de dores lombares intensas, febre e tosse produtiva, tendo tido alta
medicado com Amoxicilina/Ac. Clavulânico 875/125 mg.
Volta ao SU dois dias depois por agravamento da dor lombar e astenia. Entra na
sala de emergência com estabilidade hemodinâmica, com sinais de edema, palidez
e arrefecimento, não se tendo conseguido palpar os pulsos dos membros
inferiores, dado o edema apresentado. Analiticamente com hiperlactacidémia,
hemoglobina 9,3 g/dL, leucocitose de 20.02 × 10^9/L, neutrofilia 77,5%, PCR -
188 mg/L, IRC agudizada, ureia - 0,77 g/dL e creatinina
- 17 mg/L, o exame sumário de urina (tipo II) demonstrou leucócitos - 50/mL,
eritrócitos - 2627/mL, cilíndros totais
- 19,2/mL, sem imagens sugestivas de condensação pneumónica ao Rx toráx.
Efetuou de seguida uma angio-TC toraco-abdominal (fig._2) que demonstrou
pequeno derrame pulmonar bilateral e um AAA de 6,9 cm com arterialização do
lúmen do lúmen da veia cava inferior (VCI) na fase arterial documentando uma
FAC, sem sinais de hemorragia retro-peritoneal associada.
Foi realizada a sua correção cirurgica urgente por via clássica, com
laparotomia xifo-pubica e clampagem infra-renal da aorta abdominal e das
artérias ilíacas comuns, na sequência de abertura do saco aneurismático, uma
quantidade exuberante de sangue venoso refluia para dentro do saco
aneurismático pela fístula existente. Esta hemorragia foi temporariamente
controlada por compressão digital, identificando-se assim uma fístula de
aproximadamente 20 mm, tendo-se sem sucesso tentado primeiro encerrar a fístula
por sutura pela face interna do saco aneurismático e depois por sutura direta
na parede da VCI. A hemorragia foi prudentemente controlada com recurso a
colocação local de diversos produtos hemostáticos como surgicel® (celulose
oxidada regenerada) e spongostanTM(esponja de gelatina hemostática absorvível).
Uma vez controlado o foco hemorrágico, foi então possível proceder à construção
de um enxerto de interposição aorto-aórtico colocando-se uma prótese de Dacron®
de 20 mm. Durante toda a cirurgia o doente foi politransfundido necessitando de
um total de 7 unidade de glóbulos vermelhos, 6 unidades de plasma fresco
congelado e 8 unidades de plaquetas.
No dia seguinte por agravamento do quadro isquémico dos membros inferiores foi
realizado por via femoral trombectomia mecânica ilio-femoral bilateral, ficando
com pulsos femorais presentes bilateralmente e com bom retorno sanguínio por
ambas as artérias femorais profundas.
Após a cirurgia o doente desenvolve quadro de disfunção multi-orgânica com
disfunção hepática e coagulopatia associada (mais marcada entre o 3º e 7º dias
de internamento) e IRC agudizada, tendo necessitado temporariamente de
hemodiafiltração veno-venosa contínua. Por agravamento do quadro isquémico do
membro inferior direito (MID), o doente apresentou quadro de acidémia e
rabdomiólise marcada, tendo sido instituída terapêutica com HCO3- e
posteriormente realizada por inviabilidade do membro, amputação acima do joelho
ao 15º dia de internamento.
A angio-TC pós-operatória (fig._3) revelou resolução da FAC e bolhas gasosas
peri-enxerto protésico, na região dos produtos hemostáticos colocados para
realizar a hemostase pelo orifício da VCI.
Ao longo de 25 dias de internamento em Unidade de Cuidados Intensivos, o doente
apresentou melhorias progressivas, nomeadamente da função hepato-renal e dos
parâmetros hemodinâmicos. Uma vez efetuado o desmame do suporte aminérgico, da
sedo-analgesia e apresentando transito gastro-intestinal o doente foi
transferido para a enfermaria do serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular.
Ao 27º dia pos-operatório, já na enfermaria, desenvolve infeção do trato
urinário tendo sido instituída antibioterapia empírica endovenosa
(Ceftriaxone), que efetuou durante 2 dias até ser conhecido o resultado
microbiológico das uroculturas, com isolamento Klebsiella Pneumoniae.Dado o
doente apresentar bom estado geral, foi alterada a antibioterapia para cefixima
oral de modo a completar o tratamento da infeção urinária durante mais 6 dias
em regime de ambulatório.
