Fístula da artéria ilíaca para o cego: a propósito de um caso clínico
Introdução
As fístulas arterio-entéricas são entidades pouco frequentes e classificam-se
em primárias e secundárias, sendo as últimas mais frequentes, com uma
incidência de 0,9%1.As fístulas primárias representam uma comunicação entre uma
artéria nativa e o trato gastrointestinal, enquanto as fístulas secundárias
representam uma comunicação entre uma artéria reconstruída (quer por doença
aneurismática quer por doença oclusiva) e o trato gastrointestinal. A fístula
aorto-entérica secundária é o exemplo mais comum, representando um desafio
complicado para o cirurgião vascular. Quando não tratada, o desfecho é quase
sempre invariavelmente fatal. No entanto, o tratamento cirúrgico ainda se
associa a inúmeras complicações apesar dos avanços na medicina e cuidados
intensivos, com uma taxa de morbilidade e mortalidade elevadas2. A fístula
aorto-entérica primária da doença de Crohn é mais frequente do que a fístula
ílio-cecal secundária, uma entidade não descrita até agora na literatura. No
entanto, encontram-se descritos alguns casos de fístulas ílio-cecais primárias
relacionadas com doença aneurismática3. Os autores tiveram a oportunidade de
tratar uma fístula ílio-cecal secundária e a propósito do caso clínico discutem
alguns aspetos do seu tratamento.
Caso clínico
Um doente do sexo masculino, de 78 anos de idade, anticoagulado com varfine por
fibrilação auricular, recorreu ao serviço de urgência por hematoquézia e
prostração, tendo sido constatada na sala de reanimação hipoglicemia grave (BMT
29), revertida com solução de glicose hipertónica.
À entrada apresentava-se com GSC 15, em choque hipovolémico e séptico, dor à
palpação dos quadrantes inferiores do abdómen, sem defesa. Analiticamente com
Hb 7,9, INR 5,6, PCR 25, creatinina 3,8 e em acidemia e acidose respiratória.
Por episódio de hematoquézia enquanto estava a ser realizada a avaliação
inicial, procedeu-se ao toque retal que revelou hematoquézias abundantes e
fezes na ampola, tendo-se excluído a presença de massas. Foi submetido a
entubação nasogástrica com saída de conteúdo bilioso, sem evidência de
hemorragia ativa.
O doente realizou TC abdomino-pélvica que sugeria hematoma com bolhas aéreas a
envolver a artéria ilíaca externa (AIE) direita e distensão de todo o cólon com
hiporrealce parietal sugerindo isquemia. As artérias mesentéricas superior e
inferior e hipogástricas encontravam-se permeáveis. Não se visualizou contraste
no interior do cólon (fig._1A_e_B). Foi decidida inicialmente a estabilização
do doente, reversão da coagulopatia e iniciar antibioterapia de largo espectro,
pelo que foi internado na unidade de cuidados intensivos, onde foi transfundido
com unidades de concentrado eritrocitário, plasma e complexo de protrombina
humano.
Foi discutido o caso com o gastroenterologista sobre a eventual vantagem na
realização de colonoscopia, que foi considerada apresentar uma relação risco/
benefício muito elevada, pelo que não foi realizada.
Como antecedentes relevantes apresentava HTA, DPOC grave (oxigenoterapia de
longa duração e ventilação não invasiva noturna), fibrilhação auricular
crónica, miocardiopatia dilatada etanólica, obesidade, neoplasia vesical
operada por via endoscópica 5 anos antes e internamento no serviço de cirurgia
vascular por isquemia crítica do membro inferior direito (MID) 3 meses antes,
tendo realizado angiografia via femoral que revelou oclusão segmentar da AIE
direita (8 mm de diâmetro acima e abaixo da lesão), estenose da artéria femoral
superficial no terço médio da coxa e doença tibioperoneal com presença de um
vaso único (artéria tibial anterior) até ao pé. Procedeu-se a angioplastia da
artéria peroneal e da AFS com balão e pré-dilatação da lesão da AIE (com balão
de 4 x 60 mm), seguida de colocação de stentautoexpansível (7 x 40 mm), com bom
resultado na angiografia de controlo. Manteve-se com um antiagregante
(clopidogrel) por se encontrar anticoagulado.
