Perfil terapêutico da hipertensão na Rede Médicos Sentinela: 12 anos depois
Introdução
A hipertensão arterial (HTA) é um importante factor de risco no desenvolvimento
de doenças cardiovasculares, como o enfarte do miocárdio e o acidente vascular
cerebral (AVC), sendo um dos mais importantes problemas de saúde em Portugal,
causando excesso de morbilidade e mortalidade.1
Estima-se que mais de três milhões de adultos portugueses sofram de HTA.2 No
estudo de Mário Espiga de Macedo e colaboradores,2 apenas 11,2% dos hipertensos
tinham a pressão arterial (PA) controlada e apenas 28,9% dos que relataram
tomar a sua medicação, regularmente, tinham a sua PA controlada. A definição de
HTA controlada utilizada no estudo citado foi considerar uma pressão arterial
sistólica (PAS) < 140 mmHg e uma pressão arterial diastólica (PAD) < 90 mmHg, o
que se encontra de acordo com as recomendações europeias3 e com a norma emitida
pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) em 2011.4
O controlo da HTA é imperativo, não só para reduzir o risco de enfarte do
miocárdio, AVC e doença renal crónica mas também a incidência de fibrilhação
auricular, insuficiência cardíaca congestiva e disfunção cognitiva. Vários
agentes anti-hipertensivos provaram ser eficazes,5 tendo sido demonstrado que
uma redução de 10 mmHg na PAS e uma redução de 5 mmHg na PAD diminui
significativamente a incidência de enfarte do miocárdio, AVC, insuficiência
cardíaca congestiva e a mortalidade global.6 No entanto, a reduzida proporção
de hipertensos controlados sugere a necessidade de abordagens terapêuticas mais
agressivas, bem como de melhoria nos sistemas de prestação de cuidados de
saúde.1,2,6
Além das complicações associadas, a HTA não controlada representa um importante
impacto económico, decorrente da incapacidade por ela provocada, bem como dos
elevados custos associados ao seu tratamento. Em Portugal, em 2012, os anti-
hipertensores (aHT) foram o subgrupo terapêutico com maior encargo financeiro
para o Serviço Nacional de Saúde.7
A elevada prevalência da HTA na população portuguesa, o seu insuficiente
controlo e o decorrente elevado impacto económico, fazem da HTA uma das áreas
prioritárias de intervenção em saúde. A DGS estabeleceu o Programa Nacional
para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares como um dos programas de saúde
prioritários em Portugal. Além da promoção da prevenção cardiovascular e da
prestação racional de cuidados diagnósticos e terapêuticos, este programa tem
também como objectivo a promoção das boas práticas clínicas e terapêuticas
através da adopção de recomendações clínicas nacionais ou internacionais.
Para o planeamento e implementação das estratégias destinadas a melhorar o
tratamento da HTA e para a monitorização dos indicadores estabelecidos pela DGS
é necessária a caracterização dos padrões de tratamento e da sua evolução ao
longo dos anos.
Desta forma, a Rede de Médicos Sentinela (MS) decidiu repetir em 2010, 12 anos
depois do estudo transversal realizado em 1998, o estudo do perfil terapêutico
da HTA na Rede.8
Este estudo teve como principais objectivos determinar o perfil terapêutico da
HTA na Rede de MS, de acordo com as variáveis demográficas (idade, sexo), forma
de HTA e comorbilidades e comparar os resultados obtidos, 12 anos após a
realização do primeiro estudo.
Métodos
Realizou-se um estudo transversal, tendo-se recorrido à Rede MS, que consiste
numa rede de médicos de família, cuja actividade profissional se desenvolve em
Centros de Saúde do Serviço Nacional de Saúde e que, voluntariamente, notificam
casos ou episódios de doença e de outras situações relacionadas com a saúde dos
indivíduos inscritos nas respectivas listas de utentes. No ano 2010 estavam
inscritos na Rede MS 152 médicos de família, distribuídos nos 18 distritos do
Continente e nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira. Em Abril de 2010
foi enviado um convite a todos os médicos da Rede para colaborarem no estudo,
tendo aceite participar 35 médicos.
