Classificar motivos de consulta e procedimentos com a ICPC na prática clínica?
EDITORIAL
Classificar motivos de consulta e procedimentos com a ICPC na prática clínica?
Daniel Pinto*
*Editor da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
Observador no Comité Internacional de Classificações da Associação Mundial de
Médicos de Família (WONCA)
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No último número da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF),
Raquel Braga fez-nos reflectir sobre a utilização da Classificação
Internacional de Cuidados Primários (entre nós conhecida pela sua abreviatura
em inglês - ICPC) nos registos de saúde electrónicos.1 Parece existir uma
tendência para que as rubricas da ICPC substituam o texto livre nas notas de
seguimento (vulgarmente conhecidas por registos SOAP). Esta tendência pode ser
observada em registos clínicos reais, comunicações de casos clínicos em
congressos e manuscritos submetidos à RPMGF. Seria importante, por um lado,
perceber se este caminho será o mais útil para melhorar a qualidade dos
registos clínicos e, por outro, estudar a dimensão real deste fenómeno e porque
alguns médicos optam por proceder assim. Neste texto, debruçar-me-ei sobre a
primeira questão.
Alguns utilizadores da classificação parecem confundir a estrutura das notas de
seguimento no método de Weed,2 divididas em subjectivo, objectivo, avaliação e
plano, com a capacidade da ICPC para classificar motivos de consulta, problemas
de saúde e procedimentos.3 Isto é de particular relevância quando tentam
utilizar um conjunto de rubricas da ICPC como registo do campo “subjectivo”.
Quando o fazem, geralmente ignoram dois factos: que nem tudo o que deve ser
registado no campo subjectivo constitui um motivo de consulta classificável
através da ICPC e que a classificação dos motivos de consulta obedece a regras
que não são cumpridas na generalidade das consultas. A ICPC define três
princípios na classificação do motivo de consulta: a identificação do motivo
deve ser feita de forma explícita e acordada entre o médico e o doente (sempre
que necessário, o médico deverá clarificar o motivo de consulta); a rubrica da
ICPC a utilizar deverá ser tão próxima quanto possível das palavras do doente;
e o motivo de consulta é registado a partir do ponto de vista do doente, não
sendo aplicadas as regras de classificação dos problemas.3 Ao definir estes
princípios, a ICPC associa a definição do motivo de consulta ao método clínico
centrado no paciente, nomeadamente à exploração de sentimentos, ideias e
expectativas acerca da doença.4 Os motivos de consulta espelham a agenda do
doente. No entanto, em grande parte das consultas, os médicos saltam os passos
necessários à identificação e clarificação do motivo de consulta e não exploram
em profundidade suficiente as razões que levaram o doente a procurá-los, o que
inviabiliza uma classificação adequada à luz dos princípios da ICPC. Presumir a
intenção do doente e colocar a agenda do médico como motivo de consulta é algo
contrário ao espírito da ICPC.
Dizer que a classificação dos motivos de consulta obriga a pôr em prática o
método clínico centrado no paciente e os princípios definidos na ICPC não
significa que o motivo de consulta tenha de ser classificado de forma
sistemática em todas as consultas. A classificação do motivo de consulta deve
ter um propósito. É útil em contexto de investigação, por exemplo, quando se
pretende conhecer o que leva uma população a procurar cuidados de saúde5 ou o
valor preditivo de um sintoma para um determinado diagnóstico;6 ou em contexto
de treino na utilização da ICPC. Já não é claro qual o propósito que deva levar
ao seu uso generalizado na prática clínica diária, em que o tempo disponível
limita a capacidade de quem classifica para cumprir os princípios da
classificação e do método clínico centrado no paciente.
Uma classificação é útil para analisar um grande número de registos, abstraindo
informação acerca das características que são comuns a um determinado grupo,
mas com isso descartando informação pormenorizada acerca da variabilidade
individual. Assim, a classificação dos motivos de consulta não pode substituir
o registo de informação detalhada acerca dos sintomas, sentimentos e
expectativas de cada doente, sob pena de se perderem a tonalidade e a riqueza
da descrição individual e o registo clínico se tornar uma mancha cinzenta em
que todos os doentes são iguais. Na perspectiva do doente individual, a
classificação do motivo de consulta terá sempre de ser feita em conjunto com o
registo clínico em texto livre e não em sua substituição. Na perspectiva do
grupo, ao contrário do que sucede para os problemas de saúde, não estão
implementados sistemas que permitam agregar a informação de vários registos, o
que impossibilita a análise em larga escala dos motivos de consulta. Ainda que
isso fosse possível, desconhece-se de que forma a análise dos motivos de
consulta poderia ser utilizada para além do contexto de investigação,
nomeadamente para planeamento e gestão dos serviços de saúde, como acontece com
os problemas.
A classificação de procedimentos com a ICPC é teoricamente mais simples, uma
vez que depende exclusivamente do médico e não obriga a explorar a agenda do
doente. Contudo, um estudo de 2010 verificou que o maior número de erros de
classificação num grupo de internos de medicina geral e familiar portugueses
acontecia precisamente nos procedimentos.7 Isto acontece provavelmente devido à
existência de um número limitado de rubricas, com pouca granularidade, o que
suscita aos utilizadores muitas dúvidas no momento de classificar.
Por parte de quem financia o sistema de saúde, a classificação dos
procedimentos permite, em conjunto com os problemas de saúde, avaliar aquilo
que o médico faz na consulta. Nos sistemas em que os médicos recebem um
pagamento por acto (fee for service), a classificação dos procedimentos é
geralmente um passo necessário para a cobrança ao Estado ou à companhia de
seguros. Mas os financiadores também podem utilizar os procedimentos para
auditar a qualidade dos cuidados prestados, definindo um conjunto de
actividades, e consequentemente códigos, que têm de estar presentes em
determinadas circunstâncias. Auditar informaticamente grandes volumes de
registos médicos procurando pela existência de determinados códigos de
procedimentos é algo de muito tentador face à alternativa que constitui a
análise manual do texto livre por auditores humanos. Contudo, na avaliação da
qualidade, a utilização de medidas facilmente auditáveis não se traduz
necessariamente em melhores cuidados prestados aos doentes.8
Recentemente, a Administração Central do Sistema de Saúde definiu como
indicador de qualidade das unidades de saúde familiar na área da educação e
promoção da saúde o registo de uma rubrica “-45 no P do SOAP” nas consultas de
grupos vulneráveis e de risco.9 Apesar de facilmente auditável, tal como nos
motivos de consulta, a utilização de códigos para classificar os procedimentos
não deve substituir o registo individual em texto livre e não se vislumbra qual
o benefício que traz ao doente. No caso concreto das intervenções para promoção
da saúde, é importante detalhar os temas abordados, o que foi proposto e o
plano acordado com o doente. Se a intervenção for mais estruturada, envolvendo,
por exemplo, técnicas de entrevista motivacional, então a classificação mais
apropriada para o procedimento será provavelmente um código -58 (aconselhamento
terapêutico/escuta terapêutica) e não -45 (observação/educação para a saúde/
aconselhamento /dieta).
Em conclusão, da forma como parece estar a ser feita, a classificação de
motivos de consulta e procedimentos de forma sistemática na prática clínica
diária não contribui para melhorar os registos clínicos, pelo contrário:
provavelmente contém muitos erros, quando usada em substituição do texto livre
faz com que se perca informação acerca do indivíduo e não permite abstrair
informação de um grande número de consultas por falta das ferramentas
apropriadas.