Estudo de seguimento de utentes após realização de um eletrocardiograma em
Medicina Geral e Familiar
Introdução
O eletrocardiograma (ECG), enquanto técnica de registo da corrente elétrica
cardíaca, foi descrito para utilização humana em 1902 no historicamente célebre
artigo “Galvanometrische registratie van het menschilijk electrocardiogram”1
por Willem Einthoven, tendo utilização na investigação e seguimento das doenças
relacionadas com o coração.
Trata-se de um exame quotidiano em Medicina Geral e Familiar2,3 e, apesar da
profícua idade, mantém e renova a sua utilidade na prática clínica diária,4
sendo reconhecida a existência de diferenças entre a prática dos Cuidados
Primários e Hospitalares.5,6
Em Portugal foram realizados, ao nível dos Cuidados de Saúde Primários, em
2007, mais de um milhão de ECG, representando em média 14,8% da população
utilizadora dos Centros de Saúde e 3,9 % das consultas médicas efetuadas.7 Em
relação a 1997, onde o ECG foi realizado em 3,2% das consultas,8 representa um
acréscimo de exames de 9,6%.
Este volume de requisições encontra paralelismo no que acontece noutros países
com valores que oscilam entre os 2,7 e os 4,5% das consultas médicas,9,10 e
depende de características intrínsecas ao doente, de características relativas
ao prestador de cuidados e de condicionantes do sistema de saúde.
O principal motivo para a sua requisição prende-se com a existência de
sintomatologia cardíaca, como dor torácica e palpitações, ou seguimento de
doentes com fatores de risco coronário, sobretudo a hipertensão arterial,11
aparecendo também o exame global de saúde como relevante,12 apesar de a
evidência apontar no sentido contrário.
Apesar de basearem a decisão de requisitar o exame sobretudo em motivos de
ordem clínica, a perspetiva de alteração do plano de seguimento em função da
previsão do resultado do ECG é baixa nos Médicos de Família, onde cerca de
metade não previa alterar a orientação à partida, independentemente do
resultado do exame. No estudo de Rutten11 este valor baixou para 31% de
alterações ao seguimento após conhecer a leitura do ECG.
A prática dos Cuidados de Saúde Primários apresenta variações internacionais
fruto da diferente organização dos serviços de saúde e do nível de
diferenciação conferido aos respetivos profissionais. Coloca-se então a questão
de saber se em Portugal estes dados se confirmam.
O objetivo deste estudo é caracterizar a alteração clínica a médio prazo no
seguimento dos utentes a quem foi realizado um ECG no contexto da consulta de
Medicina Geral e Familiar.
Métodos
Realizou-se um estudo observacional longitudinal, onde se estudaram os ECG
realizados no Centro de Saúde de S. João, requisitados no contexto da consulta
de Medicina Geral e Familiar de forma consecutiva desde 01/03/2007, por um
período de 24 meses, por 9 Médicos de Família e realizados nas instalações do
Centro de Saúde. Foram excluídos os ECG realizados por entidades externas.
O Centro de Saúde de S. João corresponde à parte assistencial do Projeto “Tubo
de Ensaio”, num protocolo estabelecido com a Administração Regional de Saúde do
Norte, onde o desenvolvimento de projetos inovadores nas áreas da Administração
e da Prestação de Cuidados e a formação pré e pós-graduada em Medicina Geral e
Familiar foram complementados pela contratualização da prestação de Cuidados de
Saúde Primários em Medicina Geral e Familiar a uma população de cerca de 20.000
utentes na cidade do Porto.13
No início, os ECGs requisitados na consulta dos Médicos de Família foram
realizados nas instalações do Centro de Saúde por enfermeiros treinados para o
efeito e enviados para relatar a um cardiologista, e desde 2005 passaram a ser
avaliados por um grupo de 3 Médicos de Família e relatados diretamente no
processo clínico dos utentes.
