Reverberações da medicalização: paisagens e trajetórias informacionais em
consumos de performance
Introdução
O consumo de medicamentos, e outros produtos, para finalidades de performance –
como seja o desempenho físico ou cognitivo –, particularmente entre os jovens,
constitui um tópico crescentemente promovido em agendas de pesquisa que vão
renovando o nexo histórico (Foucault, 2003a) entre preocupações de saúde
pública e ciências sociais, lato sensu. Compreendendo desde medicamentos
aprovados para fins terapêuticos, consumidos com finalidades de desempenho
(como o uso de psicofármacos na gestão quotidiana de situações pontuais de
ansiedade), até uma crescente gama de suplementos alimentares comercializados
especificamente para otimizar determinadas formas de performance (como
suplementos vitamínicos para o desempenho cognitivo ou suplementos proteicos
para o desenvolvimento de massa muscular), várias dimensões podem concorrer
para estruturar estas práticas de consumo – como sejam as perceções de risco
(Raposo, 2010) associadas a esses recursos pelos indivíduos ou as suas
orientações mais amplas face à saúde (Pegado, 2010). As fontes de informação,
em particular, na sua materialidade social, tendem a tomar alguma saliência
nessa discussão.
Contudo, a acumulação de evidência empírica a partir daquele nexo de pesquisa
pode, ao mesmo tempo, exercer algum condicionamento normativo da
problematização sociológica deste objeto, ao potenciar um fechamento analítico
e empírico em torno das dinâmicas consideradas desviantes na estruturação do
fenómeno. Visando este artigo analisar sociologicamente a estruturação de
disposições e práticas de consumo para fins de performance, a partir do ângulo
de análise das fontes de informação associadas a esse fenómeno, procurar-se-á,
pois, sustentar uma abordagem que identifique e obvie os riscos metodológicos e
analíticos daquele fechamento.
Em primeiro lugar, aprofundando a diversidade de papéis que as fontes de
informação podem desempenhar na organização de disposições e práticas de
consumo terapêutico. Esse aprofundamento será discutido como uma necessidade
analítica em função da morfologia das paisagens informacionaiscontemporâneas, e
operacionalizada a partir da noção de trajetórias informacionais.
Segundo, operando uma simetrização (Latour, 2005) de todas as fontes de
informação potencialmente envolvidas na difusão e na organização dos consumos
de performance, ou seja, incorporando-as de igual modo na análise
independentemente do seu estatuto normativo. Por estas vias se visa captar a
potencial diversidade de dinâmicas sociais presentes na estruturação deste
fenómeno e a forma como se articulam, melhor discriminando o seu lugar
explicativo.
Em particular, as dinâmicas de farmacologização (Lopes, 2003), traduzindo a
centralidade e difusão do medicamento como ferramenta terapêutica e as
possibilidades que oferece de gestão quotidiana da existência incorporada dos
indivíduos, vêm constituindo um quadro indispensável para a compreensão dos
consumos terapêuticos (Lopes, 2010) em geral, e aqueles especificamente
dirigidos à performance. Contudo, a dialética constitutiva da farmacologização
com os processos de medicalização (Conrad, 2007), pelos quais cada vez mais
aspetos da vida humana são categorizados e regulados pela medicina (por via,
entre outras, do medicamento), tem sido menos explorada. As fontes de
informação associadas aos consumos de performance, abordadas de forma
simetrizada, constituem precisamente uma dimensão privilegiada para discutir o
eventual entroncamento desse fenómeno nos próprios processos de medicalização,
a sua articulação com o campo da saúde e o seu enraizamento nos contextos de
ação dos indivíduos. Será com essa abertura de campo que concluiremos esta
análise.
O suporte empírico desta discussão provém de um projeto de investigação sobre
consumos terapêuticos de performance na população jovem em Portugal1 e é
constituído por dados de um inquérito por questionário (autoadministrado) a
nível nacional (n=1483), construído – numa estratégia de métodos mistos
(Rodrigues, 2010) – após a condução de dez grupos focais (n=57) como técnica
exploratória. A amostra do questionário – por quotas, não proporcional –
contempla estudantes universitários (de diversos cursos, nas áreas de Saúde,
Artes, Engenharia e Ciências Sociais) e jovens trabalhadores sem frequência
universitária (trabalhando em call-centerse mega-stores), com idade
compreendida entre os 18 e os 29 anos.