A selecção de doentes foi efectuada sequencialmente, de acordo com o plano de
consultas de cada médico e com base num plano de amostragem por cotas. Tendo em
conta o número de médicos que aceitou participar, foi pedido a cada médico que
recolhesse entre 27 e 31 casos, seguindo a distribuição por cotas descrita no
Quadro_I (de acordo com a distribuição por sexo e classe etária dos doentes
hipertensos constante no Inquérito Nacional de Saúde de 2005/2006).
A recolha dos dados decorreu entre 7 de Junho de 2010 e 31 de Dezembro de 2010,
tendo sido incluídos os indivíduos hipertensos, com idade igual ou superior a
18 anos, que consultaram o médico de família no período considerado,
independentemente do diagnóstico. As mulheres grávidas foram excluídas.
Para o cálculo da dimensão da amostra fixou-se um erro absoluto de 3% e um
intervalo de confiança de 95% para o cálculo de proporções, tendo-se obtido uma
dimensão de amostra de 1.067 doentes hipertensos.
O questionário preenchido pelo médico de família compreendeu informação sobre a
caracterização do doente (sexo, idade e etnia), a caracterização da patologia
(data aproximada do diagnóstico, forma da HTA, danos em órgãos-alvo e
morbilidade associada) e a terapêutica farmacológica.
No que respeita à caracterização da patologia, a variável forma de HTA foi
classificada em três estratos, em função dos valores de PAS e PAD no momento do
diagnóstico: grau 1 ou ligeira (PAS 140-159 mmHg e PAD 90-99 mmHg), grau 2 ou
moderada (PAS 160-179 mmHg e PAD 100-109 mmHg) e grau 3 ou severa (PAS ≥ 180
mmHg e PAD ≥ 110 mmHg).
Os danos em órgão-alvo (doença cardíaca, insuficiência renal, doença cérebro-
vascular, retinopatia e doença arterial periférica) e morbilidade(s) associada
(s) (diabetes, asma, doença pulmonar obstrutiva crónica, disfunção eréctil,
glaucoma, insuficiência hepática, dislipidemia, hiperuricemia e perturbações da
condução aurículo-ventricular) foram definidos de acordo com o critério clínico
de cada médico participante, recorrendo, se necessário, ao processo clínico do
doente.
Para análise comparativa e conforme descrito, anteriormente, utilizaram-se os
resultados do estudo realizado em 1998.8
Análise Estatística
Os dados recolhidos foram introduzidos numa base de dados expressamente
construída para o efeito, em Microsoft Access. Foi realizada uma validação por
amostragem dos dados recolhidos e introduzidos na base de dados, comparando os
questionários recepcionados em papel com o registo informático. A análise
estatística foi realizada no programa informático SAS GUIDE versão 4.0.
A análise consistiu na descrição de todas as variáveis em estudo, através do
cálculo de frequências absolutas, frequências relativas, medidas de localização
e medidas de dispersão. Para as análises relacionadas com o perfil terapêutico
foram calculados os intervalos de confiança a 95% com aproximação à normal sem
correcção de continuidade, para as proporções encontradas. Para a comparação de
alguns resultados, segundo as características dos doentes, utilizou-se o teste
de Qui-quadrado, ou o teste exacto de Fisher, em dados categorizados, e o teste
não paramétrico de Mann-Whitney e Wilcoxon para dados contínuos.
A análise comparativa dos resultados obtidos em 1998 e os resultados obtidos em
2010 foi efectuada recorrendo ao teste de Qui-quadrado ou ao teste de
comparação de proporções. No caso das variáveis idade e tempo de HTA foi
utilizado o teste F de Snedecor para testar a hipótese de igualdade entre as
variâncias e posteriormente o teste t-student para comparação de médias com
aproximação de Welch. Foi utilizado um nível de significância α = 0,05. Os
valores omissos foram excluídos da análise.