No momento da requisição de um ECG, o médico preenchia uma folha estruturada de
colheita de dados que incluía dados demográficos, o motivo clínico que
justificava a requisição, a presença de sintomatologia relacionada com o
sistema cardiovascular, a presença de fatores de risco cardiovasculares e a
presença de antecedentes cardíacos. Os dados omissos foram completados por
pesquisa manual dos processos clínicos.
Procedeu-se à categorização dos motivos para a requisição do exame em (1)
presença de sintomatologia na consulta, (2) seguimento de doença cardiovascular
previamente diagnosticada, e (3) exame global de saúde.
Os ECG foram realizados por enfermeiros treinados num aparelho Cardiette start
100 H e relatados por médicos de família com experiência na leitura sendo
registados no processo clínico eletrónico. Para efeitos de análise procedeu-se
à codificação pelo Novacode,14 tendo-se classificado em normal, com
anormalidades minor ou com anormalidades major.
Seis meses depois os processos foram analisados de forma manual no sentido de
registar as alterações à orientação clínica prévia à realização do ECG, em
termos de (1) manutenção dos cuidados anteriormente instituídos, (2) pedido de
outros exames, (3) alteração da medicação previamente instituída, (4)
referência aos cuidados hospitalares, e (5) morte.
Análise estatística
Os intervalos de confiança foram calculados pelo método modificado de Wald. A
alteração ao seguimento foi categorizada em variáveis dummy, utilizando-se a
regressão logística univariada nas covariáveis para a determinação dos valores
de odds ratio e respetivos intervalos de confiança.
Um modelo de regressão logística multinominal foi utilizado para descrever a
associação entre a alteração ao seguimento dos doentes e o motivo para a
requisição dos exames e o seu resultado segundo a classificação de Novacode. Os
óbitos foram retirados da análise. Para comparador da variável de resultado
utilizou-se a manutenção dos cuidados previamente instituídos. Tratando-se de
variáveis polinominais, utilizou-se como comparador o exame global de saúde nos
motivos para a requisição do exame, e o ECG normal nos resultados. A seleção
das variáveis de ajustamento teve em conta a significância estatística da
análise univariada. Aceitou-se um erro alfa de 0,05.
Resultados
Foram avaliados 870 ECGs de 817 utentes (56,4% do sexo feminino) com uma
mediana de idades de 57 anos (distância interquartil: 42-72 anos), sendo de 53
anos para o sexo masculino (distância interquartil: 38-69 anos) e de 59 anos
para o sexo feminino (distância interquartil: 44-74 anos). A média de
requisições por médico foi de 96,7 (IC95%: 50,7-142,6). No quadro_I apresentam-
se em resumo os dados demográficos básicos da amostra.
(ECG – eletrocardiograma; IC95% – intervalo de confiança a 95%).
Quanto aos motivos para a requisição, 48,5% (IC95%: 45,2-51,8%) dos ECGs foram
justificados pela presença de sintomas na consulta, 27,6% (IC95%: 24,7-30,7%)
pelo seguimento de doença cardiovascular previamente diagnosticada e 23,9%
(IC95%: 21,2-26,9%) pelo contexto de um exame global de saúde.
Na análise dos diagnósticos encontrados, 54,5% (IC95%: 51,2-57,8%) dos ECGs
eram normais, 35,9 % (IC95%: 32,7-39,1%) apresentavam anormalidades minor e 9,7
(IC95%: 7,9-11,8%) apresentavam anormalidades major.
Os processos dos utentes foram revistos no sentido de determinar a alteração
clínica face ao que se encontrava previamente à realização do ECG seis meses
após. Nos 870 exames estudados, 67,9% (IC95%: 64,8-70,0%) mantiveram os
cuidados já instituídos sem qualquer alteração, em 13,8% (IC95%:11,7-16,3%)
alterou-se a medicação cardiovascular, em 12,3 % (IC95%: 10,3-14,7%) foram
requisitados novos exames auxiliares de diagnóstico, e 5,7% (IC95%: 4,8-7,5%)
foram referenciados a uma consulta hospitalar. Registaram-se 2 óbitos neste
período.
