O fado e "as regras da arte: autenticidade", "pureza" e mercado
"Como é notório, é difícil falar de arte. Pois a arte parece existir em um
mundo próprio, que o discurso não pode alcançar. Isso acontece mesmo quando ela
é composta de palavras, como no caso das artes literárias, mas a dificuldade é
ainda maior quando se compõe de pigmentos, ou sons, ou pedras, como no caso das
artes não-literárias. Poderíamos dizer que a arte fala por si mesma: um poema
não deve significar e sim ser, e ninguém poderá nos dar uma resposta exata se
quisermos saber o que é o jazz."
(Geertz, 1997: 142)
Introdução
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre algumas questões relativas à
construção do caráter "genuíno" e "autêntico" do fado lisboeta como género
musical, em sua relação com o mercado. As reflexões aqui desenvolvidas são
parte de um trabalho de investigação mais amplo, de caráter etnográfico, sobre
as práticas contemporâneas do fado da cidade de Lisboa2 . Dentro deste tema
mais geral, definido como o das práticas fadistas contemporâneas, tem-se por
objetivo compreender dois conjuntos mais específicos de questões. O primeiro
deles relaciona-se à noção de circuito3 , ou seja, a forma como o fado organiza
a circulação de atores sociais - turistas, ouvintes eventuais, amantes ou
amadores do fado e profissionais de diversas gerações e classes sociais, com
maior ênfase nos dois últimos tipos de atores - entre uma variedade de lugares
de performance, identificando percursos e ritmos na dinâmica urbana. O segundo
conjunto de indagações diz respeito aos significados atuais do fado e à sua
relação com as questões de identidade, autenticidade, tradição e inovação. Esta
segunda dimensão envolve uma reflexão sobre a natureza do fado como fenómeno
artístico e social, que a investigação de terreno permite definir como tendo um
escopo muito mais amplo do que a sua mera inscrição como género musical, o que
vem a confirmar e aprofundar aquilo que já apontavam alguns autores (Carvalho,
1999; Castelo-Branco, 1994).
A investigação desenvolveu-se não só por meio de metodologias qualitativas,
principalmente da observação participante, mas também incluiu a realização de
entrevistas semiestruturadas4 . Do ponto de vista da delimitação geográfica, o
terreno situa-se na cidade de Lisboa e abarca apenas alguns sítios da Área
Metropolitana, na medida em que estes se constituem como pontos fundamentais,
atuais e históricos, dos circuitos fadistas. Do ponto de vista temporal, o
presente etnográfico torna-se mais rico quando visto à luz dos processos de
consolidação dos atuais modelos performáticos e da padronização dos lugares de
apresentação, que se desenvolveram a partir das décadas de 20 e 30 do século
XX. Nesse período, fez-se sentir a padronização imposta pelo formato do disco,
que veio limitar o tempo de cada canção ou fado à média de três minutos, bem
como o peso da mão do Estado Novo (1926-1974), que impôs uma série de medidas
de controlo sobre os ambientes de apresentação pública. Estas medidas
envolveram, entre outras coisas, a exigência de carteira profissional para os
executantes do fado e o registo e a censura prévia dos poemas, o que resultou
numa maior fixação do repertório. Além disso, regulamentaram-se os espaços e
criaram-se as casas típicas (donde se originaram as casas de fado5 como se
conhecem atualmente), onde o género podia ser apresentado junto com outras
expressões folclóricas. É importante notar que esse não foi um processo que
partiu apenas do Estado, visto que as casas também procuravam distanciar-se do
caráter marginal que marcava os espaços de apresentação pública do fado até o
início do século XX (Brito, 1999; Castelo-Branco, 2000; Klein e Alves, 1994;
Nery, 2004 e 2010). O caráter marginal foi interpretado mais tarde como
elemento marcante da singularidade do fado e retomado, principalmente a partir
da década de 80 do século passado, o que veio a gerar uma série de espaços de
fado amador, denominados de "fado vadio". Essa diversidade de tipos de lugares
de fado será retomada ao longo do texto porque é outro elemento a considerar na
análise da sua "autenticidade". A ideia central deste artigo surgiu durante a
primeira entrevista realizada, quando se ouviu da boca de um proprietário de
uma casa de fado num bairro histórico de Lisboa, um discurso sobre as origens
do fado, que servia não só para afirmar o seu caráter circular (no sentido
bakhtiniano do termo6 ), mas principalmente para definir a sua "essência" como
"pura expressão da alma", o que fez imediatamente lembrar os discursos dos
defensores da "arte pela arte" no século XIX, como analisados por Pierre
Bourdieu (1996). Fosse aquela uma fala isolada e pouco se teria a discutir. No
entanto, afirmações do mesmo tipo (embora com variadíssimos contornos)
emergiram em outras entrevistas e em inúmeras conversas informais durante a
realização da investigação de terreno. Assim, além de analisar as tensões no
campo do fado, pretende-se apontar para alguns limites e potencialidades da
aplicação dos conceitos de Bourdieu aos campos artísticos e, mais
especificamente, ao campo da música popular urbana, objetivo secundário, mas
não menos importante deste artigo. Ao analisar o material etnográfico recolhido
no terreno e confrontá-lo com a teoria, procura-se discutir, por um lado, a
produtividade do uso das categorias bourdianas por meio da análise da
convivência contraditória entre discursos de valorização do reconhecimento
público (e no âmbito do mercado da música, com especial atenção para as
apresentações ao vivo fora dos ambientes de concerto) e discursos da "arte
pura" e da expressão genuína de sentimentos. Por outro lado, analisam-se as
contradições presentes nas práticas e nas representações a elas relacionadas
que são, ao mesmo tempo, económicas e de "pura" expressão da subjetividade.
