Degenerescência aneurismática na doença de Von Recklinghausen
Introdução
A doença de Von Recklinghausenou neuroï¬bromatose tipo I é uma facomatose de
transmissão autossómica dominante com expressão variável e incidência de
um em cada 3.000 indivÃduos1. Associa-se à mutação do gene onco-supressor
da neuroï¬bromina 1 (NF1) no cromossoma 17 (17q11.2)2.
Apresenta expressão clÃnica heterogénea nos tecidos de origem mesodérmica e
da crista neural, sendo os estigmas cutâneos clássicos como manchas café au
laite neuroï¬bromas frequentes1.
A arteriopatia é incomum, tendo sido descritas lesões estenosantes e
aneurismáticas nos diversos territórios3. O termo «Vasculopatia NF1» tem
sido empregue para descrever as múltiplas anomalias vasculares, arteriais e/ou
venosas, que podem ser observadas na doença de Von Recklinghausen4.
Os autores divulgam o caso clÃnico pela sua raridade, após revisão do
processo e pesquisa das palavras-chave Von Recklinghausen, neuroï¬bromatosise
aneurysmsna base de dados PubMed.
Caso clÃnico
Homem de 63 anos de idade, fumador, hipertenso e com diagnóstico clÃnico
prévio de doença de Von Recklinghausen, foi observado em consulta vascular
por claudicação gemelar esquerda para 500 metros de marcha, não
incapacitante e de instalação progressiva desde há um ano.
Objetivamente apresentava massas pulsáteis, expansÃveis e indolores Ã
palpação nos trajetos aórtico infrarrenal (5 cm de diâmetro), femoral
bilateral e poplÃteo direito. O exame vascular mostrou ausência de pulso
poplÃteo e distais no membro inferior esquerdo e apenas pulso tibial posterior
no pé direito.
O estudo por ecoDopplerevidenciou doença multianeurismática dos sectores
aorto-ilÃaco, femoral (tipo I de 3cm de diâmetro) e poplÃteo bilateralmente.
O aneurisma poplÃteo esquerdo (2 cm de diâmetro) encontrava-se ocluÃdo e o
direito permeável, com trombo mural (2,9 cm de diâmetro) e doença tÃbio-
peroneal associada.
O estudo complementar pré-operatório por angioTC revelou aneurisma da aorta
infrarrenal (5,7 cm de diâmetro) com envolvimento ilÃaco primitivo bilateral,
de invulgar anatomia, destacando-se a presença de múltiplas artérias renais
acessórias (ï¬g._1).
A avaliação por ecocardiograma e provas de função respiratória mostraram
boa função sistólica global, sem áreas de hipocinesia ou valvulopatia
relevante e obstrução brônquica-bronquiolar ligeira.
O estudo global e especÃï¬co permitiu determinar um risco operatório baixo a
médio, pelo que o doente foi proposto para tratamento cirúrgico convencional
da doença aneurismática proximal e posteriormente distal.
Por laparotomia mediana procedeu-se a ressecção parcial de aneurisma aorto-
ilÃaco e femoral esquerdo por interposição de prótese bifurcada (Dacron®18
mm) em posição aorto-ilÃaca primitiva distal direita-femoral comum distal
esquerda. O eixo ilÃaco esquerdo foi excluÃdo (anastomose femoral esquerda
termino-terminal) e manteve-se a permeabilidade da artéria hipogástrica
direita. Foram reimplantadas no corpo da prótese 2 artérias renais
acessórias e a artéria mesentérica inferior (ï¬g._2). O aneurisma femoral
direito foi ressecado e uma prótese foi interposta (Dacron®9 mm) em posição
femoral comum (ausência de envolvimento aneurismático da artéria femoral
profunda).
O pós-operatório complicou-se subitamente às 48 horas por choque
hipovolémico em contexto de deiscência da anastomose de uma das artérias
renais acessórias reimplantadas (ï¬g._3). O doente foi reoperado e a
hemóstase assegurada por suturas reforçadas com «pledgets».
O estudo histopatológico da parede aneurismática mostrou alterações
degenerativas compatÃveis com aterosclerose avançada, não se veriï¬cando os
aspetos tÃpicos de neuroï¬bromatose.