Resultados
Em 2010, foram incluídos no estudo 616 doentes hipertensos. O Quadro_II
apresenta as características gerais da amostra nos dois momentos em estudo.
Relativamente às variáveis sociodemográficas, observaram-se diferenças
significativas ao nível da idade e do sexo entre os dois momentos, verificando-
se um aumento da idade média dos participantes (IC 95%: 63,2-65,4) e um aumento
da proporção dos participantes do sexo masculino, de 1998 para 2010. Em ambos
os momentos, apenas 1% dos doentes não era de etnia caucasiana, pelo que se
considerou que essa característica não era relevante para a análise.
Relativamente à duração da HTA, de 1998 para 2010, diminuiu a proporção de
doentes com duração da HTA superior a 10 anos, sendo esta diferença
estatisticamente significativa. Não se verificaram diferenças quanto à duração
média da HTA. No que respeita à forma de HTA no momento do diagnóstico,
verificou-se um aumento da proporção de doentes com HTA ligeira, a par de uma
diminuição da proporção de participantes com HTA moderada. Aproximadamente
metade dos hipertensos apresentou danos em órgãos-alvos em ambos os momentos,
sendo a doença cardíaca o dano mais frequente. As patologias associadas mais
frequentes foram, em 1998 e 2010, a dislipidemia, a hiperuricemia e a diabetes.
No entanto, a proporção de participantes com dislipidemia e diabetes aumentou e
a proporção com hiperuricemia diminuiu (Quadro_II).
Entre 1998 e 2010, o padrão de prescrição revelou diferenças relativas à
prescrição de aHT em monoterapia ou politerapia e também no que respeita às
classes de aHT prescritas. O esquema terapêutico em monoterapia foi prescrito a
47,6% (n = 536; IC95%: 44,7%-50,5%) dos hipertensos em 1998 e a 30,3% (n =
183; IC95%: 26,7%-34,0%) em 2010 (Figura_1). Neste esquema, as classes
terapêuticas mais frequentemente prescritas foram, em 1998, os inibidores da
enzima da conversão da angiotensina (IECA) (24,3%; IC95%:20,7%-27,9%), seguidos
dos bloqueadores dos canais de cálcio (BCC) (8,4%; IC95%: 6,1%-10,7%) e
diuréticos (6,1%; IC95%: 4,1%-8,1%). Em 2010, o uso de IECA, BCC e diuréticos
diminuiu para 10,8% (IC95%: 6,3%-15,3%), 3,2% (IC95%: 0,6%-5,7%) e 2,2% (IC95%:
0,1%-4,3%), respetivamente.
A classe dos IECA representou, em ambos os momentos, a classe mais
frequentemente prescrita em monoterapia, tendo diminuído de 24,3% para 10,3% em
2010.
A prescrição de antagonistas dos receptores da angiotensina (ARA) aumentou
significativamente de 3,2% (IC95%: 1,7%-4,7%) em 1998 para 9,8% (IC95%: 5,5%-
14,1%) em 2010. A prescrição de bloqueadores beta (BB) não diferiu
significativamente entre os dois momentos, variando de 5,2% (IC95%: 3,3%-7,1%)
para 4,0% (IC95%: 1,1%-6,8%).
Entre 1998 e 2010 o número médio de aHT prescritos manteve-se semelhante (1,4
vs 1,5 medicamentos por doente).
A combinação de 2 classes de aHT continuou a ser o modo mais comum de
politerapia entre 1998 (36,2%; IC95%: 33,4%-39,0%) e 2010 (42,8%; IC95%: 38,8%-
46,7%). De entre as possíveis combinações entre as principais classes de
medicamentos aHT, verificou-se um aumento significativo para a prescrição de
ARA em combinação com um diurético (3,2%; IC95%: 1,5%-4,9% vs 43,4%; IC95%:
37,4%-39,5%) ou um BCC (1,5; IC95%: 0,3% 2,7% vs 8,9%; IC95%: 5,4%-12,4%) e uma
diminuição de associações de IECA em combinações com diurético (48,2%; IC95%:
43,4%-53,0% vs 26,0%; IC95%: 20,6%-31,3%) ou BCC (15,0 IC95%: 11,5%-18,5% vs
6,2%; IC95%: 3,3%-9,1%) (Figura_2).