Ficou seguido em consulta de Medicina Física e Reabiliação, tendo-se adaptado
bem à protese colocada no MID (prótese endoesquelética com suspensão por
sucção, esqueleto tubular em duralumínio e joelho com trancador manual),
conseguindo percorrer distâncias de cerca de 1 Km com auxílio de canadianas,
autonomizando-se assim para as atividades da vida diária.
Em Janeiro de 2010 é internado no serviço de Medicina Interna, por quadro de
Gastroenterite e em Novembro do mesmo ano é novamente internado por acidente
vascular cerebral (AVC) isquémico do território vertebrobasilar (artéria
cerebral posterior, ramo occipital).
Visto pela última vez em consulta de Angiologia e Cirurgia Vascular em Novembro
de 2011, morre em Fevereiro de 2012, aproximadamente 3 anos depois da correção
cirurgia da FAC, com 71 anos de idade vítima de carcinoma esofágico
metastizado.
Discussão
A teoria por detrás do desenvolvimento destas fístulas é que a pressão e a
tensão induzida por grandes aneurismas, conduzem a necrose da parede da aorta.
Isso resulta em uma importante resposta inflamatória da adventícia e a
aderência a veias adjacentes, que em última instância levam à criação de uma
fístula5.
Albalate et al. descreve a fisiopatologia por detrás da criação de uma fistula
artério-venosa de alto débito, o que causa uma queda da resistência vascular
periférica, da pressão arterial média (diminuição da perfusão arterial distal),
um aumento da pressão venosa central (causando edema escrotal e dos membros
inferiores) fazendo com que o fluxo sanguínio sistémico diminua, tudo isto
provoca uma situação de insuficiência cardíaca descompensada. Um número de
diversos mecanismos compensatórios tenta manter a pressão de perfusão coronária
e cerebral aumentando a pressão média central, isto é conseguido por aumento do
retorno venoso, da frequência, da contratilidade cardíaca, que conjuntamente
atuam para aumentar o débito cardíaco6.
A apresentação clínica pode ser variável o que pode dificultar o diagnóstico.
Pode-se assim apresentar com sinais e sintomas de uma emergência abdominal,
choque cardiogénico, hipertensão venosa ou hipoperfusão sistémica.
A apresentação clínica típica inclui: Início súbito de dor abdominal, dispneia,
e uma massa abdominal pulsátil, com «frémito semelhante a uma máquina»7. No
entanto, os sintomas parecem estar relacionados com a própria hemodinâmica da
fístula. Nas FAC de alto-débito, sintomas de insuficiência cardíaca e de
hipertensão venosa central súbita sem causa aparente podem ser as únicas
alterações que possam sugerir o diagnóstico8.
A rotura intra-cava de um AAA provoca uma queda súbita da resistência vascular
periférica, com aumento concomitante da pressão venosa central. Isto leva a um
aumento do ritmo cardíaco e volume sistólico, o que resulta em hipertrofia do
miocárdio e em última instância a insuficiência cardíaca. A morte sem qualquer
intervenção ocorre em menos de 2 meses9.
O método tradicional para a sua correção de FAC é a cirurgia aberta, porém esta
está associada a taxas de mortalidade que variam de 16-66%10. A principal
vantagem desta técnica passa por ser mais definitiva e portanto menos sujeita à
necessidade de reintervenção.
Devido à crescente experiência na utilização das novas técnicas endovasculares
existem já alguns casos descritos da sua correção através da colocação de um
endoprótese aórtica, embora dada a raridade e modernidade desta técnica,
permanece sem resultados demonstráveis a longo prazo.
As vantagens do procedimento endovascular incluem menor taxa de complicações
intra e peri-operatórias, menores perdas hemáticas, e parecem ser o futuro modo
preferencial do tratamento de doentes sem AAA (rotos) associados e naqueles em
que se crê estar demasiado instáveis para uma cirurgia aberta.
Em 2009, uma nova abordagem para o tratamento de um doente que apresentava
instabilidade no contexto de uma FAC aguda, complicando um AAA de grandes
dimensões que se encontrava instável para o tratamento endovascular foi
relatado11.
