Consulta multidisciplinar do pé diabético: avaliação dos fatores de mau
prognóstico
Introdução
A diabetes mellitus (DM) é responsável por 70% das amputações não traumáticas
de membros inferiores e 85% destas são precipitadas por úlceras. O risco de um
diabético desenvolver uma úlcera durante a sua vida é cerca de 25%1.
A úlcera do pé diabético tem etiologia complexa e heterogénea que resulta da
contribuição de múltiplos fatores, sendo o mecanismo mais frequente a tríade
neuropatia-deformidade-trauma repetido2. A cicatrização da lesão vai depender
de fatores da lesão (tamanho, localização, da presença de necrose, gangrena,
infeção), de fatores relativos ao membro inferior (da presença de arteriopatia
periférica) e de fatores relacionados com o doente (idade e comorbilidades)3,4.
A presença de arteriopatia periférica está associada ao agravamento do
prognóstico3---5. O diagnóstico de arteriopatia periférica associa-se à
presença de aterosclerose sistémica severa e extensa, que é responsável pelo
aumento da mortalidade e morbilidade por eventos cardiovasculares,
independentemente dos fatores de risco5.
Em doentes diabéticos, por cada aumento de 1% de hemoglobina glicosilada
(HbA1c) há um aumento correspondente de 26% de arteriopatia periférica6.
As úlceras do pé diabético requerem tratamento prolongado e dirigido e têm
implicações importantes na qualidade de vida dos pacientes e dos seus
cuidadores. A não cicatrização associa-se a um declínio progressivo da
qualidade de vida7. O tratamento está associado a custos significativos para os
serviços de saúde e agrava-se no caso de complicações ou amputação do membro
inferior8,9.
A consulta multidisciplinar do pé diabético do Centro Hospitalar do Porto
Hospital de Santo António, pioneira em Portugal, é uma consulta de acesso
livre, bissemanal, que se dedica especificamente ao tratamento e orientação das
úlceras do pé diabético. É constituída por uma equipa multidisciplinar
incluindo equipa médica de Cirurgia Vascular, Ortopedia, Endocrinologia,
Dermatologia, Fisiatria, Dor Crónica, Microbiologia, Assistente Social,
Enfermagem e Podologia.
O objetivo deste estudo é fazer a caracterização epidemiológica dos utentes da
consulta, estudar o tipo de investigação que foram submetidos, o resultado da
intervenção e avaliação dos fatores que contribuíram para o resultado final.
Material e métodos
Este artigo baseia-se em um estudo observacional retrospetivo das primeiras
consultas realizadas no âmbito da consulta multidisciplinar do pé diabético,
durante o primeiro semestre de 2013. Foi realizada a revisão do processo
clínico e avaliação das características epidemiológicas dos pacientes,
incluindo a idade, sexo, HbA1c e comorbilidades como hipertensão arterial,
dislipidemia, hábitos tabágicos, doença cardíaca isquémica (DCI), doença
cerebrovascular (DCV), nefropatia e doença renal terminal em programa regular
de hemodiálise ou transplante renal. Foi registada a investigação clínica
realizada, meios complementares de diagnóstico, e o resultado final:
cicatrização da lesão, amputação major, não cicatrização após um ano de
seguimento ou morte.
Todos os doentes foram submetidos ao melhor tratamento atual recomendado10,
incluindo cuidados de penso, alívio de pressão, tratamento de infeção com
antibioticoterapia empírica e dirigida, otimização das condições médicas e
glicemia, desbridamento regular das lesões conforme a necessidade e orientação
para estudo vascular e revascularização quando indicado.
Na primeira consulta os doentes são avaliados e os dados inseridos num registo
de primeira consulta protocolado. Com base na primeira consulta são divididos
em 2 grupos, doentes com úlcera neuropática ou úlcera neuroisquémica. O
diagnóstico de doença arterial periférica baseia-se na anamnese, exame objetivo
com palpação de pulsos e exames auxiliares de diagnóstico: Doppler arterial com
índice tornozelo-braço (ITB), pressão de oxigénio transcutânea (TcPO2),
ecoDoppler arterial, angiografia ou angio-TAC. O Doppler arterial e a TcPO2 são
realizados por rotina nos doentes com doença arterial periférica, enquanto os
restantes meios complementares de diagnóstico apenas sob indicação para
eventual revascularização. A caracterização de pé neuropático é realizada pela
presença de pulsos periféricos e alteração da sensibilidade à pressão
pesquisada com o monofilamento de Semmes-Weinstein.
Foi estudada a significância estatística das diferenças encontradas com o teste
Qui2para as variáveis categóricas e One-way ANOVA/teste t de Student para as
variáveis contínuas com um nível de significância definido 0,05.