Cerca de 6 meses após a reconstrução proximal foi submetido a tratamento do
aneurisma poplÃteo direito através da laqueação/exclusão e bypassfemoral
superï¬cial-poplÃtea infragenicular com veia safena interna ipsilateral
invertida.
Aos 9 meses de «follow-up» o doente mantém-se assintomático, encontrando-se
os procedimentos de revascularização permeáveis e em boa condição (ï¬g.
4). Será objeto de estudo por angioTC toraco-abdominal aos 12 meses e
posteriormente de 5 em 5 anos, além de exame clÃnico e ecoDopplerarterial dos
membros inferiores anual.
Discussão
A doença de VonRecklinghausenou neuroï¬bromatose tipo I foi inicialmente
descrita em 18825. Apresenta transmissão autossómica dominante com expressão
variável e incidência de um em cada 3.000 indivÃduos1. Associa-se Ã
mutação do gene onco-supressor da NF1 no braço longo do cromossoma 17
(17q11.2)2. A perda da sÃntese da NF1 conduz ao aumento da sinalização
mitogénica e subsequente proliferação celular4.
A doença insere-se no espectro das facomatoses, doenças responsáveis por
alterações neurocutâneas, com envolvimento preferencial da pele, olhos e
encéfalo, sendo caracterÃsticas as manchas café au lait, os neuroï¬bromas
benignos e os hamartomas da Ãris6. O prognóstico da doença é determinado
pela presença de tumores cerebrais, nomeadamente astrocitoma e schwannoma
maligno, sendo a causa de morte em 72% dos indivÃduos1.
O envolvimento vascular foi divulgado por Reubi em 1945, com a descrição de
diferentes tipos de lesão vascular, dependentes do diâmetro do vaso
afectado7.
O termo «Vasculopatia NF1» tem sido empregue para descrever as múltiplas
anomalias vasculares arteriais, venosas ou arteriovenosas, que podem estar
presentes na doença2,4. A prevalência da vasculopatia em algumas séries
clÃnicas foi de 0,4-6,4%, no entanto, pode estar subestimada, pois a maioria
das lesões são assintomáticas e de difÃcil diagnóstico clÃnico2,4.
Greene descreveu a displasia do músculo liso (mesodérmica) e a invasão
neuroï¬bromatosa como os principais mecanismos de lesão vascular na
ï¬bromatose8. As lesões podem ser estenosantes ou aneurismáticas, nos mais
diversos territórios.
Oderich concluiu que o tipo, localização e histopatologia diferia com a idade
dos doentes. Na sua série, a lesão vascular predominante foi renal (44%). As
lesões estenosantes na «Vasculopatia NF1» não parecem envolver a origem das
artérias, nomeadamente renais e mesentérica, particularidade distinta da
aterosclerose. Os aneurismas da aorta ascendente e toraco-abdominal foram mais
frequentes que os da aorta infrarrenal. Nos doentes com menos de 50 anos
predominaram as estenoses ou aneurismas das artérias aorta, renais,
mesentérica e carótidas com tendência para a presença de displasia
mesodérmica no estudo patológico, enquanto os mais velhos apresentaram
sobretudo aneurismas aórticos com aspetos caracterÃsticos de aterosclerose9.
O doente cujo caso clÃnico descrevemos apresentava os estigmas de doença
cutânea caracterÃsticos da doença de Von Recklinghausen, nomeadamente
neuroï¬bromas e manchas café au lait. O estudo histopatológico foi
compatÃvel com processo degenerativo aterosclerótico, não mostrando os
aspetos clássicos de neuroï¬bromatose, facto previamente constatado por
Oderich no grupo de doentes mais idosos.
A arteriopata predominante foi a aneurismática, envolvendo os sectores aorto-
ilÃaco, femoral e poplÃteo bilateralmente veriï¬cando-se arteriomegalia nos
segmentos não-aneurismáticos. O padrão descritoéode doença
multianeurismática tipo III da classiï¬cação de Hollier10.
A doença arterial exprimiu-se através de claudicação gemelar do membro
inferior esquerdo por trombose de aneurisma poplÃteo e foi a investigação
complementar que permitiu o diagnóstico da doença aneurismática aórtica
assintomática, com impacto relevante no prognóstico do doente.