Quando se analisa a alteração à orientação em função dos motivos para a
requisição dos ECGs (figuras_1 e 2), verifica-se que em todos os grupos a maior
proporção corresponde à manutenção dos cuidados previamente instituídos com
60,2% (IC95%: 54,5-66,1%) quando a sintomatologia na consulta era o motivo para
o pedido do exame, 63,3% (IC95%: 55,4-71,3%) nos exames de seguimento do doença
previamente diagnosticada e 88,9% (IC95%: 79,8-98,1%) quando o exame é
requisitado no contexto do exame global de saúde (p<0,001). O mesmo se verifica
quando se procede à análise em função dos resultados dos ECG com 78,7% (IC95%:
72,8-84,6%) para os exames normais, 58,7% (IC95%: 51,9-65,4%) para as
alterações minor e 41,7% (IC95%: 31,0-53,6%) para as alterações major
(p<0,001).
Estudaram-se as variáveis associadas à alteração ao seguimento dos utentes em
análise univariada (figura_3). A manutenção dos cuidados previamente
instituídos esteve inversamente associada à presença de sintomas na consulta
(OR=0,416; IC95% 0,308-0,563), sobretudo as alterações do ritmo cardíaco e a
dispneia, aos antecedentes de doença cardiovascular (OR=0,421; IC95%:0,290-
0,610), à presença de fatores de risco cardiovasculares (OR=0,565; IC95%:0,407-
0,783) e ao pedido de urgência na realização do ECG (OR=0,327; IC95%: 0,230-
0,466). A alteração da medicação cardiovascular foi mais frequente nos utentes
com antecedentes cardiovasculares (OR=2,130; IC95%: 1,347-3,336) e com fatores
de risco cardiovasculares (OR=2,046; IC95%: 1,267-3,305), nomeadamente
hipertensão arterial, diabetes mellitus e dislipidemia. O pedido de novos
exames esteve associado positivamente aos utentes com sintomas na consulta
(OR=2,156; IC95%: 1,387-3,356), sobretudo nos que se apresentavam com dispneia.
A referência aos cuidados hospitalares foi mais comum nos doentes mais idosos
(OR=1,029; IC95%: 1,012-1,047), nos que apresentaram sintomatologia na consulta
(OR= 8,082; IC95%: 3,179-20,546), como dor torácica, dispneia e alterações do
ritmo cardíaco, nos que referiram antecedentes de doença cardiovascular
(OR=2,929; IC95%: 1,585-5,410), nos utentes com fatores de risco
cardiovasculares (OR=2,500; IC95%: 1,159-5,393), como hipertensão arterial e
tabagismo, e nos utentes a quem o exame foi requisitado com urgência
(OR=11,317; IC95%: 6,131-20,890) e foi menos comum em função do tempo que
decorreu até à realização do exame desde o momento da sua requisição (OR=0,756;
IC95%:0,669-0,854). O médico que procedeu à requisição do exame foi também uma
variável que demonstrou significância estatística na análise univariada
(p<0,001), havendo profissionais que procederam ao pedido de novos exames e à
alteração da medicação cardiovascular de forma significativamente diferente dos
restantes.
O modelo de regressão logística multinominal foi utilizado para estudar a
relação entre a alteração ao seguimento dos utentes que realizaram um ECG no
contexto da consulta de MGF e as variáveis motivo para a requisição do exame e
o seu resultado segundo a classificação de Novacode. O quadro_II mostra os
resultados após ajustamento para género, idade, médico que procedeu à
requisição, presença de sintomas na consulta, antecedentes pessoais de doença
cardiovascular, presença de fatores de risco cardiovasculares e o pedido do
exame com urgência. Os resultados mostram que os ECG requisitados pela presença
de sintomatologia na consulta não diferiram de forma significativa dos que o
foram por rotina, ao passo que, no seguimento de doença previamente
diagnosticada, o ECG foi um fator significativo de decisão clínica. Por outro
lado, a decisão é significativamente alterada em função do ECG apresentar
alterações minor ou major versus normal.
