Rastreio de Diabetes Mellitus tipo 2 e o seu impacto na mortalidade
CLUBE DE LEITURA
Rastreio de Diabetes Mellitus tipo 2 e o seu impacto na mortalidade
Screening for type 2 diabetes and its impact on population mortality
Joana Monteiro
Interna de Medicina Geral e Familiar, USF Santa Clara, ACES Póvoa do Varzim/
Vila do Conde
Simmons RK, Echouffo-Tcheugui JB, Sharp SJ, Sargeant LA, Williams KM, Prevost
AT, et al. Screening for type 2 diabetes and population mortality over 10 years
(ADDITION-Cambridge): a cluster-randomised controlled trial. Lancet 2012 Nov
17; 380 (9855): 1741-8.
A Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) constitui um importante problema de saúde
pública e a elevada proporção de casos não diagnosticados, número de doentes
com complicações à data do diagnóstico e longa fase de latência da doença são
argumentos importantes a favor de um rastreio. Apesar de, por si, não
contribuir para dano psicológico ou falsa segurança dos pacientes, as dúvidas
quanto ao benefício de um rastreio de base-populacional da DM2 persistem.
Embora alguns estudos previssem uma diminuição da mortalidade global e
relacionada com diabetes, até à data não existia evidência clara para
fundamentar esta hipótese. Este estudo tem por objeto descrever a mortalidade
encontrada num ensaio clínico aleatorizado por clusters de rastreio em doentes
com alto risco de DM2 não diagnosticada em unidades de cuidados de saúde
primários (CSP) de Inglaterra.
Métodos
O ADDITION-Cambridge é um estudo de rastreio e intervenção na DM2 em CSP que
incluiu a participação de pacientes com idade entre 40-69 anos, de 63 unidades
de cuidados de saúde primários da região Este de Inglaterra aleatorizadas na
proporção 1:3:3 por um de três grupos: sem rastreio (grupo controlo; 5
unidades), rastreio seguido de tratamento intensivo dos doentes com diagnóstico
de DM2 (28 unidades) e rastreio seguido de tratamento convencional dos doentes
com diagnóstico de DM2 (27 unidades). Foi calculado um score de estimativa de
risco de DM2 não diagnosticada com base na idade, sexo, índice de massa
corporal (IMC) e prescrição de corticosteroides e anti hipertensores.
No grupo de rastreio, os indivíduos foram convidados a realizar determinação da
glicemia ocasional, hemoglobina glicosilada (HbA1c) e, posteriormente, glicemia
capilar em jejum seguida de prova de tolerância à glicose oral, avaliação do
IMC, perímetro abdominal, pressão arterial e perfil lipídico.
Os participantes diagnosticados com DM2 foram em seguida orientados de acordo
com o regime estipulado para a unidade a que pertenciam: tratamento intensivo
(estratégias de educação na gestão da hiperglicemia, pressão arterial e
colesterol, início de terapêutica medicamentosa e promoção de estilos de vida
saudáveis) ou convencional (segundo as recomendações atuais do UKNHS).
O outcome primário foi mortalidade por todas as causas e os outcomes
secundários foram morte por doença cardiovascular, morte por cancro, outras
causas e mortes relacionadas com a diabetes.
Resultados
As unidades onde o rastreio foi realizado tinham um tamanho de lista inferior,
menor prevalência bruta de diabetes, menos médicos e enfermeiros em relação à
média de Inglaterra e serviam uma população aparentemente menos necessitada.
Foram considerados elegíveis 20 184 e, dos 16 047 do grupo selecionado para
rastreio, 11737 compareceram. Foi feito o diagnóstico de DM2 a 466
participantes com uma duração média de follow-up de 9,6 anos. Não foram
encontradas diferenças estatisticamente significativas na mortalidade por todas
as causas entre o grupo de rastreio e de controlo (HR 1,06, IC a 95% 0,90-1,25;
p=0,46). A DM2 foi listada entre outras causas de morte em 91 pacientes e não
foram encontradas diferenças significativas entre grupos na mortalidade
relacionada com a diabetes (HR 1,26; IC a 95% 0,75-2,10).
Discussão
Neste estudo de base populacional do Reino Unido, a mortalidade global durante
um período médio de 9,6 anos não foi diminuída por um rastreio de DM2 em
pessoas com elevado risco de diabetes não diagnosticada. Da mesma forma, o
convite à realização do rastreio não se associou à redução de mortalidade por
todas as causas, mortalidade cardiovascular ou relacionada com diabetes num
período de 10 anos.