1. Paisagens e trajetórias informacionais em consumos terapêuticos: uma
abordagem sociológica
“it is possible for something to be both a quantum of information and
a vector of meaning”
David Foster Wallace, «Deciderization 2007 – A Special Report»
Debruçando-se este texto sobre a relação entre fontes de informação e práticas
sociais de consumo terapêutico – para o caso, de medicamentos e outros
produtos, para fins de performance –, essa relação carece de uma
problematização sociológica prévia. Carece-o tanto mais quanto sobre essa
relação recai socialmente um quadro de pressupostos normativos anexados às
lógicas e às estruturas de regulação social moderna do campo da saúde,
decretando a primazia do conhecimento científico produzido por sistemas
periciais (Giddens, 1990) na prescrição e validação das práticas dos
indivíduos. Independentemente da legitimidade social que possa ser associada a
esses pressupostos, a sua reprodução em modelos de análise sociológicos tende a
truncar o seu potencial explicativo. Por um lado, tende a excluir da análise os
efeitos da ação pericial (e.g. médica ou farmacêutica), cuja legitimidade
social a isenta de explicação. Por outro, só tende a problematizar as práticas
dos indivíduos quando estas visivelmente incorrem num desvio social face ao que
pericialmente se define como legítimo ou desejável.
A normatividade pericial pode assim configurar um motor da problematização
social de práticas sociais, sendo ao mesmo tempo excluída como uma variável na
explicação dessas práticas. Ora, dada a vasta disseminação social do
conhecimento e regulação pericial nas sociedades modernas – como seja, na
saúde, pelos processos de medicalização –, essa exclusão é logicamente
contraditória com uma explicação sociológica cabal da generalidade dos
fenómenos sociais neste campo, mais ou menos desviantes. A problematização
social dos consumos de performance constitui-se precisamente como um caso
exemplar daquelas potenciais limitações.
Para atestar de uma genealogia histórica de preocupações e práticas de gestão e
melhoria do desempenho, do plano cognitivo ao físico, os gregos mostram-se,
como habitualmente, disponíveis, contemplando desde a técnica de mnemónica
visual que fazia de Simónides a testemunha ocular ideal, ao criativo emprego de
um bezerro por Mílon de Crotona na conceção e execução de um princípio de
sobrecarga no seu treino atlético. Contudo, a preocupação pública com essas
práticas não colhe da mesma ancestralidade.
De facto, a melhoria do desempenho não se converte filosoficamente em problema
social tanto de moto próprio, quanto a partir do momento em que as suas
modalidades operativas, quais tecnologias do self(Foucault, 2003b), começam a
deslocar-se para a esfera das práticas de consumo – como substitutivas ou
coadjuvantes do exercício das faculdades cujo desempenho se visa otimizar – e
particularmente na medida em que os recursos consumidos começam a imiscuir-se
no campo regulado do medicamento, fora da prescrição médica. Casos exemplares
dessa dinâmica – conquanto muito variáveis os seus níveis de disseminação
social – vão sendo regularmente chamados à atenção pública, como o emprego do
metilfenidato (e.g. Ritalina) para o desempenho cognitivo (Forlini e Racine,
2009) ou do modafinil na customização do sono (Williams et al., 2008). É, pois,
essa dinâmica particular que suscita a problematização social da questão mais
ampla da gestão da performance, da qual se constituirá como sinédoque.
Tal induz um conjunto de restrições a uma análise mais lata do fenómeno.
Primeiro, reduzindo a questão da gestão da performance à sua expressão em
práticas de consumo, minimiza a interrogação dos processos sociais que suscitam
a própria premência da figura da performance no quotidiano dos indivíduos e da
disseminação de disposições para desenvolver práticas dirigidas a esses fins.
Segundo, restringindo-se ao uso de medicamentos, obscurece padrões de
alternativismo ou pluralismo terapêutico (Lopes, 2010; Clamote, 2008), no uso
alternativo, simultâneo ou alternado, de outros recursos para os mesmos fins.