1. Discursos nativos
Como se referiu brevemente acima, na primeira entrevista realizada no âmbito da
investigação sobre as práticas fadistas, o discurso do interlocutor, o
proprietário de uma casa de fados, com cerca de 60 anos, nascido e criado em
Alfama, revelou um perfil algo surpreendente naquele momento. Perguntava-lhe,
na ocasião, o que pensava ser o fado hoje e ele referia-se continuamente ao
passado: este foi o primeiro elemento de surpresa. Em sua fala, enfatizava
especialmente um passado relacionado às origens do fado, trazendo à baila uma
das mais célebres versões mítico-históricas sobre as origens e a expansão
social do género: a relação amorosa entre a prostituta Maria Severa (1820-
1846), que viveu na Mouraria, e o Conde de Vimioso, que teria levado o fado
para os salões da nobreza (Brito, 1999; Nery, 2004). A articulação da narrativa
fez ressaltar os aspetos míticos, na medida em que o passado rememorado não foi
tratado como memória, mas como elemento da atualidade do fado, revivido nas
performances "autênticas". Tudo se passa não como se o passado constituísse o
presente, mas como se fosse ele próprio presente. Depois de explorar alguns
detalhes dessa história, o interlocutor passou a falar sobre a sua compreensão
pessoal do que é o fado, afirmando que é "um estado de alma" e que nunca
deveria "ser vendido como uma mercadoria". E acrescentou que "(...) o fado não é
um objecto, mas algo que acontece quando o fadista partilha as suas emoções
através da interpretação de um poema". De acordo com este interlocutor, "(...) o
fado verdadeiro não pode ser nunca uma forma de ganhar dinheiro", ou seja,
quando é cantado por compromisso profissional, não acontece verdadeiramente. O
segundo elemento de surpresa foi, portanto, ouvir da boca de alguém que dirige
um negócio no setor da restauração, cuja associação com apresentações de fado
ao vivo é intrínseca ao modelo do seu estabelecimento, e que, portanto,
sobrevive diretamente do fado, afirmar que a sua "verdadeira" expressão deve,
necessariamente, estar desvinculada de qualquer caráter comercial. Embora as
posições de sujeito e o próprio sistema de relações internas e externas ao
campo sejam completamente diversas, como se analisará a seguir, qualquer
semelhança com os discursos de Flaubert para os seus congéneres mais jovens, ao
recomendar que não escrevessem para os jornais e não vendessem o seu trabalho
para não corromper a sua arte (apud Bourdieu, 1996), não é mera coincidência: é
um mecanismo de construção da autenticidade comum a várias artes, em diversos
contextos sócio-históricos, mas que apresenta componentes específicas em cada
um deles, incluindo o fado, como se pretende deixar claro ao longo do texto.
Como se assinalou de passagem anteriormente, essas afirmações não seriam dignas
de nota se fossem apenas a opinião isolada desse proprietário de casa de fado.
O que chamou a atenção com a continuidade da investigação foi o facto de que
tal tipo de afirmação, assim como certas frases de impacto, como "Eu canto
porque a alma pede", longe de serem surpreendentes, são recorrentes. No
terreno, a repetição de discursos similares ocorreu tanto nas entrevistas
formais, quanto nas conversas informais. Talvez, mais surpreendente do que os
discursos, seja o contraponto entre palavras e ações. Vem à lembraça um dia em
que se entrevistou uma gerente de casa de fado, que proferiu o mesmo tipo de
discurso que relaciona o fado à expressão da alma; no entanto, mesmo sendo ela
também fadista amadora, estava a enviar mensagens de telemóvel e a conferir
contas durante a performance. Isto remete para um campo de contradições entre
prática e representações, que merece uma análise mais acurada. Mesmo em
entrevistas realizadas por outros investigadores e, no caso que se citará,
entre fadistas profissionais com alto reconhecimento, essa questão aparece. Por
volta dos finais de 1998 e o início de 1999, Amália Rodrigues declarava: "O
fado é uma coisa que não se procura, que não se vai comprar. O fado tem de
estar dentro das pessoas, conforme a alma que a pessoa tem e... sei lá... a maneira
como tem alma, quer dizer, tem de ter sensibilidade, tem de perceber aquilo que
diz" (Baptista-Bastos, 1999: 37). Para Amália, certamente, o seu sucesso
comercial não lhe retirava a genuinidade com que expressava a sua alma fadista.
Considerando-se um sistema de relações complexas e, por vezes, contraditórias,
posturas que estabelecem um corte radical entre o "verdadeiro fado" e a
atividade profissional confrontam-se, em diversos momentos, com a afirmação
comercial dos fadistas profissionais. Em um trecho do caderno de campo,
encontra-se a descrição de uma conversa bastante ilustrativa entre esta
investigadora, um fadista profissional e outro amador, ocorrida durante a
observação de uma sessão de fados em Alfama, no dia 3 de maio de 2010, que se
passa a citar a seguir:
"Na hora do intervalo, fui para a rua e comecei a conversar com dois
fadistas: um profissional de renome e outro amador, com quem me
encontro frequentemente em diversos ambientes de fado e a quem já
ouvi cantar muitas vezes. Perguntei ao profissional se ele não iria
cantar. Ele disse que não e a resposta desencadeou uma pergunta por
parte do fadista amador: porque o profissional (quase) nunca cantava
informalmente, ou seja, fora dos espaços em que era fadista convidado
ou atracção principal da noite? A resposta foi clara: 'Eu tenho um
público que paga para ouvir-me cantar e é para esse público, que me
aprecia, que eu canto. Não estou disposto a enfrentar uma audiência
que está, por acaso, num sítio em que também estou; alguns gostarão
de mim e saberão apreciar o que dou em cada fado; outros, não. Tenho
que preservar-me para o meu público'. A conversa continuou animada,
com o fadista profissional a falar de seus espectáculos... (...) Mais
tarde, quando o profissional já havia ido embora, o fadista amador
voltou-se para mim e disse: 'Está a ver do que eu falava antes? Ele,
como outros, importa-se mais em ganhar dinheiro do que com o fado.