Resultados
Foram realizadas 361 primeiras consultas multidisciplinares do pé diabético no
período em estudo, 82,3% (n = 297) das quais por ulceração, 16,9% (n = 61)
diabéticos sem ulceração e 0,8% (n = 3) com ulceração, mas não diabéticos. Dos
pacientes com ulceração 31,3% foram classificados como tendo etiologia
predominantemente neuropática e 68,7% classificados com úlceras em pé diabético
neuroisquémico. Excluindo da análise os doentes que abandonaram a consulta ou
foram transferidos (no caso de já estarem a ser seguidos pelo mesmo motivo
noutra consulta da nossa instituição ou caso tivessem sido transferidos para
outra instituição), 168 doentes mantiveram o seguimento. Destes, 60,7% (n =
102) apresentavam ulceração do pé neuroisquémico e 39,3% (n = 66) úlcera do pé
diabético neuropático. A idade média era 66,4 anos, com predominância do sexo
masculino (61,9 vs. 38,1%). A HbA1c média à admissão era 8,3%.
Comparando os 2 grupos, os doentes com diagnóstico de arteriopatia periférica
apresentam idade média superior comparativamente aos doentes com úlcera
neuropática (71 vs. 59,2 anos, p = 0,000) e maior tempo de evolução de
diabetes, mas sem diferença estatisticamente significativa (17,4 vs. 14,6 anos,
p = 0,114). Quanto aos fatores de risco cardiovasculares, há uma maior
prevalência de hipertensão nos doentes com lesões neuroisquémicas (85,3 vs.
56,1%, p = 0,000) e maior prevalência, mas sem diferença estatisticamente
significativa, de dislipidemia (61,8 vs. 59,1%, p = 1,000) e de hábitos
tabágicos (30,4 vs. 25,8%, p = 0,601) (Tabela_1). Os doentes com lesões
neuroisquémicas apresentam maior prevalência de outras lesões de órgão alvo da
aterosclerose: doença cerebrovascular (29,4 vs. 9,1%, p = 0,003) e uma
tendência maior, apesar de sem diferença estatisticamente significativa, de DCI
(22,5 vs. 10,6%, p = 0,095), nefropatia (16,7 vs. 10,6%, p = 0,368) e doença
renal em programa de hemodiálise (10,8 vs. 4,5%, p = 0,252) (Tabela_1).
Dos doentes que mantiveram o seguimento, 78% obtiveram cicatrização das lesões
(com ou sem amputação minor), 7,7% não obtiveram cicatrização da lesão após um
ano de seguimento, 10,1% foram submetidos a amputação major do membro e 4,2%
faleceram durante o seguimento (Tabela_2). A taxa de cicatrização foi superior
no grupo de lesões neuropáticas (89,4 vs. 70,6%, p = 0,004). Os doentes com
arteriopatia periférica apresentaram maior probabilidade de serem submetidos a
amputação major (15,7 vs. 1,5%, p = 0,003) e maior mortalidade durante o
seguimento, apesar de não ter diferença estatisticamente significativa (5,9 vs.
1,5%, p = 0,052). A percentagem de doentes que não obtiveram cicatrização ao
fim de um ano foi semelhante nos 2 grupos (7,6 vs. 7,8%, p = 1,000) (Tabela_2).
A taxa de amputação minor foi significativamente maior no grupo com
arteriopatia periférica (25,5 vs. 3%, p = 0,000).
Quanto à infiuência dos fatores de risco no prognóstico, a presença de
nefropatia infiuencia negativamente a probabilidade de cicatrização (50 vs.
82,6%, p = 0,008) e aumenta o risco de amputação major (29,1 vs. 6,9%, p =
0,008). Os doentes com dependência de terceiros e estado não ambulatório
apresentam também maior risco de serem submetidos a amputação major do membro
inferior (22,9 vs. 6,8%, p = 0,008). Não foi possível demonstrar infiuência com
significância estatística dos restantes fatores de risco avaliados no resultado
final da intervenção.
Dos doentes com arteriopatia, 8% foram submetidos a revascularização cirúrgica
e 19% foram submetidos a intervenção endovascular.
Discussão
A etiologia multifatorial das úlceras do pé diabético torna complexa a previsão
do resultado final das intervenções. Uma abordagem multidisciplinar, abrangendo
os vários contribuintes etiológicos das úlceras do pé diabético, está associada
a uma redução em 40% do total de amputações e de 60% de amputação major11,12.
As consequências das úlceras do pé diabético não se limitam apenas ao membro
inferior, mas também à diminuição da qualidade de vida dos pacientes e dos seus
cuidadores7. Os custos para os serviços de saúde são significativos e aumentam
drasticamente nos casos com mau prognóstico e amputação major pelas
hospitalizações repetidas, reabilitação prolongada e necessidade de apoio
social. A abordagem multidisciplinar das úlceras do pé diabético, atuando na
prevenção e tratamento, mostrou ser custo efetiva reduzindo os custos para os
serviços de saúde, ao reduzir a taxa de amputação8,9.