Terceiro, dentro do uso de medicamentos, restringindo-se ao seu uso fora da
prescrição médica, negligencia-se o papel (direto e indireto) desta na
disseminação dessas práticas, exponenciando a influência de outras fontes, como
as redes de sociabilidade ou a internet.
Com o propósito de abrir a análise dos consumos de performance simultaneamente
à diversidade das suas manifestações, e à densidade dos seus processos de
estruturação, o foco empírico desta pesquisa procurou precisamente alargar-se:
a consumos para lá do medicamento, englobando outros recursos (como
medicamentos naturais ou suplementos alimentares) cujas propriedades
ergonómicas (Geest e Whyte, 1989), à imagem do medicamento, potenciam a sua
apropriação pelos indivíduos; a consumos para diferentes finalidades de
desempenho (neuro/cognitivo e físico/corporal); e a inquiridos em diferentes
contextos (universitários e laborais) de potencial geração e disseminação de
necessidades e preocupações relativas ao desempenho.
Na análise do papel das fontes de informação na geração de disposições e
práticas de consumo de performance visa-se assim criar condições para,
independentemente do seu estatuto normativo, captar a potencial diversidade de
fontes associadas a diferentes tipos e circunstâncias de consumo.
Contudo, captar a diversidade de fontes associadas a estes consumos de forma
simetrizada não se basta na análise da relação entre fontes de informação e
práticas de consumo. O indicador mais imediato dessa relação constitui a
referenciação de um consumo por uma dada fonte. Contudo, limitar-nos a esse
indicador atomiza analiticamente o papel que cada fonte pode desempenhar na
geração de práticas de consumo, em função apenas de as ter referenciado ou não.
Tal negligencia o facto de outras fontes poderem desempenhar outros papéis na
organização social desses consumos, para lá da referenciação, que podem
condicionar a prioria sua própria existência e a posterioria sua eficácia na
indução do consumo, bem como a forma como ele se efetua (por exemplo, em termos
de dosagem ou de articulação com outros consumos ou práticas).
Há, pois, um risco metodológico de reavivar pressupostos hipodérmicos (Wolf,
1985) na relação entre fontes de informação e práticas sociais, atribuindo um
certo automatismo social à referenciação de recursos. Esse risco é também
reforçado pela preocupação normativa que aquela relação entre fontes e práticas
suscitou na esfera da regulação pericial com o advento da internet,
nomeadamente a da perda de uma tutela pericial da informação sobre saúde
dispensada aos indivíduos. O imaginário social de ubiquidade informacional
associado à internet – qual biblioteca borgesiana com melhoria algorítmica do
desempenho – derivou, quase como ilação filosófica, o pressuposto de que toda a
informação se passa a equivaler, na medida em que deixe de ser normativamente
filtrada. Qualquer informação de qualquer fonte poderia assim produzir
potencialmente os mesmos efeitos de autoridade retórica (Kroll-Smith, 2003)
sobre os indivíduos. Só posteriormente estudos mais distanciados da novidade do
fenómeno (Seale, 2005) matizaram esse cenário, concluindo, por exemplo, do
alinhamento da maioria da informação veiculada por novos mediacom as
hierarquias informacionais previamente estabelecidas, incluindo a valorização
da pericialidade.
Em boa verdade, poder-se-ia argumentar que os consumos de performance seriam um
objeto propício a pressupostos hipodérmicos, particularmente na população
juvenil: é de pressupor que os jovens, em geral, emergentes de processos de
socialização, com trajetórias terapêuticas incipientes e tuteladas pela
família, e situações de alguma ou total dependência financeira, tenham margens
de autonomia e de reflexividade relativamente limitadas na sua relação com
consumos terapêuticos, estando a sua gestão mais delegada sobre outros agentes.
Tal poderia favorecer um maior imediatismo da referenciação de consumos,
particularmente para fins que escapem a uma tutela a priorimais adstrita ao
campo da saúde. Contudo, mesmo que partíssemos dessa hipótese, para a validar é
necessário criar condições analíticas e metodológicas para a infirmar, o que o
reducionismo hipodérmico não permite. É nesse sentido que procuraremos explanar
alguns princípios que estruturam a nossa perspetiva de análise da relação entre
fontes de informação e práticas sociais, para o caso, de consumo terapêutico.
