A relação terapêutica
EDITORIAL
A relação terapêutica
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
Endereço_para_correspondência | Dirección_para_correspondencia | Correspondence
Neste espaço editorial da RPMGF, tenho vindo a falar de assuntos como a
complexidade na especialidade de Medicina Geral e Familiar,1 ou como a
sobrecarga de trabalho, com um número crescente de doentes e a pressão
assistencial imposta pela necessidade de cumprir múltiplos indicadores de
saúde, que pode comprometer a qualidade do trabalho.2 Falei, igualmente, da
necessidade de praticarmos uma medicina baseada na evidência, que não se deve
opor ao gut feelings,3 da necessidade de racionalizar e uniformizar a prática
clínica, de forma a garantir equidade e eficácia nos actos médicos praticados
pela nossa especialidade4 e de muitos outros aspectos que nos consomem e
preocupam enquanto médicos de família, como a falta de tempo para, com todos
estes pressupostos, fazermos uma medicina de qualidade.
A propósito da conjunção de todos estes factores, é tempo de falar, agora, do
mais importante, é tempo de centrar a atenção naquilo que nos levou
(seguramente a muitos de nós) a sermos os médicos que hoje somos, a relação,
que se espera que seja terapêutica.
Falo da presença balsâmica, da mão que cura ou alivia, do olhar que sossega e
conforta.
Em termos menos poéticos ou literários, falo dessa relação impressionante que
se estabelece entre o médico e o doente, que julgávamos ser parte da arte da
Medicina e que hoje sabemos dever ser algo mais do que vocação ou dom inato.5
Sabemos que o trabalho desenvolvido nessa relação deve ter, também, algo de
aprendido, reflectido, discutido e treinado, algo incluído nas competências
clínicas de um médico em formação pré ou pós-graduada.5 Foi documentado que
esse treino de relação clínica tem consequências positivas nas competências
comunicacionais observadas por observadores externos, e que um maior
conhecimento sobre comunicação e auto-conhecimento (self-awareness) pode
aumentar a auto-confiança do médico.6
A relação terapêutica baseia-se em inúmeros ingredientes. Um deles é a empatia,
ou seja, a capacidade de compreender os sentimentos, os pensamentos e as
atitudes do outro e de dar a entender ao outro que o compreendemos; este
‘colocarmo-nos no lugar do outro’ deve ser feito, no entanto, sem
ultrapassarmos a fronteira da nossa identidade, sem sentirmos o mesmo que o
outro sente e sem pensarmos o mesmo que o outro pensa, sob pena de estarmos a
ser simpáticos e não empáticos. Outro será a confiança, que contempla a
consideração e atenção pela individualidade e singularidade de cada um. Inclui-
se nesta relação, para além do conhecimento biomédico para fornecer respostas
nesse plano, a inteligência emocional7 que um médico deve ter em grande dose e
usar na vida e na profissão, para que a sua presença e actuação tenha um efeito
curativo ou reconfortante, bem como um efeito motivador, de controlo emocional
e de adequação social. A inteligência emocional foi definida por Daniel Goleman
como a «...capacidade de identificar os nossos próprios sentimentos e os dos
outros, de nos motivarmos e de gerir bem as emoções dentro de nós e nos nossos
relacionamentos». Enfoca a necessidade de auto-conhecimento pessoal (self-
awareness). Realça a experiência em lidar com os sentimentos adequando-os a uma
plêiade de situações vivenciadas (neste caso pelo próprio médico ou por este
através dos olhos dos doentes, sendo o médico, por isso, um espectador
privilegiado para apreender o mundo). Desencadeia naturalmente a interacção com
os outros (que podemos denominar como connexional experience),8 que deverá
colocar em relevo a sensibilidade e habilidade sociais. A dose de inteligência
emocional a utilizar na relação terapêutica deve ser regulada pelas
necessidades manifestadas pelo doente, mas também pelas necessidades sentidas
pelo próprio médico na gestão da relação. Não parece haver efeitos laterais em
caso de sobredosagem deste ingrediente.