Como é que se pode cantar com alma assim? Eu não canto por dinheiro;
só canto quando me apetece. Se não me apetece, se não sinto bom
ambiente, não canto. Quem é profissional tem de cantar o que lhes
mandam cantar ou o que o público pede. Eu canto somente os fados de
que realmente gosto e canto aqueles que estão mais em sintonia com o
meu estado de espírito num determinado dia'."
Embora o episódio relatado acima demonstre uma demarcação vincada entre as
posições de um fadista amador e outro profissional ("não se deve cantar por
dinheiro" em oposição a "canto para o meu público", que é, necessariamente, um
público pagante), no campo do fado, as fronteiras entre as práticas amadoras e
as profissionais são difíceis de estabelecer, porque comportam uma série de
práticas intermediárias entre a dedicação exclusiva à atividade fadista, a sua
conjugação com outra atividade profissional ou cantar "apenas" por gosto.
Alguns proprietários, ou mesmo funcionários de estabelecimentos que dão fados
regularmente e que ganham a vida com essa atividade, também cantam fado, muitas
vezes sem receber dinheiro diretamente pela performance artística. No sentido
oposto, amadores podem, eventualmente, ser contratados para cantar, ser
remunerados e, até, considerar isto positivo. Certa vez, uma fadista amadora,
em conversa informal, disse: "Eu acho bom porque gasto muito deslocando-me para
os fados. Dá, pelo menos, para pagar o combustível". Deve-se, também,
considerar que é difícil estabelecer uma fronteira bem delimitada entre, por um
lado, o fado "puro", feito com alma e pela alma, e, por outro, o fado
"comercial", especialmente quando se leva em conta que, do quotidiano do fado,
fazem parte as casas típicas, cujo público, em geral, não é o dos amadores de
fado. Um trecho da entrevista do célebre fadista, já falecido, Fernando
Maurício (o "rei sem coroa"), traz uma das versões dessa fronteira. Quando o
entrevistador pergunta se "o fado para turistas é uma adulteração", se não é
"uma pureza de fado", Fernando Maurício responde:
"Exactamente. (...) Não é a pureza. Eu estive nas grandes casas deste
país, na Adega Machado, estive no Faia e... não é pureza. A pureza, por
exemplo, é onde eu estou. É um restaurante que dá almoços e jantares,
e à sexta e sábado, o fado. E as pessoas dizem assim: 'isso é o
verdadeiro fado'" (Baptista-Bastos, 1999: 155).
Para contextualizar essa afirmação, é necessário dizer, em primeiro lugar, que
Fernando Maurício também era remunerado no restaurante mencionado, os
Ferreiras. Assim, percebe-se que, para este fadista e para alguns outros, a
questão não é cantar de maneira profissional (e remunerada), mas sim de
ambiente e, no caso específico, o ambiente caracterizava-se (e ainda se
caracteriza) pela presença de um público composto, sobretudo, por amantes do
fado e pela partilha das sessões com um conjunto de profissionais ou jovens
aspirantes a tal, reconhecidos pelo interlocutor como verdadeiros fadistas.
Maurício não o menciona na entrevista, mas, à época, cantavam com ele n'Os
Ferreiras, entre outros, Artur Batalha (conhecido como "o príncipe do fado") e
Ricardo Ribeiro, fadista jovem, mas que logo alcançou o reconhecimento da
crítica e do público. Em segundo lugar, vale relembrar que o público das mais
conceituadas casas de fado de Lisboa, como o Bacalhau de Molho, o Clube de
Fado, o Luso ou o Sr. Vinho, é composto, maioritariamente, por espectadores
estrangeiros. Mas isto não esgota a questão, porque, por um lado, essas mesmas
casas contam com elencos compostos por intérpretes altamente reconhecidos
dentro do próprio campo do fado, considerados "verdadeiros fadistas", merecendo
um lugar entre aquelas/es que cantam com alma. Por outro lado, nem todos os que
trabalham ou trabalharam em casas de fado consideram que o ambiente pode
macular a "pureza" do fado. Muitas vezes ouviu-se, tanto em situações formais
de entrevista quanto em conversas informais, que as casas de fado são como um
"laboratório" para os fadistas, na medida em que permitem aprender e treinar o
repertório dos fados "clássicos", colocar à prova a capacidade de entrega e
execução, testar a interpretação de novos poemas aplicados aos fados
tradicionais, entre outras coisas. Poder-se-ia multiplicar o rol das opiniões
divergentes no meio fadista. Contudo, o pequeno quadro construído permite uma
aproximação com a questão que este artigo visa enfrentar: considerando-se o
quadro teórico de Bourdieu, sobretudo a sua teoria dos campos, a analogia
entre, por um lado, o discurso que situa a autenticidade do fado, a partir da
sua definição como "arte pura", e, por outro, o discurso da "arte pela arte" do
século XIX, é apenas aparente. Vejamos o porquê, passando antes por uma breve
síntese da teoria de Bourdieu.
2. Bourdieu e a análise sociológica das artes
Embora a obra de Bourdieu seja do conhecimento do público leitor de ciências
sociais em geral - e, nisto, o público português não é exceção7 -, vale a pena
sumarizar alguns aspetos fundamentais do seu trabalho no que diz respeito à
reflexão sobre o campo literário e à definição de campo de maneira mais
abrangente. Aplicável a uma diversidade de âmbitos de relação social (economia,
religião, poder, ciências, arte e assim por diante), o campo é um espaço de
disputa. Sua estrutura "(...) é um estado da relação de força entre os agentes ou
as instituições engajadas na luta ou, se preferirmos, da distribuição do
capital específico" (Bourdieu, 2003a: 120). As estratégias de conservação ou
inovação partem das estruturas existentes para mantê-las ou transformá-las. No
caso do fado, uma das estratégias de conservação do campo e, portanto, de
afirmação de autores (conquista de autoridade específica), foi a proliferação
de composições de fados "castiços" ao longo da primeira metade do século XX.