Percebendo que as repercussões hemodinâmicas da fístula estavam a pôr em risco
a vida do doente, Siepe et al. optaram por tratar a fístula através da
colocação de um stent aórtico coberto na VCI. Estes foram bem sucedidos na
redução de pressões venosas centrais de 33 mmHg para 19 mmHg, estabilizando
também a pressão arterial e permitindo o desmame inotrópico rápido. Assim, o
doente pôde suportar a cirurgia aberta de correção de AAA, sem o risco de perda
massiva de sangue. Este teve então alta hospitalar com uma endoprótese na VCI
patente e uma prótese na aorta11.
Vários autores enfatizam a necessidade de operar imediatamente os doente com
FAC.
A abordagem quanto à disseção e manipulação do aneurisma com uma FAC, deve ser
tão delicada quanto possível, a fim de evitar a embolia pulmonar paradoxal
decorrente da libertação de trombo do interior do saco aneurismático para a
VCI. Uma vez que o risco de embolia pulmonar paradoxal não é desprezível poder-
se-á considerar a colação de um filtro na veia cava inferior previamente à
cirurgia. Nestes casos a estabilidade clínica e hemodinâmica do doente ditam
muito desta possível abordagem. Embora a grande maioria dos casos publicados
não tenha efetuado este passo, ele pode porventura desempenhar uma papel
importante e capaz evitando uma complicação de significativa mortalidade.
O controle aórtico deve ser primeiramente realizado e para controlar a
hemorragia venosa proveniente da fístula no interior do saco aneurismático
frequentemente utiliza-se o dedo ou uma compressa. O encerramento da fístula
deve ser tentado inicialmente a partir do interior do saco do aneurisma, com
utilização de monofilamento. Nos casos em que tal não seja possível, a
laqueação da VCI infra-renal e veias ilíacas pode ser aplicada a fim de obter a
tão desejada hemostase12.
As complicações esperadas após a laqueação da VCI incluem edema dos membros
inferiores (30%), trombose venosa profunda recorrente (16%), síndrome da
compressão venosa pélvica e claudicação venosa, embora esta seja bem tolerada
na maioria dos casos13.
A taxa de sucesso relatada na reparação endovascular de fístulas arteriovenosas
abdominal é de cerca de 96%, sem mortalidade a curto prazo14. A mais frequente
complicação relacionada com esta forma de tratamento é o endoleaktipo II, que é
observado em cerca de 22% dos doentes14. Como o endoleak tipo II se origina de
uma sistema venoso de baixa pressão15 (2-8 mmHg), há autores que afirmam que
como é pouco provável o crescimento do saco aneurismático, pode ser efetuada
uma abordagem conservadora do tratamento deste endoleak quando a estabilidade
clínica do doente assim o permita, atingindo um favorável remodeling do saco
aneurismático16.
Devido à persistência do endoleak tipo II e a falta de follow-up a longo prazo
do tratamento endovascular de FAC, outros autores afirmam que a cirurgia aberta
permanece como pedra angular no tratamento desta patologia17.
A abordagem endovascular oferece uma alternativa terapêutica atraente para o
tratamento de FAC, pois não se efetua uma laparotomia, há menos perdas de
hemáticas e é realizada com anestesia local, reduzindo assim complicações pós-
operatórias e proporcionando um menor tempo de internamento, os bons resultado
a curto e médio prazo desta forma de tratamento parecem encorajadores, podendo
mesmo esta abordagem, vir futuramente a desempenhar um papel importante no
tratamento desta rara patologia18,19.
Dado não existirem dados a longo prazo e devido à raridade desta patologia, é
pouco provável que um estudo randomizado venha a existir. Portanto, uma série
de maiores dimensões é necessária para tirar conclusões mais sólidas sobre esta
problemática.
Conclusões
Os autores descrevem um caso clínico raro de um AAA que demonstrou um
crescimento de 1,9 cm em apenas 5 meses e que dada a sua agressividade culminou
na criação de uma FAC.
Pelo seu potencial de devastação e de fatalidade tal como outros sindromes
aórticos agudos, as FAC devem ser abordadas com alto nível de suspeição, tendo
sempre em consideração que a sobrevida destes doentes depende grandemente do
seu estado clínico na admissão, diagnóstico assertivo e pronta resposta
cirúrgica.