A politerapia contendo 3 classes de medicamentos aHT aumentou de 14,0% (IC95%:
12,0%-16,0%) para 21,2% (IC95%: 18,0%-24,5%). Em 2010, as três formas mais
comuns deste tipo de politerapia foram as combinações que incluíam um
diurético: diurético + ARA + BCC (22,7%; IC95%: 18,7%-26,7%), diurético + ARA +
BB (14,1%; IC95%: 10,8%-17,4%) ou diurético + IECA + BCC (13,3%; IC95%: 10,1%-
16,5%).
Em 2010, os padrões de tratamento mais frequentes foram os ARA + diuréticos
tiazídicos (15,4%; IC95%: 12,5%-18,3%), seguido de IECA em monoterapia
(10,8%; IC95%: 6,3%-15,3%) e ARA (9,8%; IC95%: 5,5%-14,1%).
De forma a avaliar o efeito da presença de comorbilidades na terapêutica
farmacológica da HTA, compararam-se os esquemas terapêuticos instituídos aos
doentes sem qualquer comorbilidade com os esquemas instituídos aos doentes com
apenas uma comorbilidade (diabetes, dislipidemia ou hiperuricemia). Foram
observadas diferenças significativas em relação ao número de fármacos aHT
prescritos na presença de diabetes (p = 0,0472), dislipidemia (p = 0,0431) e
hiperuricemia (p = 0,0463) (Quadro_III). Comparando o número de aHT prescritos
em 1998 com número de aHT prescritos em 2010 em função da existência e tipo de
comorbilidades, observaram-se diferenças significativas entre os dois momentos,
na ausência de comorbilidades (p = 0,0032) e para a dislipidemia (p = 0,0233)
(Quadro_III).
Quanto à distribuição dos grupos terapêuticos mais prescritos de acordo com a
existência e tipo de comorbilidade, verificou-se um aumento significativo na
prescrição de ARA, isolados ou em associação, tanto nos indivíduos sem
comorbilidades, como nos indivíduos com apenas uma comorbilidade (diabetes,
dislipidemia ou hiperuricemia) (Quadro_IV). Em 2010, a proporção de doentes sob
terapêutica com IECA diminuiu para todas as patologias apresentadas, tendo sido
a classe mais frequentemente prescrita em 1998, independentemente da presença
ou tipo de patologia (Quadro_IV). Tendo em consideração que os ARA eram uma
classe relativamente recente em 1998, a frequência da sua utilização no
referido ano era muito inferior comparando com 2010. Não foi possível aplicar o
teste estatístico para comparar os grupos terapêuticos prescritos em 1998 e em
2010 em função da presença e tipo de comorbilidades devido ao reduzido número
de casos após estratificação da amostra.
Para este estudo foram ainda analisadas algumas características dos MS,
nomeadamente a idade, o sexo e os anos de prática clínica que se considerou
poderem, eventualmente, influenciar a decisão no que respeita à terapêutica da
HTA. A idade média foi de 54±4,3 anos, o número médio de anos desde a
licenciatura foi de 29±4,6 anos, e 61,8% pertenciam ao sexo feminino.
Comparando-se as variáveis dos médicos participantes no estudo e dos médicos
que compõem a Rede de MS, verificou-se não existir diferenças significativas,
para média de idade (p = 0,6737), para o número médio de anos de prática
clínica (p = 0,5058) e para o sexo (p = 0,4023). É de salientar a diminuição do
número de médicos participantes no estudo em 2010 (n = 35). Decorrente deste
facto, quando se compararam os doentes em estudo com a amostra de doentes que
se esperava obter, verificou-se que, no ano de 1998, o número de médicos
participantes foi superior ao esperado, resultando num tamanho da amostra
superior ao previamente calculado. Em 2010, o número reduzido de médicos
participantes resultou numa redução do tamanho amostral, que contou com
aproximadamente metade dos participantes esperados.
