Desparasitação intestinal sistemática em idade pediátrica: uma revisão baseada
na evidência
INTRODUÇÃO
Os parasitas gastrointestinais são mais prevalentes em países da África
Subsariana, Ásia, América Latina e Caribe, devido ao clima quente e húmido, às
más condições higieno-sanitárias (nomeadamente a ausência de rede de
fornecimento de água e saneamento básico) e frequente sobrelotação das
habitações.1,2 Na América do Norte e Europa estas parasitoses são mais
prevalentes em imigrantes e refugiados.1
Os vários microrganismos que podem parasitar o tracto gastrointestinal são
classificados em dois grandes grupos: os protozoários e os helmintas.1,3 No
entanto, o alvo da desparasitação intestinal com fármacos são os helmintas.
Dentro deste grupo heterogéneo os mais prevalentes são os Enterobius
vermicularis (oxiúrios) e os helmintas transmitidos pelo solo (Ascaris
lumbricoides, Trichuris trichiuria, Ancylostoma duodenale, Necator
americanus).1,4,5
Estima-se que 4,5 mil milhões de pessoas estejam em risco de sofrer uma
infecção por helmintas transmitidos pelo solo em todo o mundo.4 As estimativas
apontam para mil milhões de pessoas infectadas por Ascaris lumbricoides, 795
milhões por Trichuris trichiura e 740 milhões por Ancylostoma duodenale e
Necator americanus.6
Actualmente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda a desparasitação
intestinal sistemática em comunidades com prevalência de infecção intestinal
por helmintas transmitidos pelo solo superior a 20%. Esta deve ser realizada
uma vez por ano em comunidades com prevalência entre 20 e 50% (baixo risco) e
duas vezes por ano quando a prevalência é superior a 50% (alto risco).7 Os
poucos estudos epidemiológicos portugueses encontrados revelam uma taxa de
infecção intestinal baixa, com valores de prevalência de parasitose intestinal
entre os 3,4% e os 19% (Quadro_I).8-11 A prevalência de parasitose intestinal
por helmintas varia entre os 0% e os 5,9% (Quadro_I). No entanto, este valor
pode estar subestimado, uma vez que na maioria dos estudos foi utilizado o
exame parasitológico de fezes como meio de diagnóstico e não foi incluído o
teste da fita adesiva ou teste de Graham, que é o método considerado de eleição
para o diagnóstico da infecção por Enterobius vermiculares.8-11
A intensidade da infecção (número de parasitas presentes no tracto
gastrointestinal) mede-se através do número de ovos por grama de fezes e está
directamente relacionada com a morbilidade destas parasitoses.2 As infecções
ligeiras são frequentemente assintomáticas enquanto as graves acarretam elevada
morbilidade, com atraso do desenvolvimento estaturo-ponderal e cognitivo,
deficiências nutricionais e anemia.4 A infecção por helmintas transmitidos pelo
solo é considerada uma das principais causas mundiais de atraso do
desenvolvimento físico e intelectual.2
É frequente na prática diária ser-se confrontado com solicitações de prescrição
sistemática de desparasitantes intestinais. Da mesma forma, alguns médicos têm
a prática da «desparasitação intestinal por rotina». No entanto, as doses e
posologias habitualmente utilizadas nesta não são eficazes contra todos os
helmintas e os alvos-terapêuticos são sobretudo o Enterobius vermicularis, a
Ascaris lumbricoides, o Trichuris trichiuria, o Ancylostoma duodenale e o
Necator americanus.3,12,13
Desta forma, é fundamental conhecer qual a melhor evidência disponível sobre o
benefício desta intervenção. Neste contexto, foi efectuada uma revisão baseada
na evidência (RBE), com o objectivo de determinar se a desparasitação
intestinal sistemática com anti-helmínticos, em idade pediátrica, influencia o
desenvolvimento estaturo-ponderal, cognitivo e o aproveitamento escolar e a
morbimortalidade.
MÉTODOS
Foi efetuada uma pesquisa, nas bases de dados Medline, Guidelines Finder,
National Guideline Clearinghouse, Canadian Medical Association Infobase, The
Cochrane Library, DARE, Bandolier, TRIP, Índex de Revistas Médicas Portuguesas
e publicações da OMS, de revisões sistemáticas, meta-análises, ensaios clínicos
controlados e aleatorizados e normas de orientação clínica. Foram também
avaliadas, quanto à sua pertinência, as «citações relacionadas» da Pubmed.
Utilizaram-se os termos MeSH: albendazole, mebendazole, pyrantel pamoate. Foram
seleccionados os artigos publicados entre 1 de Janeiro de 2000 e 31 de Março de
2011, em inglês, espanhol e português. No Índex de Revistas Médicas Portuguesas
a pesquisa foi feita com a combinação dos termos da lista dos Descritores em
Ciências da Saúde, usando os descritores portugueses: albendazol, mebendazol e
pamoato de pirantel.
