A Plataforma de Dados em Saúde está aí: estamos preparados para ela?
EDITORIAL
A Plataforma de Dados em Saúde está aí - estamos preparados para ela?
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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A Plataforma de Dados em Saúde (PDS), por muitos de nós já utilizada a título
experimental, está prestes a ser concluída e vai possibilitar a consulta dos
dados clínicos de qualquer paciente em qualquer ponto do país ou até na Europa,
algo que era, até há pouco tempo, uma utopia.
Esta partilha e integração da informação é de enorme utilidade para utentes e
profissionais, potenciará ganhos em saúde e facilitará os processos de
diagnóstico e de orientação dos doentes. Poderá ainda vir a ser um veículo de
melhoria dos registos clínicos, de avaliação e garantia de qualidade dos
registos, dos processos de conduta clínica, de detecção do erro médico e de
desenvolvimento da investigação.
A complexidade do processo de articulação dos dados clínicos dos pacientes é
tal que este projecto é um gigantesco e admirável avanço.
Depois desta declaração de admiração total, devo confessar que, tendo estado em
algumas sessões de apresentação deste projecto na Unidade Local de Saúde de
Matosinhos (ULSM), onde decorrem ensaios, cresce em mim, qual erva daninha, uma
sensação incómoda que se prende com inúmeras questões éticas por resolver.
Acesso à informação por parte dos profissionais
Quem está familiarizado com sistemas locais de partilha de informação sabe o
quão útil, imediato e esclarecedor é, a partir de qualquer dado identificativo
de um doente, sem o seu consentimento ou até sem o seu conhecimento, aceder
através do sistema de informação do Centro de Saúde aos dados do Hospital ou
vice-versa.
Todos nos apercebemos como os nossos próprios processos clínicos, dos nossos
colegas ou (des)conhecidos estão ali, disponíveis e vulneráveis, sem qualquer
sistema de protecção, para quem os queira consultar ou simplesmente devassar,
apesar da obrigação de sigilo médico...
Actualmente, a PDS permite o acesso por parte dos médicos e enfermeiros a dados
de todos os doentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS), apenas ficando inscrito
o nome do profissional que consultou o processo. Essa inscrição pode ser
visível ao doente, mas não é fácil imaginar que implicações isso possa trazer:
Poderão os profissionais de saúde ser processados por consultarem os processos
dos doentes sem a sua autorização? Teremos de a pedir, como se de um
consentimento informado verbal ou escrito se tratasse?
Foi-me respondido que estas questões estão resolvidas, uma vez que esta
permissividade no acesso a qualquer processo já ocorre em muitos sistemas
locais de partilha de informação, nomeadamente na ULSM.
Assumir esta resposta é ampliar um problema já identificado. O Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no seu parecer sobre a informação
de saúde e registos informáticos de saúde,1 ressalta a necessidade do
desenvolvimento de uma responsabilidade ética que respeite os direitos das
pessoas que utilizam os serviços de saúde. Recomenda que as aplicações
informáticas de registo clínico disponham de mecanismos que permitam o acesso a
dados clínicos apenas aos profissionais de saúde com responsabilidade na
assistência directa àquela pessoa e que, em caso de acesso indevido aos registo
de determinada pessoa, surja um alerta para a inconformidade da pretensão,
mantendo-se a possibilidade de acesso, desde que devidamente fundamentadas as
razões para aceder nessas circunstâncias e reconfirmadas as senhas pessoais de
acesso.1
Responsabilidade de o resumo clínico dos utentes ser do médico de família
Este capítulo da PDS, que visa sintetizar a informação mais relevante do
utente, pretende aproveitar a «inteligência» do médico de família, quem melhor
conhece o doente, para construir o resumo do seu processo clínico. Pretende-se
disponibilizar o acesso directo desta informação a outros colegas, bem como ao
próprio utente. Não havendo dúvidas que o médico de família é, na generalidade
das vezes, o médico mais habilitado para conhecer e integrar todos os dados
clínicos do seu doente, inúmeras questões se levantam.
A proposta de elaborar o resumo clínico por códigos da International
Classification of Primary Care(ICPC) afigura-se demasiado simplista e pouco
exequível. Uma vez que esta classificação é apenas utilizada em Cuidados de
Saúde Primários (CSP) e não foi criada para este fim, haverá dificuldades na
selecção criteriosa dos códigos que devem ser tidos em conta e na sua
utilização e interpretação por leigos e profissionais de saúde que não a
dominem.
Para um médico de família é difícil manter a lista de problemas sempre
actualizada para todos os utentes, até porque estes, por vezes, desenvolvem
episódios de saúde fora dos CSP, ou afluem às consultas de Medicina Geral e
Familiar (MGF) de forma descontínua.