Discussão
Este estudo diz-nos que cerca de dois terços dos ECGs requisitados na consulta
de Medicina Geral e Familiar não interferem na abordagem clínica do utente que
já se encontrava definida no momento em que se procedeu ao pedido do exame.
Este dado é particularmente evidente nos ECGs requisitados no contexto de
sintomatologia que o doente apresentou na consulta de Medicina Geral e
Familiar, independentemente da alteração encontrada no exame. Por outro lado,
nos doentes para seguimento de doença previamente diagnosticada, o ECG mostrou
ser um elemento importante na definição da orientação clínica dos doentes. Da
mesma forma, o facto de se verificar uma anormalidade minor ou major na leitura
do ECG foi um importante fator de decisão clínica, independentemente do motivo
que levou à sua requisição.
Em estudos anteriores, Rutten (2000) encontrou uma proporção de alterações à
abordagem previamente definida de 31%11 e van Dijke,15 em 1998, de 40%. Estudos
mais antigos mostraram variações menores de 7 e 16%.16,17 Neste estudo o valor
encontrado foi de 32,1%, o que se situa na linha de atuação dos Médicos de
Família.
Uma limitação deste estudo é o facto de não se ter considerado na análise a
possibilidade de o resultado do ECG poder alterar no imediato a decisão do
médico no momento em que este é realizado. Um dado indireto mas com relevância
nesta discussão é o pedido de urgência na realização do ECG que se encontra
significativamente associado a uma maior referência aos cuidados hospitalares,
com um odds ratio de 11,317 e a uma menor manutenção de cuidados previamente
instituídos (OR=0,327), o que pode significar que, no contexto de doença aguda,
o ECG se assume como um importante elemento de decisão clínica. A proporção de
alteração do seguimento nestes doentes foi de 53,5% (IC95%: 45,7-61,1%), o que
leva a pensar na especificidade da valorização das queixas no contexto da
Medicina Geral e Familiar, sendo possível que um episódio de dor torácica seja
abordado como potencialmente de causa cardíaca, mesmo que a história clínica
aponte num outro sentido, dependendo da interação médico-doente característica
desta especialidade. Um estudo desenhado para responder a esta questão poderia
passar pela seleção de doentes com queixas agudas, verificando na variável de
resultado o efeito da realização do eletrocardiograma.
O facto de se terem excluído os ECGs realizados fora das instalações do Centro
de Saúde, representando uma proporção marginal, mas não passível de
quantificação, da totalidade dos exames requisitados, é um viés a considerar na
análise dos resultados, não parecendo no entanto suficiente para colocar em
causa as conclusões.
Quando olhamos para os profissionais de saúde, é interessante verificar
diferenças significativas em relação à orientação dada aos utentes em função
dos motivos para o pedido de ECG e da sua interpretação. Na análise
multivariada, os médicos procederam ao pedido de novos exames e à alteração da
medicação cardiovascular de forma diferenciada uns dos outros, mas não na
referenciação aos cuidados hospitalares. Este dado levanta a questão da
variabilidade dos médicos no seu exercício diário, já descrita por Stafford,10
com parâmetros de atuação suficientemente diferentes a merecer estudo
complementar específico.
Mais do que respostas definitivas, este estudo deixa questões ao nível da
variabilidade do exercício médico em Medicina Geral e Familiar, ao nível da
interação médico-doente, e ao nível da forma como os utentes reagem ao pedido e
realização dos exames complementares de diagnóstico. Outros trabalhos com
objetivos mais concretos poderão encontrar as respostas adequadas.
Conclusão
A maioria dos utentes que realizam um ECG na consulta de Medicina Geral e
Familiar mantêm inalterados os cuidados instituídos previamente à requisição do
exame. A sintomatologia cardíaca na consulta é o principal motivo de requisição
do ECG mas não está associada a alterações ao seguimento nestes doentes. A
utilidade do ECG verifica-se sobretudo nos casos de seguimento de fatores de
risco cardiovasculares e de doença cardíaca prévia.