Discussão
As normas de orientação clínica para o tratamento da HTA da Joint National
Committee 7, da European Society of Hypertension e European Society of
Cardiology consideram que, de uma forma geral, independentemente do aHT
utilizado, a monoterapia permite atingir o controlo da PA apenas num número
limitado de hipertensos, sendo que a maioria dos doentes necessitará do uso de
associações farmacológicas para atingir as metas tensionais desejáveis.9,10
No presente estudo, verificou-se que a utilização da combinação de vários aHT,
isolados ou em associação de dose fixa, apresentou um aumento de 17,3%, tendo
sido prescrita a mais de metade dos hipertensos em 2010 (69,7%). A proporção de
doentes em monoterapia é inferior à observada no estudo VALSIM (2009),11 o que
está de acordo com as observações de estudos noutros países europeus, que têm
revelado que a proporção de doentes sob monoterapia tem vindo a diminuir
significativamente, de forma constante.11
De acordo com as mais recentes normas de orientação clínica emanadas pela DGS,
no tratamento da HTA de risco acrescido baixo, pode ser utilizado qualquer
medicamento considerado de primeira linha – diuréticos tiazídicos, isolados ou
em associação de baixa dose com modificadores do eixo
renina‐angiotensina‐aldosterona (RAA); modificadores do eixo RAA (não
diferenciando os IECA dos ARA) ou BCC.4 Contudo, determinadas condições de alto
risco, como a diabetes mellitus, síndrome metabólica ou doença renal são
indicações para o uso inicial de associações com mecanismos de acção
complementar – diuréticos tiazídicos com modificadores do eixo RAA ou BCC com
modificadores do eixo RAA.4
A escolha da opção terapêutica deve ser justificada sempre que se considere ser
a melhor alternativa para o doente, seja para minimizar reacções adversas seja,
eventualmente, para minorar o número de tomas; caso contrário, privilegia-se a
opção terapêutica de menor custo para igual eficácia, salvaguardando o
cumprimento das orientações de boa prática clínica.4
Neste estudo, embora os diuréticos tenham sido frequentemente prescritos em
associação com outras classes de aHT (32,0% em 1998 e 54,1% em 2010), já quando
prescritos em monoterapia representaram apenas 6,1 % da utilização de aHT em
1998 e 2,2% em 2010, apresentando uma diminuição de 3,9% entre 1998 e 2010.
Como fármacos de primeira linha, assim classificados pela maioria das normas de
orientação clínica,4,10 e tendo em consideração que são a classe terapêutica
com menor custo diário de tratamento, seria expectável uma maior proporção na
sua utilização.12
Os fármacos que actuam no eixo RAA foram os mais frequentemente prescritos em
ambos os momentos em estudo (1998 e 2010), tanto em monoterapia como em
politerapia. Por outro lado, a utilização de diuréticos, BB e BCC diminuíram ou
aumentaram residualmente entre os dois períodos.
Estes resultados estão de acordo com o observado nos últimos estudos nacionais
sobre o padrão de utilização dos aHT, que revelaram que os IECA e,
fundamentalmente, os ARA têm, cada vez mais, superado a utilização das outras
classes de aHT, tais como os BCC e os BB.11,12 O estudo VALSIM, publicado em
2009, demonstrou que os padrões de tratamento mais frequentemente prescritos
foram os ARA, em monoterapia (16,9%), seguidos dos IECA em monoterapia (14,4%)
e das associações de ARA e diurético (11,8%).11
Os ARA têm indicações semelhantes aos IECA, no entanto, devido ao seu elevado
custo, devem ser apenas recomendados aos doentes que apresentem intolerância
aos IECA.9,12,13,14 No presente estudo, o marcado aumento na utilização dos ARA
e o decréscimo na proporção de utilização de IECA, parece sugerir a hipótese de
que, em determinadas situações, estes poderão estar a ser utilizados para além
das indicações em que representem uma mais-valia terapêutica, sugerindo-se a
realização de outros estudos com outras opções metodológicas para a eventual
comprovação desta hipótese. Não obstante, a atracção pela prescrição de
moléculas novas, como é o caso dos ARA, e a pressão para usar as terapêuticas
mais recentes são factores que podem afectar a prescrição do médico no
tratamento da HTA, podendo explicar, parcialmente, a opção pelos ARA.13
Um estudo da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P.