Ao contrário da prática hospitalar, em que os registos e contacto com o doente
são efectuados habitualmente em tempos distintos, em MGF cada encontro origina
um registo, normalmente efectuado no decurso da consulta, sobrando pouco tempo
para o seu aperfeiçoamento posterior... Em suma, os registos clínicos são
frequentemente verdadeiros documentos de trabalho, em permanente actualização e
evolução, com diversas notas pessoais e contextuais, acompanhando o
desenvolvimento da história natural das doenças e das pessoas e auxiliando o
próprio raciocínio clínico, decorrente de um modelo de relação centrado na
pessoa.
A complexidade subjacente a este raciocínio, particularmente no caso dos
doentes com morbilidade múltipla, mesmo ultrapassando as dificuldades inerentes
ao diagnóstico de cada um dos problemas, não será o simples somatório do que
resulta da abordagem dos problemas um a um.2 Daí que o conceito do que é um
resumo clinico deva ser devidamente repensado, como é por exemplo proposto
através do modelo do mapa de problemas.2 A priorização dos problemas não é uma
tarefa fácil, nunca se encontra concluída, variará ao longo do tempo e deve
resultar, em última instância, do confronto entre as preocupações do médico e
as preocupações do doente.2
Levantam-se também as questões de diagnósticos ou problemas sensíveis para o
utente e que este não pretenda ver expostos. Incluem-se nestas questões, entre
outras, as dependências, as perturbações do foro mental, as doenças infecto-
contagiosas, os problemas relacionais ou da esfera sexual, que podendo ser
eliminadas do resumo clínico efectuado pelo médico de família, a pedido
expresso do utente, podem vir a ser relevantes.
A utilidade de um resumo que pode ser incompleto ou parcial é portanto
diminuta, pois nunca dispensará a colheita de uma anamnese completa, sobretudo
em situações de urgência.
Acesso à informação por parte dos pacientes
Esta questão é particularmente sensível, porque não existe em Portugal
experiência de os doentes poderem aceder à sua informação clínica, a não ser
através dos médicos (verbal ou escrita). Com o acesso directo aos registos
levanta-se novamente a discussão: Os registos são do médico ou do doente? A
informação clínica é do médico ou do doente?
Segundo a legislação actual, a informação clínica é do doente (ou do titular),
algo que só a ele diz respeito, mas os profissionais de saúde são os seus fiéis
depositários, sendo que «a comunicação de dados de saúde é feita por intermédio
de médico se o requerente o solicitar».3
Esta facilitação da informação através da PDS retira em parte a necessidade da
sua solicitação por parte do doente, «obrigando» (?) à permanente depuração dos
registos clínicos, tendo em conta não só a relevância dos problemas a
apresentar como a vontade do doente em os tornar acessíveis. Recomenda-se
extremo cuidado na elaboração dos registos clínicos, sobretudo relativamente a
fragmentos que, não dizendo respeito ao utente, resultam de inscrições
auxiliadoras ao raciocínio médico e à sua memória pessoal e que se podem tornar
inadequados ou inúteis como forma de transmissão da informação.
Possibilidade de colocação de informação na PDS pelos pacientes
Partindo do princípio que os diversos médicos que fazem a anamnese do doente, a
fazem de forma exaustiva e sistemática, inquirindo toda a informação
importante, negando toda a informação necessária e triando a informação
realista e útil do ponto de vista médico, que informação relevante para o
raciocínio clínico poderá ainda escapar e que seja necessário inscrever pela
própria mão do doente?
Não parece útil ou seguro fomentar comunicação para além da crivada através da
relação médico-doente, sobretudo se o utente não puder obter confirmação de que
a sua informação foi recebida e integrada.
A inscrição de dados pessoais de saúde na PDS pelo doente pode até assumir
aspectos potencialmente perigosos, uma vez que estas informações podem ser
falsas, incorrectas ou inclusive inscritas por outrem, sem qualquer rigor ou
até com segunda intenção.
CONCLUSÃO
Todos os problemas apontados não afectam a magnitude da obra realizada. É
evidente que o processamento da informação foi radicalmente alterado pela
utilização dos sistemas de informação e que estes são deveras facilitadores. É
mandatório não entravar o progresso nem temer a inovação. Mas, como médicos e
fiéis depositários de pedaços da vida e da intimidade dos nossos doentes,
devemos salvaguardar o respeito pela informação clínica, pelo sigilo e pela
segurança dos sistemas em que inscrevemos a história daqueles que a nós se
confiam.