Foram critérios de inclusão:
• População: Indivíduos com idade inferior a 18 anos de idade.
• Intervenção: Desparasitação intestinal sistemática com fármacos anti-
helmínticos.
• Comparação: Fármacos anti-helmínticos versus ausência de intervenção ou
placebo.
• Resultados: Desenvolvimento estaturo-ponderal, desenvolvimento cognitivo,
aproveitamento escolar e morbimortalidade.
A robustez metodológica dos ensaios clínicos incluídos foi avaliada utilizando
a escala de Jadad.14 A qualidade dos estudos e a força de recomendação foram
avaliadas utilizando a escala de Strength of Recommendation Taxonomy (SORT) da
American Family Physician.15
RESULTADOS
Da pesquisa obtiveram-se 746 artigos. Destes, 12 preencheram os critérios de
inclusão: três revisões sistemáticas, uma meta-análise, quatro ensaios clínicos
e quatro normas de orientação clínica. Foram excluídos os artigos repetidos, os
não concordantes com os objectivos ou os que não cumpriam os critérios de
inclusão. Também foram excluídos os ensaios clínicos controlados e
aleatorizados incluídos nas meta-análises e revisões sistemáticas (Figura_1).
De forma a facilitar a interpretação optou-se por analisar os resultados
obtidos separadamente para cada um dos objectivos desta RBE: 1) Desenvolvimento
estaturo-ponderal; 2) Desenvolvimento cognitivo e aproveitamento escolar e 3)
Morbimortalidade. Os artigos encontram-se resumidos em relação às suas
principais características nos Quadros_II e IV.
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1) DESENVOLVIMENTO ESTATURO-PONDERAL
A meta-análise de Hall et al (2008), concluiu que a desparasitação intestinal
sistemática em áreas com uma prevalência de infecção intestinal por nemátodos
superior a 50% originava uma melhoria significativa no ganho de peso e no
crescimento. Observou-se um aumento de 0,210 kg no peso [Intervalo de Confiança
(IC) 95%: 0,17-0,26, p<0,001], um aumento de 0,11 cm na altura (IC 95%: 0,03-
0,19, p=0,01) e um aumento de 0,3 cm na circunferência média do braço (IC 95%:
0,23-0,37, p<0,001).16 Os estudos incluídos nesta meta-análise apresentam
heterogeneidade clínica e estatística, pelo que lhe foi atribuído um nível de
evidência (NE) 2. A revisão sistemática, realizada por um grupo de trabalho da
Cochrane (2007), constatou a existência de uma melhoria significativa no ganho
de peso (0,34 kg, IC 95%: 0,05-0,64, p=0,024) após uma dose de fármacos anti-
helmínticos. No entanto, não houve benefício estatisticamente significativo na
altura (p=0,72) e na circunferência média do braço (p=0,079) após uma dose de
fármaco. O mesmo se verificou em relação ao peso (p=0,51) e altura (p=0,45) com
a administração de múltiplas doses (Quadro_II).17 Os estudos incluídos nesta
revisão sistemática também apresentam heterogeneidade clínica e estatística,
pelo que lhe foi atribuído um NE 2.
O ensaio clínico de Awasthi et al (2008), mostrou um aumento de peso médio de
0,36 kg (p=0,0007) em crianças indianas tratadas com albendazol, com ganho mais
evidente nas crianças desnutridas. Aos dois anos de tratamento verificou-se um
aumento no peso de aproximadamente 35%. Não houve benefício estatisticamente
significativo na estatura do mesmo grupo (p=0,11) (Quadro_II).18 Este é um
estudo de qualidade limitada por ter sido efectuado sem dupla ocultação (Quadro
III), pelo que lhe foi atribuído um NE 2.
Num ensaio clínico controlado e aleatorizado, realizado por Kirwan et al
(2010), em áreas da Nigéria endémicas para malária e com prevalência de
infecção por helmintas transmitidos pelo solo superior a 50%, não se encontrou
benefício no crescimento (peso e altura) com a administração sistemática de
albendazol (Quadro_II).19 Apesar de ser um estudo de boa qualidade (Quadro
III), o período de follow-up foi inadequado pelo que foi classificado com um NE
2.
O ensaio clínico controlado e aleatorizado realizado no Uganda, por Elliot et
al (2007), não encontrou evidência de benefício no peso (Quadro_II).20 Este
ensaio clínico é de boa qualidade (Quadro_III) pelo que foi classificado com um
NE 1.
Em 2006, a OMS publicou um manual intitulado «Preventive chemotherapy in human
helminthiasis» (Quadro_IV), no qual defende a diminuição da incidência de
atraso do crescimento com a desparasitação intestinal para helmintas
transmitidos pelo solo.7 Este manual é baseado na opinião de peritos pelo que
tem um NE 3.
