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EuPTCVHe2182-51732012000400003

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National varietyEu
Year2012
SourceScielo

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Classificar motivos de consulta e procedimentos com a ICPC na prática clínica? EDITORIAL Classificar motivos de consulta e procedimentos com a ICPC na prática clínica? Daniel Pinto* *Editor da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar Observador no Comité Internacional de Classificações da Associação Mundial de Médicos de Família (WONCA) Endereço_para_correspondência | Dirección_para_correspondencia | Correspondence

No último número da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF), Raquel Braga fez-nos reflectir sobre a utilização da Classificação Internacional de Cuidados Primários (entre nós conhecida pela sua abreviatura em inglês - ICPC) nos registos de saúde electrónicos.1 Parece existir uma tendência para que as rubricas da ICPC substituam o texto livre nas notas de seguimento (vulgarmente conhecidas por registos SOAP). Esta tendência pode ser observada em registos clínicos reais, comunicações de casos clínicos em congressos e manuscritos submetidos à RPMGF. Seria importante, por um lado, perceber se este caminho será o mais útil para melhorar a qualidade dos registos clínicos e, por outro, estudar a dimensão real deste fenómeno e porque alguns médicos optam por proceder assim. Neste texto, debruçar-me-ei sobre a primeira questão.

Alguns utilizadores da classificação parecem confundir a estrutura das notas de seguimento no método de Weed,2 divididas em subjectivo, objectivo, avaliação e plano, com a capacidade da ICPC para classificar motivos de consulta, problemas de saúde e procedimentos.3 Isto é de particular relevância quando tentam utilizar um conjunto de rubricas da ICPC como registo do campo subjectivo.

Quando o fazem, geralmente ignoram dois factos: que nem tudo o que deve ser registado no campo subjectivo constitui um motivo de consulta classificável através da ICPC e que a classificação dos motivos de consulta obedece a regras que não são cumpridas na generalidade das consultas. A ICPC define três princípios na classificação do motivo de consulta: a identificação do motivo deve ser feita de forma explícita e acordada entre o médico e o doente (sempre que necessário, o médico deverá clarificar o motivo de consulta); a rubrica da ICPC a utilizar deverá ser tão próxima quanto possível das palavras do doente; e o motivo de consulta é registado a partir do ponto de vista do doente, não sendo aplicadas as regras de classificação dos problemas.3 Ao definir estes princípios, a ICPC associa a definição do motivo de consulta ao método clínico centrado no paciente, nomeadamente à exploração de sentimentos, ideias e expectativas acerca da doença.4 Os motivos de consulta espelham a agenda do doente. No entanto, em grande parte das consultas, os médicos saltam os passos necessários à identificação e clarificação do motivo de consulta e não exploram em profundidade suficiente as razões que levaram o doente a procurá-los, o que inviabiliza uma classificação adequada à luz dos princípios da ICPC. Presumir a intenção do doente e colocar a agenda do médico como motivo de consulta é algo contrário ao espírito da ICPC.

Dizer que a classificação dos motivos de consulta obriga a pôr em prática o método clínico centrado no paciente e os princípios definidos na ICPC não significa que o motivo de consulta tenha de ser classificado de forma sistemática em todas as consultas. A classificação do motivo de consulta deve ter um propósito. É útil em contexto de investigação, por exemplo, quando se pretende conhecer o que leva uma população a procurar cuidados de saúde5 ou o valor preditivo de um sintoma para um determinado diagnóstico;6 ou em contexto de treino na utilização da ICPC. não é claro qual o propósito que deva levar ao seu uso generalizado na prática clínica diária, em que o tempo disponível limita a capacidade de quem classifica para cumprir os princípios da classificação e do método clínico centrado no paciente.

Uma classificação é útil para analisar um grande número de registos, abstraindo informação acerca das características que são comuns a um determinado grupo, mas com isso descartando informação pormenorizada acerca da variabilidade individual. Assim, a classificação dos motivos de consulta não pode substituir o registo de informação detalhada acerca dos sintomas, sentimentos e expectativas de cada doente, sob pena de se perderem a tonalidade e a riqueza da descrição individual e o registo clínico se tornar uma mancha cinzenta em que todos os doentes são iguais. Na perspectiva do doente individual, a classificação do motivo de consulta terá sempre de ser feita em conjunto com o registo clínico em texto livre e não em sua substituição. Na perspectiva do grupo, ao contrário do que sucede para os problemas de saúde, não estão implementados sistemas que permitam agregar a informação de vários registos, o que impossibilita a análise em larga escala dos motivos de consulta. Ainda que isso fosse possível, desconhece-se de que forma a análise dos motivos de consulta poderia ser utilizada para além do contexto de investigação, nomeadamente para planeamento e gestão dos serviços de saúde, como acontece com os problemas.

A classificação de procedimentos com a ICPC é teoricamente mais simples, uma vez que depende exclusivamente do médico e não obriga a explorar a agenda do doente. Contudo, um estudo de 2010 verificou que o maior número de erros de classificação num grupo de internos de medicina geral e familiar portugueses acontecia precisamente nos procedimentos.7 Isto acontece provavelmente devido à existência de um número limitado de rubricas, com pouca granularidade, o que suscita aos utilizadores muitas dúvidas no momento de classificar.

Por parte de quem financia o sistema de saúde, a classificação dos procedimentos permite, em conjunto com os problemas de saúde, avaliar aquilo que o médico faz na consulta. Nos sistemas em que os médicos recebem um pagamento por acto (fee for service), a classificação dos procedimentos é geralmente um passo necessário para a cobrança ao Estado ou à companhia de seguros. Mas os financiadores também podem utilizar os procedimentos para auditar a qualidade dos cuidados prestados, definindo um conjunto de actividades, e consequentemente códigos, que têm de estar presentes em determinadas circunstâncias. Auditar informaticamente grandes volumes de registos médicos procurando pela existência de determinados códigos de procedimentos é algo de muito tentador face à alternativa que constitui a análise manual do texto livre por auditores humanos. Contudo, na avaliação da qualidade, a utilização de medidas facilmente auditáveis não se traduz necessariamente em melhores cuidados prestados aos doentes.8 Recentemente, a Administração Central do Sistema de Saúde definiu como indicador de qualidade das unidades de saúde familiar na área da educação e promoção da saúde o registo de uma rubrica -45 no P do SOAP nas consultas de grupos vulneráveis e de risco.9 Apesar de facilmente auditável, tal como nos motivos de consulta, a utilização de códigos para classificar os procedimentos não deve substituir o registo individual em texto livre e não se vislumbra qual o benefício que traz ao doente. No caso concreto das intervenções para promoção da saúde, é importante detalhar os temas abordados, o que foi proposto e o plano acordado com o doente. Se a intervenção for mais estruturada, envolvendo, por exemplo, técnicas de entrevista motivacional, então a classificação mais apropriada para o procedimento será provavelmente um código -58 (aconselhamento terapêutico/escuta terapêutica) e não -45 (observação/educação para a saúde/ aconselhamento /dieta).

Em conclusão, da forma como parece estar a ser feita, a classificação de motivos de consulta e procedimentos de forma sistemática na prática clínica diária não contribui para melhorar os registos clínicos, pelo contrário: provavelmente contém muitos erros, quando usada em substituição do texto livre faz com que se perca informação acerca do indivíduo e não permite abstrair informação de um grande número de consultas por falta das ferramentas apropriadas.


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