Por manutenção do quadro de choque hemorrágico e por suspeita de possível
rotura de víscera oca foi proposta laparotomia exploradora, tendo sido
realizada 12 h após a admissão pela equipa de cirurgia geral. Constatou-se
presença de líquido ascítico seropurulento e sangue livre preenchendo a
cavidade abdominal, hipoperfusão generalizada do cólon, apresentando múltiplas
áreas de necrose parietal (fig._2) e hematoma retrocecal com envolvimento dos
vasos ilíacos direitos. Após libertação do cego, foi identificada presença de
hemorragia arterial muito abundante, com origem na AIE (fig._3), exteriorização
do stente presença de fístula ílio-cecais. Nessa altura foi contactada a
cirurgia vascular que procedeu à laqueaçãodaAIE com prolene 0 e sutura da zona
da erosão. Com a hemorragia controlada, optou-se primeiramente pela realização
da colectomia total com encerramento do íleo e transição colorrectal com GIA,
deixando os topos abandonados intra-abdominalmente, revisão da hemostase,
tamponamento da loca do hematoma com compressas e laparostomia com sistema de
ventrofix. Posteriormente, foi construído o bypassfemoro-femoral esquerdo-
direito com prótese de PTFE anelada de 8 mm, para revascularização do MID.
Às 48 h procedeu-se a relaparotomia e encerramento da parede abdominal.
Intercorrência de evisceração e hemorragia digestiva alta no D12 de pós-
operatório, realizando endoscopia digestiva alta que se revelou normal e
cintigrafia que revelou ansa sangrante do intestino delgado. O doente foi
operado pela terceira vez para encerramento da parede abdominal com posterior
necessidade de internamento nos cuidados intensivos por choque séptico e
falência multiorgânica, com óbito no D15 de pós-operatório.
Discussão
Não existem relatos na literatura de fístulas ílio-cecal de etiologia
secundária, assumindo-se que se trata de uma complicação extremamente rara. A
curiosidade do caso é relativa a tratar-se de uma complicação precoce, ao fim
de 3 meses, de um procedimento de revascularização arterial endovascular por
doença oclusiva da AIE. Foram descritos até agora 20 casos de fístulas aorto-
entéricas4após procedimentos endovasculares de correção de aneurismas da aorta
abdominal (EVAR), sendo também no caso apresentado a hemorragia e dor abdominal
os sintomas de apresentação. Dado o curto intervalo de tempo desde
o stentingilíaco externo até ao desenvolvimento desta complicação, que
normalmente ocorre apenas ao fim de 2-6 anos, assume-se que a etiologia desta
fístula foi a infeção, introduzida no momento da primeira cirurgia ou através
de bacteriemia associada à erosão do stentnuma parede arterial fragilizada. A
primeira prioridade no tratamento desta entidade é preservar a vida do doente e
a segunda é a preservação do membro. Neste doente, dada a conspurcação
abdominal, com presença de exsudado seropurulento e grande destruição da parede
anterior da AIE, optou-se pela revascularização extra-anatómica com
bypassfemoro-femoral esquerdo-direito após laqueação da AIE e da colectomia
total. As comorbilidades do doente e a localização da fístula poderiam pender
para a revascularização endovascular com um stentcoberto4, dado que poderia
servir de ponte para uma revascularização convencional assim que o doente
estivesse estável e a infeção controlada ou mesmo tendo em conta a curta
esperança média de vida do doente, uma vez que essa alternativa tem resultados
razoáveis no primeiro ano. No entanto, neste caso específico, a cirurgia
vascular interveio após a laparotomia com o abdómen exposto e em hemorragia
ativa por destruição arterial extensa, inviabilizando a abordagem endovascular.
Conclusão
O desenvolvimento de uma fístula entre uma grande artéria e o intestino é
incomum, sendo normalmente um evento catastrófico, sendo as secundárias, como
neste caso, as mais frequentes.
A cirurgia é a única opção de tratamento com potencial sucesso, sendo urgente
sempre que coexiste choque hemorrágico.
Várias alternativas terapêuticas foram descritas para as fístulas aorto-
entéricas, nomeadamente a excisão do enxerto sem revascularização associada nos
casos de doença oclusiva e extensa colateralidade, revascularização in situcom
novo enxerto protésico (criopreservados, revestidos com antibiótico ou prata),
reconstrução aorto-ilíaca com veia (femoro-popliteia), revascularização extra-
anatómica e reparação endovascular.
Neste doente, o tratamento endovascular seria uma opção a considerar através da
exclusão com stentcoberto, pelas comorbilidades que apresentava e baixa
esperança média de vida. No entanto, a clínica de choque séptico associada a
conspurcação abdominal e a destruição arterial extensa com a exteriorização do
stentnão permitia outra abordagem senão a convencional (laqueação da artéria e
revascularização extra-anatómica).
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta investigação
não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os autores declaram ter recebido
consentimento escrito dos pacientes e/ ou sujeitos mencionados no artigo. O
autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interesses
Os autores declaram não haver conflito de interesses.