A proporção de novos casos de diabetes pode ter sido demasiado pequena para ser
demonstrada uma diferença e, em populações com taxas de diabetes não
diagnosticada superiores, o benefício do rastreio na mortalidade poderá ser
maior. Para além disso, a prevalência de diabetes não diagnosticada pode ter
sido previamente sobrestimada, uma vez que esta doença foi citada como causa de
morte em apenas 90 dos certificados de óbito e esta subnotificação pode também
ter levado à diminuição do efeito do rastreio. Apenas uma etapa de rastreio foi
realizada e, com o rastreio repetido, admite-se que o benefício poderá ser
maior. A amostra foi representativa da população da Região Este de Inglaterra
apesar de a população ser socioeconomicamente superior à média.
Como conclusão, o convite à realização de uma etapa de rastreio de DM2 em
indivíduos de alto-risco numa unidade de CSP do Reino Unido poderá beneficiar a
minoria com doença detetável mas não se associou à redução de mortalidade
global ou relacionada com diabetes num período de 10 anos.
COMENTÁRIO
A DM2 é uma doença com um impacto significativo na sociedade, cuja prevalência
tem vindo a aumentar, associada ao aumento da obesidade e fatores de risco
cardiovascular.1 Estudos nacionais2 e internacionais3-5 mostram que um elevado
número de casos se encontra por diagnosticar. O rastreio e diagnóstico de DM2 é
relativamente fácil e acessível, sendo uma medida popularmente aceite. Enquanto
que os benefícios e potenciais danos do tratamento da diabetes foram já
largamente estudados, esta é a primeira vez que o seu rastreio foi avaliado num
ensaio clínico.
Uma revisão recente da Cochrane põe em causa os benefícios dos rastreios de
base populacional ao verificar que a avaliação regular de saúde com vista ao
aconselhamento e realização de rastreio de doenças (incluindo diabetes) não
mostrou diminuir a morbilidade ou mortalidade globais, apesar de aumentar o
número de casos detetados.6
Estes achados são reforçados pelo presente estudo no qual, mesmo em indivíduos
de alto risco, não foram detetadas diferenças de mortalidade, embora a
morbilidade não tenha sido estudada pelos autores, o que poderia ter trazido
dados determinantes para a recomendação ou não de rastreio em populações
selecionadas.
Até à data, os dados existentes sobre os potenciais ganhos em saúde com a
realização de programas de rastreio baseavam-se em modelos computadorizados que
simulavam a progressão da diabetes, mas que tinham a limitação de terem por
base estudos que incluíam apenas indivíduos com diabetes e excluíam aqueles que
não desenvolviam doença.
A mais-valia do presente estudo foi ter incluído população com e sem doença e,
por este motivo, poder reportar taxas de mortalidade com base na população.
Trata-se de um estudo metodologicamente correto, com um desenho de estudo
adequado aos objetivos embora condicionado pela intenção de avaliação dos
resultados de tratamento intensivo versus convencional. O período de follow-up
de 10 anos traz importantes informações, embora, tendo em conta que o outcome é
a mortalidade, possa condicionar também a magnitude dos resultados obtidos e
justificar parcialmente a ausência de diferenças significativas verificada.
Outro fator importante a ter em conta na interpretação dos resultados deste
estudo é a baixa taxa de diabetes diagnosticada de novo (3%), que reforça o
resultado positivo das estratégias de prevenção cardiovascular implementadas ao
nível dos CSP, mas põe em causa a aplicabilidade das conclusões a populações
com prevalências superiores de doença não diagnosticada (relembre-se que em
Portugal a estimativa é de 43,6%).2
Torna-se aparente, tendo em conta estes resultados, que o benefício do rastreio
populacional da diabetes terá sido sobrestimado ao longo dos últimos anos e,
embora este estudo aleatorizado, de boa qualidade metodológica, não seja
suficiente para sustentar uma alteração da prática clínica, levanta a
possibilidade de o benefício ser significativo apenas em populações
selecionadas, de alto risco, e quando os testes se acompanham de uma avaliação
e intervenção mais global nos fatores de risco cardiovascular, repetida ao
longo do tempo.