Partindo das melodias de base dos fados Mouraria, Corrido e Menor,
considerados, desde então, os mais "tradicionais" ou "rigorosos", guitarristas
como Jaime Santos (1909-1982) e Armandinho (1891-1946) compuseram novos fados
tradicionais, como o Alfacinha, o Alvito, o Latino e o Sevilha, do primeiro, e
o da Adiça, o Alexandrino Antigo, o Estoril e o Penim, do segundo (Nery, 2004).
É importante ressaltar que, em ambos os casos, a virtuosidade e o caráter
inovador como intérpretes e acompanhadores também foi fator decisivo para a
consolidação desses guitarristas no campo, num interessante exemplo de
combinação entre conservação e subversão da estrutura de distribuição do
capital específico. Um aspeto que chama a atenção no próprio desenvolvimento da
teoria dos campos é a interação dinâmica entre o aparato conceptual e o
contexto histórico analisado. Dentro disso, uma das elaborações fundamentais de
Bourdieu, em As regras da arte, é a categorização de uma articulação específica
entre o campo literário e os campos económico e político nos meados do século
XIX. Sua interpretação daquele momento histórico permite-lhe identificar
claramente três posturas fundamentais dentro das artes literárias: a dos que
produziam para o mercado, a da literatura ou arte social e a da "arte pela
arte". Estas três categorias representam posições em disputa no campo, que
correspondem a uma articulação específica entre os diferentes habitus8 e as
estruturas de poder, no contexto de um processo de consolidação do mercado de
bens simbólicos em França e de autonomização do campo literário9. Podem-se
enumerar as vantagens dessa perspetiva sobre as artes. Ela permite olhar
através do discurso dos artistas, desvendando as fantasias, romantizações e
reelaborações sobre as suas práticas. Revela, ainda, o lado menos luminoso das
disputas estéticas, mostrando que os artistas não estão imunes ao conjunto de
determinações sociais e económicas, que afetam qualquer membro da sociedade,
mas que adquirem contornos específicos dentro de cada campo em particular. Sem
pretender dar conta da literatura crítica à análise de Bourdieu a respeito dos
campos artísticos, convém, contudo, assinalar que há uma gama variada de
autores que apontam para algumas limitações. A despeito do quadro teórico
consistente que constrói para analisar as disputas dentro dos campos artísticos
e para situar a criatividade num conjunto de relações sociais, que permitem e
moldam a sua existência, falta resgatar a especificidade do debate sobre a arte
de um ponto de vista interno às obras (Hennion, 1993 e 2003; Martins, 2004;
Prior, 2011; Sarlo, 1997). Em suma, deve-se reconhecer que a sua perspetiva
produz uma visão crítica da ideia de desinteresse e sacerdócio estético, mas o
fiel da balança fica desequilibrado porque desconsidera as "(...) resistências
propriamente estéticas que produzem a densidade semântica e formal da arte. O
problema dos valores fica assim liquidado, juntamente com os mitos da liberdade
absoluta de criação" (Sarlo, 1997: 144). Apontando para passagens mais
específicas de As regras da arte, Martins (2004) analisa a aproximação de
Bourdieu às obras literárias, procurando evidenciar aspetos pouco debatidos da
sua teoria geral dos campos, fazendo eco às críticas de Sarlo. Como ressalta o
autor, "(...) em que pese a produtividade de sua abordagem, ela muitas vezes
desconsidera a dimensão propriamente o a outras dimensões da experiência humana
que a rigor são bastante heterogêneas" (Martins, 2004: 64). Aprofundando essas
considerações, chama a atenção para o facto de que nem sempre a estrutura de
uma obra de arte é "(...) apenas 'a estrutura do espaço social no qual seu
próprio autor estava situado', pois ela pode ultrapassar este último (...) rumo à
sua própria existência singular como fenômeno estético" (idem:67). É certo que
Bourdieu reconhece, em algumas passagens de As regras da arte, que as obras
podem, por vezes, transcender os limites dados pelo campo, tendo potencial para
transformar o espaço social em que foram criadas, mas o autor não leva a sua
análise a uma reflexão mais profunda sobre esta possibilidade. Essa
desconsideração da especificidade das obras de arte faz com que Bourdieu as
equipare a mercadorias destinadas ao consumo ostentatório, dizendo que
compositores como Albinoni, Chopin e Vivaldi perderam o seu valor simbólico sob
o efeito do seu consumo alargado, assim como certos perfumes ou roupas de
grife. Mas será que isso acontece com todos os bens simbólicos? Tanto Martins
(2004) quanto Hennion (1993 e 2003) fazem comentários críticos a este tipo de
equiparação entre obras musicais e mercadorias comuns, pois desconsidera "(...)