De acordo com a literatura, a presença de arteriopatia periférica agrava o
prognóstico4,5. Comparando os 2 grupos de doentes, a úlcera do pé diabético na
presença de doença arterial periférica tem menor probabilidade de cicatrização
(70,6 vs. 89,4%, p = 0,004) e risco aumentado de amputação major (15,7 vs.
1,5%, p = 0,003). A mortalidade durante o seguimento foi superior no grupo com
arteriopatia periférica (5,9 vs. 1,5%), mas não se observou diferença
estatisticamente significativa. Não houve diferença na taxa de não cicatrização
em um ano entre os 2 grupos. A nefropatia e a dependência de terceiros foram
também fatores associados ao mau prognóstico das úlceras do pé diabético. A
presença de nefropatia diminuiu a probabilidade de cicatrização e aumentou o
risco de amputação major. De acordo com a literatura, a doença renal é um fator
de risco para o desenvolvimento de arteriopatia periférica e associa-se ao
agravamento do prognóstico5. É também associada ao mau prognóstico e diminuição
de cicatrização das úlceras sem doença arterial periférica, provavelmente por
outros mecanismos como alteração da imunidade e presença de microrganismos
multirresistentes4. A dependência de terceiros aumentou o risco de amputação
major.
A indicação para revascularização cirúrgica ou endovascular tem em consideração
o estado global e comorbilidades do doente, a evolução clínica das úlceras com
lesões que não cicatrizam apesar do tratamento instituído e em exames
auxiliares de diagnóstico (fiuxo monofásico no Doppler contínuo, TcPO2 < 40
mmHg). O ITB apresenta menor importância pela elevada prevalência de artérias
incompressíveis nesta população. Nos dados de referência apresentados nas
guidelines de consenso TASC II relativamente ao destino dos pacientes que se
apresentam com isquemia crítica (independentemente da presença ou não de DM),
cerca de 50% são submetidos a revascularização, 25% apenas tratamento médico e
25% são submetidos a amputação primária. Ao fim de um ano 20% mantêm a isquemia
crítica, 25% resolveram, 25% morreram e 30% foram submetidos a amputação major.
A alta taxa de cicatrização e a menor necessidade de revascularização
apresentada neste estudo explica-se pelo acesso livre à consulta com
diagnóstico de lesões em estádios precoces, pela formação sobre cuidados dos
pés e tipo de calçado, pelos cuidados especializados multidisciplinares,
incluindo podologia com alívio de pressão em lesões plantares e cuidados de
enfermagem diferenciados.
Relativamente aos dados de referência do estudo European Study Group on
Diabetes and the Lower Extermity (Eurodiale4), um estudo prospetivo
multicêntrico que avaliou 1.088 pacientes com úlceras do pé diabético, as
características epidemiológicas e o resultado final da intervenção, podemos
verificar que nesse estudo 77% obtiveram a cicatrização completa (com ou sem
amputação minor), 12% mantinham-se em seguimento após um ano, 5% foram
submetidos a amputação major do membro inferior e 6% faleceram durante o
seguimento. Relativamente aos doentes com doença arterial periférica, 69%
atingiram a cicatrização (incluindo cicatrização primária ou com amputação
minor), comparável aos nossos resultados com 70,6% de cicatrização. Neste
estudo foram identificados 8 fatores que contribuíram para a não cicatrização:
idade avançada, sexo masculino, dimensão da úlcera, insuficiência cardíaca,
incapacidade de deambulação, insuficiência renal terminal, neuropatia
periférica e arteriopatia periférica. Comparativamente aos dados obtidos no
presente estudo, não foi possível demonstrar a infiuência com significância
estatística do sexo do paciente, da idade avançada ou da insuficiência cardíaca
no resultado final da intervenção.
Conclusão
O tratamento eficaz das úlceras do pé diabético necessita uma abordagem
multidisciplinar, intervindo nos vários componentes etiológicos. A etiologia da
úlcera do pé diabético é multifatorial e a intervenção deve ser dirigida aos
vários contribuintes, sendo fundamental o tratamento médico, os cuidados
podológicos com alívio da pressão, cuidados de enfermagem e o ensino dos
doentes. Desta forma muitas amputações podem ser prevenidas. A doença arterial
periférica, a insuficiência renal e a dependência de terceiros contribuem para
o mau prognóstico das úlceras do pé diabético.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais. Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados. Os autores declaram ter seguido os protocolos do
seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes.
Direito à privacidade e consentimento escrito. Os auto-res declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver Conflito de interesses.