O primeiro princípio implica levar em linha de conta os efeitos das paisagens
informacionais (Nettleton, 2004) contemporâneas na relação dos indivíduos com
as fontes de informação que as compõem. Essas paisagens comportam, na nossa
perspetiva, três elementos cruciais na sua morfologia: a sua
pluralidadeinterna, a sua impositividade e a sua incomensurabilidade (Clamote,
2010).
A emergência da internet produziu, também ela, um outro efeito de sinédoque
problemático, relativo à perceção das paisagens informacionais, reduzindo
simbolicamente a uma fonte de informação a pluralidadede fontes constitutivas
dessas paisagens (que a internet veio acrescer – não substituir ou inaugurar).
Tal leva a negligenciar-se o efeito sistémico – oposto de hipodérmico – dessa
pluralidade, o qual torna o impacto de cada fonte nas dinâmicas sociais em que
intervém contingente da sua coabitação com outras fontes na perceção dos
indivíduos, bem como alarga as margens de contradição entre a informação
disponível, por diferentes fontes, sobre uma qualquer temática (inclusive,
dentro do campo da pericialidade).
Por sua vez, o facto de essa pluralidade resultar não apenas acessível aos
interessados, mas ter em parte um caráter impositivosobre as suas perceções –
por exemplo, pela sua difusão mediática ou por redes de sociabilidade –
independentemente de ser ativamente procurada, condiciona estruturalmente a
possibilidade de os indivíduos manterem relações de confiança exclusiva numa só
fonte.
No entanto, ao mesmo tempo, quanto mais não fosse, a incomensurabilidadeda
informação disponível implica que a solução desse impasse informacional não
pode passar por um processo abstrato de escolha racional após recolha de toda a
informação sobre dada questão, mas pelas heurísticas informacionais que as
lógicas de racionalidade leiga dos indivíduos impõem às paisagens
informacionais, conferindo-lhe sentido e instrumentalidade para os seus
propósitos e necessidades particulares, socialmente situados.
Tal suscita um segundo princípio, de perspetivismo leigo(Clamote, 2009), na
análise da relação entre fontes de informação e práticas sociais, que sustenta
que os efeitos sociais dessas fontes são causalmente mediados por lógicas de
envolvimentoe de validação(Clamote, 2010: 115-117), pelas quais os indivíduos
atribuem às fontes diferentes papéis na organização dos seus saberes e
práticas, e validam a informação que disseminam.
Neste cenário informacional estrutural, as práticas dos indivíduos envolvem,
pois, potencialmente, uma crescente diversidade de fontes, sendo as diferentes
lógicas de envolvimento dos indivíduos com as mesmas que organizam a
articulação social daquela diversidade nos seus quotidianos.
Daí deriva um terceiro princípio, que implica que o papel de cada fonte só pode
ser compreendido no quadro de trajetórias informacionaisonde os efeitos sociais
de uma dada fonte são mediados pela sua articulação com outras fontes pelos
indivíduos. Esse bricolageinformacional é parcialmente modulado pela própria
morfologia das fontes, que constitui, por exemplo, um dos limites pouco
ressalvados à ação da internet: sendo uma fonte mais passiva, depende da
procura dos indivíduos de dada informação, ao contrário da impositividade da
mais tradicional publicidade. Contudo, essa morfologia não se basta a si mesma,
pelo que ficarmo-nos por uma channel complementarity theory(Ruppel e Rains,
2012) na explicação dos modos de articulação de fontes pelos indivíduos poderia
arriscar reiterar uma versão suave do velho determinismo tecnológico. As
lógicas de envolvimento com uma mesma fonte podem ser diversas, dentro das
possibilidades e constrangimentos oferecidos pela sua morfologia, pelo que
continuam a configurar o fator causal crucial. É possível verificar- se lógicas
de envolvimento que repliquem a evidência empírica de uma referenciação
determinista de consumo: por exemplo, o envolvimento tutelar com uma só fonte,
enquanto uma opção consciente para lidar com uma situação de
incomensurabilidade informacional, ignorando, voluntariamente, fontes outras.