aquilo que é mais singular na obra de arte: a transfiguração estética que ela
realiza e que lhe permite atravessar um percurso histórico de longa duração"
(Martins, 2004: 70). Ambos os autores também chamam a atenção para o valor
artístico específico de J. S. Bach, e Hennion (1993 e 2003) o faz com maior
profundidade, em função do seu estudo sobre a relação entre, por um lado, Bach
e a construção do discurso, do gosto musical e da própria noção do que é música
hoje no ocidente, sobretudo por sua valorização no século XIX, e, por outro,
por colocar em relevo a relação entre o compositor e os amadores atuais. Na
sociologia da música de Hennion, as determinações do habitus e do jogo de
forças no interior do campo são substituídas pelo conceito de mediação. Além do
exposto, convém relembrar que Bourdieu tinha uma confessada dificuldade de
falar sobre música. Em "A origem e a evolução das espécies de melómanos", o
autor afirma: "A música é, se assim se pode dizer, a mais espiritualista das
artes do espírito e o amor da música é uma garantia de 'espiritualidade'. (...) A
música é solidária da alma. (...) A música é a arte 'pura' por excelência"
(Bourdieu, 2003b: 163-164). Nesta passagem, reconhece a especificidade da
linguagem musical e as resistências propriamente estéticas que ela oferece,
apontando para o seu caráter "espiritual" e de arte "pura". Embora nesta
entrevista a reflexão não se aprofunde muito, pode-se dizer que a música é, de
todas as artes, a que menos se materializa, dependendo da sua interpretação e
do seu desenrolar no tempo. Nisto, equipara-se com outras artes performáticas,
mas, diferentemente da dança e do teatro, por suas propriedades físicas,
descola-se completamente do corpo do músico e dos instrumentos, sendo capaz de
atravessar barreiras espaciais, atingindo o espírito e o corpo do ouvinte.
Na mesma ordem de reflexões sobre o caráter inefável da música, Bourdieu afirma
que: "As experiências musicais estão enraizadas na experiência corporal mais
primitiva. (...) A mais mística, a mais 'espiritual' das artes talvez seja
simplesmente a mais corporal" (idem: 165-166). Como diria Claude Lévi-Strauss
(1997: 69): "A música não tem palavras. (...) exclui o dicionário". Nela, a
relação entre significante e significado é completamente flutuante e os seus
significados só se revelam no conjunto e não em cada fonema ou sintagma.
Certamente, no caso da música, é muito mais difícil estabelecer homologias
entre a estrutura das obras e a estrutura social ou a estrutura do espaço
social onde se move o artista, como Bourdieu faz com a Educação sentimental, de
Flaubert. O que acontece mais frequentemente na obra de Bourdieu, quando o
assunto é música, é o estabelecimento de relações entre o gosto e o habitus,
considerando que os gostos musicais permitem classificar "infalivelmente" as
pessoas em termos de suas posições sociais (Bourdieu, 1979, 2003b). Ao
relacionar gosto e habitus, o autor refere-se a duas formas de adquirir o gosto
musical: pela "familiaridade originária" ou "pelo gosto passivo e escolar do
amador de gravações" (2003b: 167). Entretanto, até que ponto essa afirmação é
universal (mesmo se aplicada exclusivamente às sociedades ocidentais), ao se
considerarem os variados contextos sociais em que a música é apreciada? Até
para o caso da França contemporânea, como demonstram os trabalhos de Antoine
Hennion, há uma diversidade grande de modalidades de aprendizado, apreciação e
uso da música, que não encontram uma correspondência tão regular em relação às
divisões de classe social. Além disso, convém apontar, tendo em vista a análise
do objeto específico deste artigo, que há um fator não considerado na abordagem
de Bourdieu, relacionado às expressões populares: geralmente, os seus amadores
estão ligados a elas justamente por uma "familiaridade originária", que
convive, em muitos casos, com a apreciação de gravações. É o que acontece no
fado. Ao considerar o funcionamento das instâncias de conservação e
consagração, no âmbito da produção e da circulação de bens simbólicos, Bourdieu
praticamente ignora a existência de um setor de produção cultural que se
desenvolve em interação dinâmica e contraditória em relação aos dois âmbitos
por ele definidos: o das expressões populares de tradição oral.
As chamadas "culturas populares" são, como define Hall (2003), um espaço de
disputas, sobretudo quando está em jogo a sua utilização como símbolos da
nacionalidade e da especificidade local. Sobre elas, pesam os juízos e
processos de interpretação e ressignificação empreendidos pelo campo erudito,
como pesam as interações com o mercado de bens simbólicos, que transformam
práticas de vivência quotidiana em mercadoria; também as "culturas populares"
reinventam-se, utilizando, nos seus processos criativos, os produtos da
indústria cultural. Este é mais um ponto importante a considerar na análise do
fado, pois, atualmente, os processos de aprendizado pela via da transmissão
direta, face a face, convivem com o consumo de discos, de rádio, de filmes e da
utilização de diversas fontes via Internet. Ao especificar as características
próprias do campo da indústria cultural, diferenciando-o do campo de produção
erudita, Bourdieu afirma:
"O sistema da indústria cultural - cuja submissão a uma demanda externa se
caracteriza, no próprio interior do campo de produção, pela posição subordinada
dos produtores culturais em relação aos detentores dos instrumentos de produção
e difusão
- obedece, fundamentalmente, aos imperativos da concorrência pela conquista de
um mercado, ao passo que a estrutura de seu produto decorre das condições
econômicas e sociais de sua produção" (Bourdieu, 1992: 136).
Na visão de Bourdieu, a indústria cultural produz uma arte, na qual as
articulações estéticas se subordinam às decisões comerciais, justamente por ser
voltada para um "público médio". Entre as contribuições do autor para a análise
do consumo cultural está a sua ênfase em mostrar as interrelações das classes
sociais, estilos de vida e padrões de consumo através da noção de habitus, que
permitiria analisar, no campo da música, a correlação entre determinadas
frações de classe e estilos musicais ou subestilos dentro de um determinado
género, como é o caso aqui. É por isso que, apesar de todas as ressalvas e do
facto de nunca ter tomado a música como objeto de análise aprofundada, Bourdieu
influenciou um grande número de investigadores na sociologia da música,
gerando-se um conjunto bastante significativo de trabalhos acerca dos mais
variados géneros em diversos países (Prior, 2011).