A sobrevida dos doentes com neuroï¬bromatose tipo é inferior ao da
população em geral, sendo a doença vascular a segunda causa de morte após
as neoplasias malignas11. Alguns autores sugeriram o rastreio imagiológico da
doença vascular oculta, pelo seu potencial impacto negativo na sobrevida,
estando descritos casos de rutura de aneurismas aórticos e viscerais
previamente desconhecidos12,13.
Oderich defende que as indicações para o tratamento dos aneurismas não devem
ser distintas daquelas adotadas para a população em geral, nomeadamente
diâmetro máximo de 5,5 e 6 cm, respetivamente, para aneurismas da aorta
abdominal e toraco-abdominal9. No entanto, a conhecida fragilidade da parede
arterial poderia, eventualmente, justiï¬car a indicação para intervenção
mais precoce, à semelhança do que se veriï¬ca na sÃndrome de Marfan.
A raridade da «Vasculopatia NF1» e suas particularidades podem tornar
difÃcil a deï¬nição das estratégias cirúrgicas a adotar.
A difÃcil dissecção cirúrgica associada a hemorragia profusa dos tecidos
perivasculares bem como a fragilidade da parede arterial que complica a
realização das anastomoses têm sido descritas14,15. Estes aspetos aumentam a
complexidade da intervenção cirúrgica e a sua morbimortalidade associada.
A intervenção endovascular torna-se atrativa, sobretudo em contexto de rutura
de aneurismas aórticos e viscerais, tendo sido descritos casos de
implantação de «stents» cobertos e endopróteses aórticas13,16.
O «stress» parietal exercido pelos «stents» e os mecanismos fÃsicos de
ï¬xação e «sealing» das endopróteses aórticas em artérias de frágil
parede podem conceptual-mente associar-se a complicações relevantes. Falcone
e Park descreveram pseudoaneurismas aórticos provocados por lesões parietais
associadas às extremidades das endopróteses implantadas para tratamento de
aneurismas aórticos na doença de Von Recklinghausen16,17.
Optámos por intervenção cirúrgica convencional no caso que apresentamos
pela idade relativamente jovem, ausência de comorbilidades relevantes e
presença de particularidades anatómicas que diï¬cultariam o tratamento
endovascular (múltiplas artérias renais acessórias e aneurismas femorais
bilaterais).
Constatámos intraoperatoriamente hemorragia difusa perivascular associada Ã
dissecção e fragilidade da parede arterial. Além das recomendações de
Oderich et al.9para adoção de técnica de dissecção não traumática e
«clamps» vasculares «protegidos», sugerimos o reforço hemostático das
anastomoses («pledgets/strips» de Teï¬on®ou cola biológica).
Conclusão
A «Vasculopatia NF1» é uma entidade clÃnica rara, constituindo um desaï¬o
diagnóstico e terapêutico.
A doença vascular, frequentemente assintomática, é uma causa de morte
relevante na doença de Von Recklinghausen, pelo que se deve ponderar a
implementação de um programa de rastreio vascular neste grupo de doentes.
O envolvimento vascular foi descrito nos mais distintos territórios, estando
múltiplas opções terapêuticas disponÃveis. A reconhecida fragilidade da
parede arterial associada à hemorragia perivascular profusa durante a
dissecção aumentam a complexidade da intervenção cirúrgica convencional,
tornando-se a abordagem endovascular atrativa.
O caso clÃnico descrito apresenta a cirurgia convencional como uma opção
segura e eï¬caz em contexto de degenerescência multianeurismática na doença
de Von Recklinghausen, num doente sem risco operatório elevado, com bom
resultado a curto e médio prazo.
Responsabilidades éticas
Proteção de pessoas e animais.Os autores declaram que para esta
investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Conï¬dencialidade dos dados.Os autores declaram que não aparecem dados de
pacientes neste artigo.
Direito à privacidade e consentimento escrito.Os auto-res declaram que não
aparecem dados de pacientes neste artigo.
Conï¬ito de interesses
Os autores declaram não haver conï¬ito de interesses.
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*Autor_para_correspondência:
Correio eletrónico:pmalvesmartins@hotmail.com (P. Martins).
Recebido a 19 de agosto de 2014;
Aceite a 14 de outubro de 2014
DisponÃvel na Internet a 7 de novembro de 2014