A relação médico-doente contempla a capacidade de entender o outro na sua
linguagem verbal e não-verbal, nas suas expectativas, no seu contexto vivencial
e nos seus receios. No entanto, não se esgota aqui, já que, para além de fazer
perceber ao doente que é entendido, ajuda a lidar com a incerteza do
diagnóstico, com a impotência perante a doença terminal, tornando esta ou outro
tipo de experiências, que não têm respostas num modelo biomédico, mais
compensadoras e menos frustrantes.8
O estabelecimento de um relacionamento terapêutico (muitas vezes assinalado por
um momento especial de ligação, que geralmente ocorre nas chamadas «consultas
sagradas»)9 é uma tarefa clínica fundamental e pode assumir uma importância
equivalente a qualquer outro tratamento curativo ou paliativo, não importando o
tempo que a relação médico-doente vai durar (minutos ou anos). Todos nós já
experienciámos esta situação, mesmo com doentes que acabámos de conhecer e
sabemos o quão efectiva e real ela pode ser. Damos imediatamente conta, ou
apercebemo-nos posteriormente que, episódica ou frequentemente, temos esse
impacto relacional terapêutico na vida da pessoa que está perante nós.
Ao médico de família, pela relação de continuidade que mantém com os seus
doentes, cabe, como na relação de amor que se inicia e reacende em momentos de
paixão, saber pontuar a relação longitudinal de proximidade, incendiando-a de
momentos de oportuna e efectiva proximidade e eficácia terapêutica, sempre que
necessário ou requerido.
É um desejo da grande maioria dos seres humanos, sobretudo dos que estão ou se
sentem doentes, obter este tipo de relacionamento terapêutico e procurar
médicos que o proporcionem. Algumas vezes, estranhamente, buscam-no e
encontram-no fora da medicina convencional, uma vez que nem todos os médicos
cultivam ou exercem este tipo de relação. Nem todos os médicos investem ou
conseguem investir nessa faceta de curador que há milénios atravessa as
diversas culturas, tornando esta uma relação quase-mágica. Convém relembrar que
a Medicina emergiu da cura ritual e religiosa e que, só nos últimos séculos, a
ciência a foi separando desta interpretação religiosa da doença e do
sofrimento.
No seio da classe médica observamos que, por vezes, quando esta forma de
comunicação não é inata, quando descurada inadvertidamente ou posta em segundo
plano pela assumpção de um relacionamente mais técnico, mais distante, mais
centrado no próprio médico, ou menos atento e descentrado da relação,
facilmente este efeito terapêutico não acontece na consulta e não surte o
devido resultado tranquilizador ou terapêutico para o doente, causando
insatisfação.
Paradoxalmente, a esta busca por parte da maioria dos doentes, que apesar de
não se contentar somente com o conforto relacional, lhe atribui um enorme
valor, opõe-se a percepção de alguns médicos de que o sucesso da sua
intervenção depende apenas da cura ou, pelo menos, do controlo ou domínio das
doenças, realização esta que muitas vezes está para além do alcance da medicina
e independente dos dotes técnicos ou científicos do médico.
A importância de tomar consciência do poder que a relação terapêutica tem para
o doente e para o médico (compensando-o, e prevenindo a exaustão, sobretudo em
situações difíceis), ou seja, o sentido de a reconhecer, aprender, cultivar,
desenvolver, trabalhar e ensinar é deveras impactante para ambos os elementos
do binómio médico-doente.
A mudança do paradigma do modelo médico e de relação com o doente deve conduzir
à manutenção de mudanças na educação médica.5,10 As competências no
relacionamento com o doente deveriam ter o mesmo peso no ensino clínico que o
ensino da anamnese, do exame físico e do raciocínio diagnóstico. Factores
facilitadores do auto-conhecimento e do crescimento pessoal deveriam ser
incluídos entre os objetivos declarados e assumidos no processo de educação
médica.5
Cultivando o tempo, a técnica e a sensibilidade para isso, o facto de
centrarmos a comunicação no doente e na relação terapêutica interferirá
seguramente na qualidade da medicina que praticamos, tornando-a mais
gratificante e eficaz.