3. O campo do fado
Ao ensaiar uma interpretação do universo fadista sob a perspetiva da teoria de
Bourdieu, pergunta-se: como se forma e se consolida o campo ou o subcampo do
fado? E, sobretudo, qual é a sua configuração atual? Para responder a estas
questões, é necessário ao menos uma nota histórica, considerando a formação do
género na primeira metade do século XIX e a sua paulatina expansão ao longo do
século XX. Por mais importantes que sejam as mudanças nos ambientes, uma
componente essencial da vida do fado, nos seus quase dois séculos de existência
(de acordo com a teoria hegemónica hoje sobre a origem do fado), é a sua
partilha em espaços de proximidade (tascas, restaurantes, tertúlias). Mas,
mesmo esses espaços de proximidade podem ser tipificados como mais ou menos
"verdadeiramente" fadistas. Em geral, os diversos agentes do meio atribuem um
caráter mais "genuíno" aos espaços marcados pela espontaneidade e pela
gratuidade, especialmente as tascas e as tertúlias de amadores de fado em
sociedades recreativas ou outros lugares. No entanto, como se viu na primeira
parte, as avaliações não são unívocas e, sobretudo a partir da década de 80 do
século XX, mesmo o caráter "espontâneo" de determinados estabelecimentos tem
sido sublinhado, por exemplo, por meio da oferta e anúncio de "fado vadio", ou
seja, amador e sustentado por quem aparece disposto a cantar, para atrair
público. Em alguns casos, é patente o caráter construído da "espontaneidade".
Retomando um pouco da história da expansão do género, o fado acompanhou a
própria formação de um mercado de bens simbólicos em Portugal, primeiro com um
mercado de partituras, desde o século XIX e, depois, ao longo do século XX, com
o desenvolvimento da indústria fonográfica, do rádio, do cinema, do teatro de
revista e da televisão (Nery, 2004). Considerando os aspetos relacionados à
discografia, é de notar que o fado foi gravado desde o início do século XX,
quando a indústria ainda não estava implantada em Portugal e técnicos
britânicos deslocavam-se ao país para registar as interpretações dos fadistas
da época (Vernon, 1998). Ao longo desse século, as gravações tiveram impulso
com o surgimento de companhias portuguesas, a partir dos anos 30. Quanto ao
prestígio do género, embora o fado tenha vivido um período de "baixa" depois do
25 de Abril de 1974, vem vivendo uma fase ascendente desde a década de 90
(Nery, 2004). Novos fadistas e gravações "clássicas" do género têm sido
lançados e relançados. Aliás, o fado é uma "presença constante, ainda que
minoritária" nos catálogos das editoras e encontra-se entre as edições mais
vendidas no país (Neves, 1999: 110). Além disso, o fado tem sido historicamente
o género privilegiado por meio do qual a música popular portuguesa se
internacionaliza, exceção feita à música "pimba", que tem enorme projeção junto
das "comunidades" portuguesas emigradas, bem como a um ou outro grupo ou
artista que se projeta internacionalmente, como foi o caso dos Madredeus,
sobretudo ao longo dos anos 90 do século XX, beneficiando-se também da
consolidação de um mercado de world music. Inegavelmente, o fado tem um lugar
no mercado da música e seu papel não é menos relevante na dinâmica cultural e
turística lisboeta, com numerosos concertos, estabelecimentos públicos com
sessões regulares e tertúlias eventuais. Ou seja, ao analisar o campo do fado,
convém considerar um conjunto de práticas diversas, mas interligadas, com
variados graus de mercantilização. Ainda é importante lembrar que grande parte
dos fadistas profissionais tem algum disco gravado, mesmo que seja sob a forma
de edição de autor. Em relação ao trabalho de campo que nutre este artigo,
considera-se que é cedo para proceder a uma tipificação dos sujeitos no campo
do fado. Tal classificação, provavelmente, emergirá no final da análise dos
dados recolhidos. No entanto, vale o exercício de colocar alguma ordem à
informação. Fazendo uma redução a partir dos exemplos apresentados e
considerando-se apenas a dimensão da relação com o mercado, definir-se-iam,
provisoriamente, três categorias: a dos fadistas no mercado; a dos fadistas
"moderados" (aqueles que assumem uma posição intermédia, cantando de forma
remunerada ou não, apresentando-se em espaços profissionais ou em situações
informais); e a dos fadistas antimercado. Um dos problemas que emergem desta
classificação provisória é que, diferentemente das categorias identificadas por
Bourdieu quanto aos literatos dos meados do século XIX em França, não há uma
correspondência entre as posições no mercado de bens simbólicos e a pertença a
uma classe social no campo do fado no século XXI.
Alguns casos de fadistas com carreira profissional são esclarecedores quanto à
desconexão entre a situação de estar em pleno no mercado e o status social de
origem dos fadistas. Pode-se perguntar, por exemplo: o que diferencia, para
além do pertencimento de classe, fadistas como Jorge Fernando, nascido em um
bairro social lisboeta, de Camané, filho de uma família de classe média, e de
Nuno da Câmara Pereira, portador de uma herança não só no fado (o que o coloca
em pé de igualdade com outros fadistas, incluindo o próprio Camané), mas também
entre a nobiliarquia portuguesa? A mesma pergunta poderia ser feita quanto às
fadistas mulheres: o que diferencia Aldina Duarte, filha de uma criada, de
Mariza, cuja família retornou de Moçambique para Portugal em 1977, e da médica
Kátia Guerreiro?10 Cada um/a dos/as fadistas mencionadas/os tem uma posição
sólida no mercado do fado, mas habitus bastante diversos.