(INFARMED), que analisou a evolução dos medicamentos do aparelho cardiovascular
em Portugal, entre 2000 e 2011, mostrou que os fármacos que actuam no eixo RAA
apresentaram tendências de utilização crescentes, enquanto os restantes
fármacos tiveram as suas tendências de utilização estabilizadas ou
invertidas.15 Por outro lado, de acordo com os dados do Sistema de Informação
sobre Consumo de Medicamentos do Centro de Estudos e Avaliação em Saúde
(CEFAR), da Associação Nacional das Farmácias – sistema criado com base numa
amostra de cerca de 80% das farmácias portuguesas, entre 2004 e 2011, a
utilização dos aHT em Doses Diárias Definidas (DDD)/1.000 habitantes/dia
aumentou 33,8%. Neste período, o rácio em DDD: ARA/(IECA + ARA) – indicador do
grupo EURO-MED-STAT16 – aumentou de 33,8% para 51,9%, evidenciando, claramente,
a substituição dos IECA pelos ARA. De notar que desde 2005, e mais
acentuadamente a partir de Outubro de 2010, o crescimento na despesa, apesar de
elevado, foi bastante inferior ao crescimento em volume, devido às medidas
legislativas implementadas em Portugal para redução dos custos, nomeadamente,
reduções administrativas nos preços de venda ao público, quer dos medicamentos
de marca, quer dos medicamentos genéricos.
A HTA está frequentemente associada a determinadas patologias, com elevada
prevalência, como a diabetes e a dislipidemia. Os doentes com HTA e
determinadas comorbilidades necessitam de uma abordagem específica nas opções
terapêuticas.
No caso de dislipidemia, as normas de orientação terapêutica desaconselham o
uso dos BB em hipertensos com múltiplos factores de risco metabólico, incluindo
a síndrome metabólica, devido aos seus efeitos adversos sobre o metabolismo
lipídico e aumento da incidência da diabetes.10,17 Isto também se aplica ao uso
de diuréticos tiazídicos, que em doses elevadas têm efeitos dislipidémicos e
diabetogénicos.10 Em 1998, foi prescrito um IECA a 63,4% dos doentes com
dislipidemia, enquanto em 2010 esta proporção diminuiu para 35,4%, mantendo-se,
contudo, como a classe mais frequentemente prescrita nos doentes cuja única
comorbilidade era a dislipidemia.
Nos doentes com diabetes, o controlo da HTA pode ser particularmente difícil de
alcançar, podendo ser necessária a utilização de uma combinação de dois ou mais
aHT.10 É recomendado o uso de associações que incluam um IECA ou ARA, em
virtude da eficácia particular destes agentes sobre a excreção renal de
proteína e a preservação da função renal a longo prazo.14
A combinação de um diurético com um BB tem efeitos metabólicos adversos e
favorece o desenvolvimento de diabetes, devendo, portanto, ser evitado, a menos
que exigido por outras razões. Neste estudo, verificou-se que a proporção de
hipertensos com diabetes aumentou significativamente de 1998 para 2010, pelo
que poderá ter contribuído para o aumento da utilização de medicamentos
modificadores do eixo RAA, os mais adequados para o tratamento da HTA em
indivíduos diabéticos com proteinúria.10 Os fármacos mais frequentemente
prescritos nos indivíduos cuja única comorbilidade era a diabetes foram os
IECA, em 1998 (75%), e a associação de IECA com diuréticos tiazídicos, em 2010
(52,9%).
