Ética na publicação de trabalhos científicos
EDITORIAL
Ética na publicação de trabalhos científicos
Raquel Braga*
*Directora da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
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A Declaração de Helsínquia, que define os Princípios Éticos para a Investigação
Médica em Seres Humanos, foi revista em Outubro de 2013, em Fortaleza, no
Brasil. Tendo sido adoptada em Helsínquia, na Finlândia, pela Associação Médica
Mundial (AMM) em 1964, esta Declaração vai já na sua nona revisão. As
sucessivas actualizações demonstram que os problemas éticos relativos à
investigação biomédica são intemporais, mas têm sofrido evolução e reflexão.
Dirigindo-se em primeira linha aos médicos, a AMM incentiva outros
participantes da investigação médica em seres humanos a adoptar estes
princípios. Dada a relevância deste documento no que diz respeito à salvaguarda
dos direitos dos humanos e animais, ele é universalmente adoptado por quem
pratica e publica investigação na área biomédica.
A Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF) não foge a este
modelo, requerendo que todos os artigos publicados respeitem os princípios
éticos consagrados nesta Declaração.1,2
No entanto, temos vindo a observar que nem todos os trabalhos submetidos à
RPMGF contêm, desde a sua génese ou no seu protocolo, a preocupação ética de
observar a Declaração de Helsínquia, se não do ponto de vista conceptual, pelo
menos do ponto de vista formal.
Acresce que, em Portugal, começam a ser desenvolvidos ensaios clínicos em
Cuidados de Saúde Primários e tem aumentado o número de estudos observacionais
que envolvem directamente a participação dos doentes, ou em que se utilizam
dados dos processos clínicos, ou de bases de dados, sem que os doentes
expressamente o autorizem.
Assim, torna-se importante focar alguns aspectos relevantes que, se não forem
devidamente acautelados desde o início, prejudicam a transparência, pertinência
e a bondade do processo de investigação, podendo posteriormente inviabilizar a
sua publicação.
A criação de Comissões de Ética nas instituições de saúde onde se desenvolve
investigação na área biomédica e, mais recentemente, nas Administrações
Regionais de Saúde, veio colmatar algumas dificuldades anteriores em obter e
regulamentar o parecer acerca de trabalhos de investigação que envolvem doentes
ou dados dos processos clínicos.
Um dos erros mais frequentemente detectados nos trabalhos submetidos à RPMGF é
a presunção de que, por se invocar a Declaração de Helsínquia, é dispensável o
parecer de uma Comissão de Ética. Outro erro comum é assumir que os dois
factores atrás referidos (doentes e dados clínicos) não estão necessariamente
relacionados. O anonimato patente na publicação dos dados não dispensa as
demais cautelas no manuseio e tratamento dos mesmos. Em primeiro lugar, o uso
dos dados clínicos deverá suscitar o pedido de consentimento informado aos seus
titulares. Só na impossibilidade de os obter individualmente (dado o volume de
dados a aceder) e havendo reconhecida relevância ou interesse público da
investigação esse pedido pode ser considerado dispensável pela Comissão de
Ética em investigação. Em qualquer dos casos, a utilização de dados clínicos
obriga a um pedido de autorização à Direcção da respectiva instituição de
saúde4 ou, em casos em que haja criação de bases de dados identificáveis, à
Comissão Nacional de Protecção de Dados.
Nos casos em que a pertinência ou a justificação da investigação assume
interesse público, a Comissão de Ética pode considerar desnecessário o pedido
de consentimento informado aos doentes, para inclusão no estudo, desde que o
fornecimento dos dados seja devidamente anonimizado.4 Qualquer trabalho de
investigação envolvendo seres humanos ou animais necessita de um parecer de uma
Comissão de Ética e os autores não devem assumir a dispensa, a priori, do
consentimento dos potenciais participantes no estudo.
É ressalvado na Declaração de Helsínquia que a investigação médica em seres
humanos só deverá ser realizada sob a direcção de pessoas com formação, treino
e qualificações éticas e científicas apropriadas, exigindo a supervisão de
médicos ou de outros profissionais de saúde competentes e adequadamente
qualificados.1
Quer no exercício clínico quer na investigação médica, muitas intervenções
implicam riscos e incómodos.1 A investigação médica em seres humanos só deve
ser realizada se a importância do objectivo pretendido ultrapassar os riscos
inerentes e os incómodos para os participantes na investigação. Desta forma,
todos os projectos de investigação médica em seres humanos devem ser
antecedidos de uma cuidadosa avaliação dos riscos e incómodos previsíveis para
os indivíduos e grupos envolvidos, comparando-os com os benefícios expectáveis,
para eles e para outros indivíduos ou grupos afectados pela situação sob
investigação.1 Assim, será de licitude duvidosa desenvolver investigação por
motivos meramente académicos, com perguntas de investigação pouco originais,
que nada acrescentem ao corpo do conhecimento científico, mesmo que não
acarretem riscos apreciáveis, ou mesmo que os incómodos se restrinjam à
interpelação, perda de tempo ou de privacidade dos inquiridos.
Sempre que desejem publicar na RPMGF, os autores devem ter em conta que o
desenho e desenvolvimento de um estudo de investigação envolvendo seres humanos
devem ser claramente descritos e fundamentados num protocolo de investigação.
Este deve conter um enunciado das questões éticas e indicar como foram
respeitados os princípios da Declaração de Helsínquia. O protocolo deve incluir
informação sobre financiamento, patrocinadores, ligações institucionais,
potenciais conflitos de interesse, eventuais incentivos para os sujeitos de
investigação e informação sobre ajudas e/ou indemnizações para quem seja
prejudicado em consequência da participação no estudo.1 Todos estes elementos
têm de ser declarados, quer no momento do recrutamento dos participantes, quer
aquando da publicação do artigo.