Poder-se-iam multiplicar os exemplos para as três categorias, mas, para o
leitor não muito familiarizado com o universo do fado, de nada adiantaria. O
que é importante ressaltar é a não coincidência entre a posição no mercado e
uma dada origem de classe social. Em relação aos fadistas profissionais, a
exigência de que se exponham pouco é uma condição para singrarem na carreira,
muitas vezes imposta pelos produtores, mas que, de qualquer modo, está em
consonância com o uso da "raridade" como forma de distinção. Quanto aos
fadistas amadores ou em processo de profissionalização, encontra-se a mesma
variedade de origens sociais. O que complica ainda mais a elaboração de uma
classificação é que, ao contrário do que Bourdieu pode identificar, nos meados
do século XIX, em relação aos literatos, não é possível estabelecer uma
correspondência, no atual campo do fado, entre posições de classe, posições em
relação ao mercado e posicionamentos estéticos. Para considerar apenas os
fadistas mencionados, todos eles têm os pés bem fincados num repertório
consagrado, seja ele o de Amália Rodrigues ou os do fado tradicional11
propriamente dito (de qualquer modo, um repertório que é aceite de acordo com
os cânones do género). O caso de Jorge Fernando é bastante interessante. Além
de ser produtor e de atuar numa casa de fados quase todos os dias, compõe
inúmeros fados canção, muitos deles sucessos nas vozes de Ana Moura e Mariza,
entre outros fadistas; mas isso caminha pari passu com a composição e
interpretação de letras para fados tradicionais; e, se alguma vez o seu
estatuto de "verdadeiro" fadista foi questionado, isto nunca abalou o seu
reconhecimento público como tal e muito menos o reconhecimento entre os pares.
Muitos outros comentários poderiam ser tecidos sobre a diversidade estética no
campo do fado. Convém apenas pontuar, a título de exemplo, que Camané
geralmente não canta e não grava poemas que têm por temática o ambiente
tauromáquico ou os temas vinculados a tragédias num estilo passadista (os ditos
"fados da desgraçadinha"); o mesmo se pode dizer de Aldina Duarte, que canta
muitos poemas de autoria própria. Ambos seguem uma linha de atualização das
temáticas do fado. Se o fado é quotidiano, é vida, eles buscam colocar os seus
elementos existenciais naquilo que fazem. Outros jovens fadistas têm feito o
mesmo. Em entrevista a esta investigadora, um jovem fadista do Alentejo disse:
"Eu ponho lá o meu espaço. Não poderia deixar de pôr, porque o fado é isso, é o
quotidiano da gente". Outra consideração interessante desse intérprete referiu-
se ao valor da tradição. Ele usou a mesma metáfora utilizada por outro fadista,
guitarrista, muito mais velho. Dizia que a tradição é um edifício a partir do
qual se podem construir outras coisas, desde que se tenha domínio sobre ela. O
fadista mais velho disse que não se importava com os projetos "alternativos" em
relação ao fado, nem com a criação de formas híbridas, mas o seu "negócio" era
a tradição, o "grande edifício do fado". Num sentido ao mesmo tempo igual, de
consideração acerca do que se construiu no passado, e diferente, de inovação
temática, o fadista jovem considera a tradição como um manancial, que deve ser
conhecido em profundidade, para se poder, então, utilizar a linguagem do fado
com conforto, para se falar das realidades contemporâneas. Muito mais haveria
para falar sobre as características estéticas do fado e as suas diversas
versões dentro da tradição, em consonância com ela ou, mais raramente, em clara
negação. No entanto, o que se revela a partir de uma análise preliminar,
inspirada nos conceitos de Bourdieu, é um campo multifacetado e que não permite
uma classificação dos sujeitos de acordo com categorias estético-sociais bem
definidas. As contradições entre práticas e representações fazem parte
inextrincável da própria afirmação do género e dos seus profissionais no campo.
Conclusão
Como muitas outras formas de arte, o fado vive as contradições entre a
manutenção dos seus modos de fazer e ambientes "tradicionais", por um lado, e o
desenvolvimento das suas condições de produção e reprodução (em parte,
dependentes do mercado da música), bem como da viabilidade económica da sua
promoção no mercado nacional e internacional, por outro. Como se procurou
demonstrar no percurso, embora a teoria dos campos de Bourdieu se mostre útil
para a análise do ambiente fadista, sobretudo como um parâmetro ou linha de
comparação elucidativa dos problemas em análise, as variáveis são muito
diversas e não podem ser subsumidas ao esquema teórico do autor. Seguindo o
melhor exemplo de Bourdieu, de deixar-se guiar pelos dados da investigação de
terreno, talvez se possa falar de uma modelação singular do habitus no ambiente
fadista lisboeta, dentro do qual há um reordenamento específico das disposições
de origem e de formação sociocultural. Afinal, talvez o fado seja um modo
próprio de sociabilidade, como arriscam afirmar alguns interlocutores. Um
fadista bastante reconhecido entre os pares afirma: "A palavra fado está em
toda a parte, mas o fado não está". Como expressa o texto em epígrafe, é
difícil falar sobre arte. Mas vale a pena enfrentarmos essa tarefa como
cientistas sociais, sem nos furtarmos a analisar a sua especificidade, tanto
para iluminar os terrenos de investigação, quanto para reelaborar as nossas
ferramentas teóricas. Dentro do caráter provisório em que se afirma esta
interpretação, falta elaborar uma pequena nota sobre três problemas, que
merecem uma atenção mais detida no futuro: 1) a relação entre o fado e a
dinâmica urbana contemporânea; 2) a avaliação das performances do fado; 3) o
impacto dos processos de patrimonialização. Quanto à relação entre expressão
musical e dinâmica urbana, ao destacar três expressões sonoras de natureza
vocal (e não tecnológica) que marcam a paisagem sonora de Coimbra, sendo uma
delas a canção, Fortuna (2008: 49) refere-se a elas como sonoridades em
"resistência à uniformização das paisagens sonoras de hoje" sob a influência da
globalização. Esse processo, inserido no espaço urbano, parece estar em
consonância com o crescimento da prática amadora de música, como descrita por
Hennion (1993 e 2003). Em outro artigo (Mendonça, 2008), sugeriu-se que o
engajamento com expressões culturais populares de cunho tradicional é um
fenómeno que se generaliza, sobretudo nas classes médias mais escolarizadas,
como reação à despersonalização e desenraizamento impostos pela dinâmica da
sociedade contemporânea.