Contudo, tal é analiticamente diverso de postular ou concluir de um
determinismo entre informação e ação, que não passe pela mediação de lógicas de
racionalidade leigas, e não é metodologicamente comprovável se não no quadro de
trajetórias que estendam a implicação potencial de diversas fontes de
informação em determinadas práticas.
Serão, pois, esses princípios que procuraremos operacionalizar seguidamente na
análise dos dados empíricos de relação dos indivíduos com as paisagens
informacionais no universo da performance e das trajetórias informacionais
pelas quais se organizam disposições e práticas de consumo concretas nesse
domínio.
2. Paisagens informacionais em consumos de performance
Como discutimos, uma pluralidade de fontes pode intervir nas trajetórias
informacionais pelas quais se organizam as práticas dos indivíduos. Contudo,
dada a sua relativa impositividade, essas fontes produzem alguns efeitos
sociais independentemente de os indivíduos ativamente procurarem informação ou
desenvolverem investimentos, neste caso, no domínio da performance. Como tal –
antes de explorarmos as fontes presentes na organização das práticas efetivas
de consumo de performance –, para ter uma noção das vias de disseminação da
própria lógica social de consumir recursos terapêuticos para fins de
performance entre os jovens, importa caracterizar os modos de relação desta
população em geral com as diversas fontes potencialmente intervenientes nesse
domínio.
Olhando para o Quadro_1, podemos começar a mapear os recortes que o
perspetivismo leigo dos indivíduos opera nas possibilidades contidas nas
paisagens informacionais. Desde logo, verifica-se que, de um considerável
elenco de fontes no domínio dos consumos de performance, só duas (atendimento
em lojas de desporto e publicidade) ficam abaixo da média de valorização
positiva de toda esta paisagem, sugerindo um quadro de crescente ecletismo na
relação com a efetiva pluralidade informacional existente, o que potencia a
proliferação (e diferenciação) de trajetórias informacionais na gestão de
consumos para o desempenho.
Contudo, esse ecletismo não se apresenta como um quadro anárquico de
informação, sendo organizado por lógicas sociais de diferenciação e de
valorização das diversas fontes. Podem efetivamente identificar-se, conceptual
e empiricamente, quatro categorias de fontes de natureza diferente neste
panorama, que apresentam uma valorização social variável2.
Essas categorias ilustram a relativa similitude da relação dos jovens com as
paisagens informacionais no domínio dos consumos de performance, com a da
população em geral com as paisagens informacionais no domínio dos consumos
terapêuticos (Clamote, 2010: 101-104). Desde logo, as fontes periciais (como o
médico e o farmacêutico), baseadas em formas de conhecimento científico, são
reiteradas, na relação com os consumos de performance, como as de maior
importância. Também comum é o relevo dado à referência leiga, sustentada pelo
conhecimento leigo incorporado derivado das experiências de consumo próprias ou
das redes de sociabilidade dos indivíduos, como a família. A menor valorização
das fontes difusas, de caráter mediático, como a internet ou a publicidade,
também se coaduna com o quadro de relação com as paisagens informacionais em
saúde.
Tal começa por sugerir que a organização social e a disseminação deste universo
de disposições e consumos de performance assume algum parentesco com os
recursos e as lógicas sociais que organizam as práticas de consumo terapêutico
para fins de saúde, indiciando alguma procedência das dinâmicas de
medicalização que o estruturam.
Onde o universo da performance se começa a demarcar do campo da saúde é no
reconhecimento e relativa valorização (globalmente maior que a das fontes
difusas) de fontes proto-periciais, constituídas por grupos ocupacionais
emergentes anexos a contextos distintamente marcados por finalidades de
desempenho – caso dos treinadores/monitores em atividades físicas – ou à
comercialização de recursos para esses efeitos – como o atendimento em lojas de
desporto.
Essas fontes enunciam uma descontinuidade na organização deste universo de
consumos. A valorização das fontes periciais sugere que esta população
permanece afeta a uma certa desejabilidade social em torno do ideal da
regulação pericial dos consumos terapêuticos, mesmo que para fins de
performance – note-se, no Quadro_1, o efeito de legitimação que a localização
da publicidade no espaço social da farmácia lhe confere. Todavia, a emergência
de novas fontes sugere que o tipo de recursos compreendidos neste universo e as
vias de organização social do seu consumo extravasam para lá do campo estrito
da saúde e de uma tutela pericial.