No caso de ensaios clínicos, o protocolo deve descrever as disposições
relativas às ajudas após o ensaio.1
Em todos os estudos de investigação, o desenvolvimento do estudo deve respeitar
o protocolo previamente avaliado por Comissão de Ética, que procede à
apreciação, orientação, comentários e parecer, devendo ser-lhe apresentadas
todas as alterações necessárias, decorrentes dos desenvolvimentos inesperados
do estudo, numa perspectiva de monitorização e por fim de comunicação das
conclusões do estudo.
Outro erro comum nos trabalhos submetido à RPMGF é supor que, por os sujeitos
de investigação não estarem identificados pelo nome, é o bastante para garantir
a confidencialidade e privacidade. De facto, há outros elementos, como a idade,
a naturalidade, a raridade do caso clínico, o contexto local, ou a instituição
de saúde onde decorreu o atendimento que indirectamente revelam a identidade de
um sujeito investigado, se não em termos públicos, pelo menos em termos da
comunidade de investigadores interessados em determinado assunto de
investigação. Devem ser tomadas todas as precauções para proteger a privacidade
de cada sujeito de investigação e a confidencialidade dos seus dados pessoais.1
Algumas questões se têm colocado em determinados trabalhos submetidos à RPMGF,
em termos da selecção dos sujeitos ou da amostra, que inviabilizam à partida a
publicação de determinados estudos, que de outra forma, respeitando os
preceitos éticos, poderiam ter interesse para publicação.
A participação de pessoas capazes de dar consentimento informado tem de ser
voluntária. Nenhuma pessoa capaz deve ser seleccionada para um projecto de
investigação sem que livremente o tenha aceite, ainda que possa ser apropriado
consultar membros da família ou líderes comunitários em alternativa.1
O potencial participante, depois de devidamente informado dos riscos,
benefícios, incómodos, conflitos de interesses, etc., tem de ser informado do
direito a recusar-se a participar no estudo ou de, em qualquer altura, revogar
o consentimento de participar sem represálias.1 Caso a proposta de integração
no estudo ou a recusa possa afectar a relação médico-doente, esta deve ser
feita por elementos devidamente qualificados, estranhos a esta relação, para
que o potencial sujeito do estudo não se sinta sob coação e tal não possa
prejudicar a relação médico-doente, no futuro.
Se o consentimento não pode ser efectuado por escrito, o consentimento verbal
tem de ser formalmente documentado e testemunhado.
O uso de dados ou de material humano identificáveis, incluindo material e dados
de biobancos ou repositórios afins, obriga a um pedido de parecer para a sua
recolha, guarda ou reutilização. Pode haver situações excepcionais em que a
obtenção de consentimento seja impossível ou impraticável, pondo em causa a
validade da investigação. Nestas circunstâncias, a investigação apenas pode ser
feita após apreciação e aprovação por uma Comissão de Ética para a
investigação.1
Para além das questões éticas a nível da investigação, abordadas pela
Declaração de Helsínquia, cuja não observação infelizmente tem condicionado a
recusa de alguns artigos com potencial de publicação, surgem por vezes também
questões de ética na publicação, nomeadamente a nível de autoria dos trabalhos
submetidos. Estas questões já foram exaustivamente abordadas em editorial
anteriormente publicado na RPMGF, cuja leitura se recomenda vivamente.5
Um autor é alguém que contribuiu substancialmente para elaboração do trabalho,
o que inclui a participação na concepção, escolha da metodologia, recolha e
análise de dados, escrita e edição do trabalho. É também alguém que assume a
responsabilidade pelo que foi publicado.6 Deste modo, aqueles que de alguma
forma deram contribuições relevantes em qualquer fase de investigação ou de
redacção do artigo, mas não preenchem todos os critérios de autoria podem ser
citados, com o devido consentimento, na secção dos agradecimentos.
Em trabalhos de investigação de dimensão local, com amostras de reduzida
dimensão, ou em casos clínicos desenvolvidos em contexto de cuidados de saúde
primários, por vezes, as listas intermináveis de autores colocam questões
relativas ao cumprimento de todos os critérios de autoria, merecedoras de
melhor cuidado.
Depois de isolados alguns dos erros mais frequentes na condução de trabalhos de
investigação, e depois de salientadas algumas recomendações patentes na nova
versão da Declaração de Helsínquia, é importante aconselhar os investigadores a
que, no momento de planearem e desenharem o protocolo dos seus trabalhos de
investigação, consultem desde logo as Normas de Publicação da revista à qual
desejam submeter o artigo, para que possam acautelar e reflectir acerca de
todos os preceitos éticos. A RPMGF tem normas2 explícitas que regulam estas
questões e tem publicado artigos de reflexão nesta área, como a Carta aberta a
um jovem investigador clinico.7 Este tipo de artigo constitui um precioso guia
de orientação nas complexas questões da ética em investigação biomédica. A sua
leitura previne erros por vezes impossíveis de remediar a posteriori, quando
estes são inadvertidamente detectados no decurso ou no final de um penoso
processo de investigação.
O corpo editorial da RPMGF está sempre atento aos problemas éticos, reflectindo
e ajustando as respostas às novas e velhas questões, face às novas realidades e
circunstâncias em que se desenvolve a investigação e a publicação de trabalhos
científicos. A principal preocupação e razão desta reflexão ética dinâmica é a
protecção dos doentes, a sua saúde e os seus direitos, a par do desenvolvimento
científico e do bem comum.