2) DESENVOLVIMENTO COGNITIVO E APROVEITAMENTO ESCOLAR
Na revisão sistemática da Cochrane (2007) não foi demonstrado benefício no
aproveitamento escolar nem nos testes cognitivos (NE 2).17 O ensaio clínico
controlado e aleatorizado de Elliot et al (2007) também não mostrou benefício
da desparasitação intestinal sistemática no desenvolvimento psico-motor ou da
linguagem (NE 1).20 Na sua publicação «Preventive chemotherapy in human
helminthiasis» (2006), a OMS defende que a desparasitação intestinal dirigida a
helmintas transmitidos pelo solo melhora a capacidade cognitiva e diminui o
absentismo escolar e laboral (NE 3).7
3) MORBIMORTALIDADE
A OMS defende que a desparasitação intestinal dirigida a helmintas transmitidos
pelo solo diminui a morbilidade, a fadiga crónica e o absentismo escolar e
laboral (NE 3).7 Em relação ao benefício da desparasitação intestinal
sistemática na diminuição de doenças sistémicas, o ensaio realizado na Nigéria,
por Kirwan et al, verificou que o albendazol está associado a um menor aumento
da prevalência da infecção por Plasmodium que o grupo de placebo (p=0,002) mas
não houve evidência de benefício no número de episódios de malária (p=1)
(Quadro_II) (NE 2).19 O ensaio clínico controlado e aleatorizado de Elliot et
al (2007) verificou, no ramo do estudo sujeito a intervenção, uma maior
incidência de eczema, sem evidência de diminuição da incidência de pneumonia,
malária ou tuberculose (NE 1).20
A meta-análise de Hall et al (2008) não mostrou melhoria significativa dos
níveis de hemoglobina (Hb) (p=0,37) (NE 2)16 e a revisão sistemática, realizada
por Smith et al, objectivou um aumento de concentração média de Hb no ramo do
estudo sujeito a tratamento.21 Este aumento foi de 1,89g/L (IC 95%: 0,33-3,63)
no grupo de tratamento com albendazol e de 2,37g/L (IC 95%: 1,33-3,50) no grupo
de tratamento com albendazol e praziquantel.21 No entanto, os benzimidazóis
isolados revelaram impacto diminuto na anemia moderada (Risco Relativo (RR
0,87), sendo maior na associação com praziquantel (RR 0,61).21 Esta revisão tem
um NE 3 por estar orientada para a doença. A revisão sistemática de Gulani et
al (2007) evidenciou um aumento de 1,71 g/L (IC 95%: 0,70-2,73) na concentração
de Hb, estimando uma redução na prevalência da anemia em idade pediátrica de
populações com elevada prevalência de infecção intestinal por helmintas de 4,4%
a 21% (Quadro_II).22 Este estudo tem um NE 3 por estar orientado para a doença.
O ensaio clínico controlado e aleatorizado realizado na Nigéria e publicado em
2010 verificou um aumento dos níveis de Hb sem significado estatístico
(p=0,445) (NE 2).19
Relativamente à diarreia, os resultados encontrados são inconsistentes. O
ensaio clínico controlado e aleatorizado realizado no Uganda, por Elliot et al
(2007), concluiu não existir evidência de diminuição da incidência de diarreia
(NE 1), enquanto o ensaio clínico controlado e aleatorizado realizado em
favelas indianas e publicado em 2004 verificou uma redução dos episódios de
diarreia em 28% com o albendazol.20,23 Este último tem um NE 2 porque apesar de
ser um estudo de boa qualidade o período de follow-up foi inadequado (Quadro
III).
É difícil de quantificar a mortalidade atribuída à infecção intestinal por
nemátodos devido à clínica inespecífica destas infecções e à escassez de dados
epidemiológicos por carência de redes de notificação nos países em
desenvolvimento.24 Assim, não foram encontrados artigos que estimassem os
efeitos da desparasitação na mortalidade. No entanto, a OMS defende que a
desparasitação intestinal sistemática em países com elevada prevalência diminui
a mortalidade (NE 3).7
CONCLUSÕES
A maioria dos artigos incluídos nesta revisão teve como base populações
pediátricas de países em desenvolvimento com prevalência de parasitose
intestinal superior a 50%. Clinicamente são heterogéneos por uso de anti-
helmínticos e esquemas posológicos diferentes. Alguns estudos administraram,
concomitantemente, outros compostos (por exemplo, vitamina D, vacinas ou ferro)
que podem confundir os resultados. Exceptuando-se o benefício no peso, os
restantes resultados neles obtidos são inconsistentes.
Há evidência de benefício da desparasitação intestinal sistemática em crianças
residentes em países com prevalência de parasitose intestinal por helmintas
transmitidos pelo solo superior a 50% (SOR B). Não foram encontrados estudos
que avaliassem o benefício da desparasitação sistemática em crianças saudáveis,
assintomáticas e residentes em países de baixa prevalência, como parece ser o
caso de Portugal. Nestes, o tratamento deve ser selectivo e baseado no
diagnóstico de infecção (SOR C) (Quadro_IV).7, 24-26