Os resultados deste estudo devem ser interpretados à luz de algumas limitações
existentes. A generalização dos resultados deverá ser cuidadosa, uma vez que o
número de hipertensos incluídos no estudo foi inferior ao tamanho amostral
definido na metodologia e os padrões terapêuticos encontrados poderão não
corresponder, na totalidade, aos padrões terapêuticos da generalidade dos
médicos de medicina geral e familiar em Portugal. Com efeito, o facto de os
prescritores pertencerem à Rede de MS – rede voluntária de médicos de Medicina
Geral e Familiar – constitui, por si só, um viés, na medida em que poderão
apresentar um padrão de prescrição sistematicamente diferente do praticado por
outros médicos de Medicina Geral e Familiar ou clínicos de outras
especialidades, porventura reflexo da possibilidade dos utentes da Rede terem
características diferentes e, no caso concreto, não serem representativos da
população total de doentes a fazer terapêutica anti-hipertensora.
Embora o recrutamento dos doentes tenha sido efectuado sequencialmente, com
base num plano de amostragem por cotas, previamente disponibilizado aos MS, é
possível que tenha existido um viés de selecção, em virtude de uma selecção de
conveniência dos doentes por parte dos MS e tendo em conta o longo período de
recrutamento verificado no terreno.
Por outro lado, o facto de os médicos terem conhecimento de que se encontravam
a participar num estudo com vista à caracterização do perfil de prescrição pode
ter contribuído para um viés de notificação, considerando que cada médico
participante pode não ter reportado algumas prescrições de aHT durante o
período do estudo ou pode ter alterado o seu padrão habitual de prescrição.
Os períodos de recolha transversal de informação não possibilitam a obtenção de
determinadas variáveis que poderiam permitir outras análises de relevância para
a caracterização do perfil terapêutico da HTA, embora não constassem nos
objectivos deste estudo. Não foi, por exemplo, recolhida informação sobre a
experiência terapêutica anterior com aHT, como intolerância, efeitos adversos
ou patologias associadas que contra-indiquem a utilização de algum aHT, bem
como informação sobre terapêuticas concomitantes dos doentes, que permitiria a
detecção de eventuais interacções medicamentosas.8
A forma de HTA avaliada neste estudo é referente à forma de HTA no momento do
diagnóstico e a terapêutica é referente ao momento do estudo, em 2010. Entre
estas duas datas podem mediar períodos de tempo variados, de anos até, pelo que
não se pode estabelecer uma relação directa ente a terapêutica actual e a forma
de HTA registada pelo médico.
Em conclusão, verificou-se que o padrão de prescrição de aHT na Rede MS sofreu
significativas alterações no que diz respeito ao número e tipologia de classes
de aHT prescritos. O número médio de aHT prescritos aumentou significativamente
entre os dois momentos. Por outro lado, embora os diuréticos sejam o aHT de
menor custo, a sua utilização reduziu-se consideravelmente entre 1998 e 2010.
Ao invés, os fármacos que actuam no eixo RAA (IECA e ARA) foram os mais
frequentemente prescritos em ambos os momentos, tanto em monoterapia como em
politerapia. Contudo, sublinha-se o aumento significativo da prescrição de ARA
em detrimento da diminuição dos IECA.
Comparativamente ao primeiro estudo, salienta-se um ligeiro aumento da idade
média dos participantes, mantendo-se porém o predomínio do sexo feminino.
Aproximadamente metade dos hipertensos apresentou danos em órgãos-alvos em
ambos os momentos, sendo a doença cardíaca o dano mais frequente. As patologias
associadas mais frequentes foram a dislipidemia, a hiperuricemia e a diabetes.
Verificou-se ainda uma variação significativa no número e classes de aHT
prescritos em função da presença de comorbilidades nos dois momentos.
No âmbito do uso racional do medicamento, os resultados deste estudo
contribuíram para o conhecimento do perfil de prescrição dos aHT em Portugal.
Contudo, propõe-se, em estudos futuros, avaliar a implementação da Norma da DGS
e o seu decorrente impacto no padrão de prescrição dos anti-hipertensores, por
forma a promover a qualidade da prescrição e o real controlo da despesa pública
com medicamentos, concretamente nesta classe farmacoterapêutica.