Quanto ao segundo problema, analisaram-se vários elementos do ambiente e do
repertório que modelam as avaliações da "autenticidade" de fadistas. Conviria,
contudo, chamar a atenção também para os parâmetros mobilizados para avaliar as
performances propriamente ditas. Apenas a título indicativo, é de se referir
que os parâmetros clássicos de afinação e ritmo não são, necessariamente, os
mais valorizados nas performances fadistas, mobilizando-se como critério de
avaliação a eficácia da transmissão da mensagem e da emoção, veiculadas,
sobretudo, pela interpretação do poema. Quanto aos processos de
patrimonialização, a recente candidatura do fado ao registo pela United Nations
Educational, Scientific and Cultural Organization (Unesco) como Património
Imaterial da Humanidade12 trará, provavelmente, novos mecanismos de consagração
e legitimação para o ambiente fadista. O próprio plano de salvaguarda, já em
marcha antes da aprovação pela Unesco, promove a valorização dos acervos
fonográficos e iconográficos, as ações de divulgação, educativas e de promoção,
fazendo, inevitavelmente, uma seleção de intérpretes dentre os numerosos
fadistas do passado e em atividade. Somente a observação e a análise da
continuidade das ações poderão lançar luz sobre os impactos do processo.
Concluindo, longe de ser mera romantização ou ideologia, os discursos do fado
que motivaram este artigo são expressão das contradições no campo, que resultam
de um equilíbrio bastante delicado entre origens sociais, posições em relação
ao mercado e opções estéticas, que não são livremente tomadas, mas que escapam
a uma determinação de classe supostamente previsível de antemão pela teoria.
Notas
1 Pós doutoranda - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES
UC) (Coimbra, Portugal). Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(FCT). E-mail: lumendonsa@uol.com.br
2 Ficou excluída da investigação, por constituir se num género completamente
diverso em termos de origem e de características estéticas (poéticas, melódicas
e interpretativas), a canção de Coimbra.
3 Utilizamos aqui a noção como desenvolvida por Magnani (2002). Para dar uma
breve definição, pode se dizer que os circuitos são constituídos por um
conjunto de lugares espacialmente distanciados, mas com funções e significados
similares, dentro dos quais os sujeitos podem estabelecer diversos percursos
individuais.
4 Foram entrevistadas cerca de 20 pessoas do universo do fado, entre as quais
se encontram, principalmente, proprietários de casas de fado e fadistas
profissionais e amadores, distribuídos em diversas faixas etárias e com
variados graus de escolarização.
5 Os restaurantes ou as casas de fado atingiram maior consolidação nas décadas
de 50 e 60 do século XX e foram paulatinamente eliminando a presença do
folclore, bem como os estrados ou palcos, o que levou a abolir a separação
entre público e fadistas.
6 Ao analisar a presença de elementos de cultura popular na obra de François
Rabelais, Bakhtin (1999) promove uma reflexão mais ampla sobre as relações
entre culturas populares e hegemônicas ou oficiais ao longo da história
ocidental. O autor mostra como ambas moldam se e definem se mutuamente e criam
fronteiras por vezes menos ou por outras mais permeáveis, com transposição de
conteúdos. Esse processo de mão dupla, de modelações recíprocas e "empréstimos"
é chamado de circularidade cultural.
7 Em Portugal, vários têm sido os autores a utilizarem criticamente a teoria de
Bourdieu. Para um conjunto de debates, envolvendo diversas áreas de
investigação sociológica, veja se Pinto e Pereira, 2007.
8 O habitus é um "(...) sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem
implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores, é
gerador de estratégias que podem ser objetivamente afins aos interesses
objetivos de seus autores sem terem sido expressamente concebidas para este
fim." (Bourdieu, 2003a: 123).
9 Sobre a autonomia dos campos, Bourdieu (1996: 246) explica: "O grau de
autonomia de um campo de produção cultural revela se no grau em que o princípio
de hierarquização externa aí está subordinado ao princípio de hierarquização
interna: quanto maior é a autonomia, mais a relação de forças simbólicas é
favorável aos produtores mais independentes da demanda e mais o corte tende a
acentuar se entre os dois pólos do campo, isto é, entre o subcampo da produção
restrita, onde os produtores têm como clientes apenas os outros produtores, que
são também seus concorrentes diretos, e o subcampo da grande produção, que se
encontra simbolicamente excluído e desacreditado".
10 As fadistas e os fadistas aqui escolhidos não representam nenhum juízo de
valor por parte da investigadora, nem refletem gostos pessoais. Figuram no
artigo apenas em função do seu caráter exemplar para o que se quer demonstrar e
da sua acessibilidade a um público mais vasto do que aquele estrictamente afeto
ao fado. Os discos de qualquer um deles podem ser encontrados nas grandes
superfícies ou boas lojas do ramo.
11 Grosso modo, a diferença entre fado tradicional e fado canção estabelece se
por uma série de componentes poético musicais. Os fados tradicionais, via de
regra, não possuem refrão e são formas musicais fixas (harmónica e às vezes
também melodicamente) às quais se podem aplicar diversos poemas, desde que haja
uma adequação entre os compassos da música e a métrica dos poemas, em geral,
quadras, quintilhas, sextilhas ou décimas. Os fados canção têm uma música
composta especificamente para um poema e, salvo raríssimas exceções, possuem
refrão. Essa diferença também se expressa nos momentos de performance: quando
um/a fadista vai cantar um fado tradicional, pede o ao guitarrista e ao viola
pelo nome da música (fado Menor, Bailado, ou Alberto); quando vai cantar um
fado canção, diz o nome do poema, por exemplo, "Nem às paredes confesso" ou
"Triste sina".
12 No momento em que se realizava a revisão final deste artigo, mais
precisamente em 27 de novembro de 2011, o fado foi incluído na lista da Unesco.