Importa, pois, passar para o plano das trajetórias informacionais para poder
analisar como se organiza socialmente a coabitação daquelas diferentes fontes
presentes nas paisagens informacionais neste domínio, nas disposições e nas
práticas de consumo efetivas dos indivíduos.
3. Trajetórias informacionais em consumos de performance
Como vimos, há uma pluralidade de fontes valorizadas pelos indivíduos nas
paisagens informacionais sobre consumos de performance. Contudo, decorrendo daí
que essas várias fontes possam concorrer para a organização e disseminação
desta lógica social de consumo, essa caracterização geral não nos permite
captar a particularidade dos papéis que as diferentes fontes aí possam
desempenhar. Para tal, é necessário conhecer as trajetórias pelas quais, a
partir das possibilidades inscritas nas paisagens informacionais, se vão
articulando diferentes fontes, desempenhando diferentes papéis, na organização
das disposições e práticas de consumo dos indivíduos.
Para esse fim, procurar-se-á, pois, identificar a variação da presença de
diferentes fontes na sequência de algumas etapas informacionais centrais na
organização daquelas disposições e práticas: na indução de consumos; na
referenciação dos recursos consumidos; e nas vias de acesso a esses recursos.
3.1 Indução social de consumos
Antes de qualquer referenciação de consumos terapêuticos, um primeiro papel das
fontes de informação na sua organização pode ser encontrado na indução do
reconhecimento da existência de determinados recursos e das categorias de
finalidades a que se destinam, e de disposições para a resposta a essas
finalidades através de práticas de consumo.
Nesse plano, um conjunto de indicadores possível é o reportar de pressões
sociais – e das circunstâncias e agentes das mesmas – para consumos de
performance. Essa via de indução revela-se pouco expressiva – 16,6% da
população inquirida reporta ter sentido alguma pressão –, desde logo comparando
com a proporção global de inquiridos nesta amostra que já efetuaram algum
consumo para finalidades de desempenho – 71,9% (Lopes, 2014: 62).
Essa figura causal não se apresenta, pois, como condição suficiente ou
necessária para o consumo. Contudo, examinar as circunstâncias e agentes dessa
pressão fornece-nos alguma informação sobre o seu desigual enraizamento social
e os mecanismos pelos quais ela opera.
Primeiro, olhando para as circunstâncias em que essa pressão foi ressentida, o
universo escolar destaca-se como o mais mencionado (41,1%), sendo seguido por
contextos desportivos (21,6%), de convívio (17,8%) e laborais (12,1%). Essa
pressão não se encontra, pois, socialmente disseminada de forma homogénea,
revelando diferentes níveis de sedimentação em diferentes contextos. Não por
acaso, os dois contextos mais mencionados são associados a finalidades de
desempenho para as quais uma hoste de produtos está comercialmente disponível.
Indicia-se aqui, pois, um efeito de naturalização dessa indução, metabolizada
em dados contextos, que passa pela impositividade da perceção da existência de
recursos expressamente dirigidos para a gestão dessas formas de desempenho.
Contudo, se os contextos de ação evidenciam uma marca estruturante na indução
de consumos, os agentes da pressão para consumir não são tanto as figuras
tutelares desses contextos, quanto a referência leiga das redes de
sociabilidade dos indivíduos – amigos (23,2%), familiares e colegas (ambos
18,2%). Tal elucida mais a natureza desta pressão: ela organiza-se como uma
resposta social, mediada pelas redes de sociabilidade dos indivíduos, quais
sistemas de referência leigos (Freidson, 1970), a desajustamentos entre
exigências contextuais e capacidades de resposta individuais, através de
práticas de consumo.
Esses contextos poderão, assim, funcionar como fontes de entradapara certos
consumos de performance: ao associarem sistemicamente certas finalidades de
desempenho com níveis de exigência e modalidades de gestão afinadas com
práticas de consumo; e com as redes sociais aí constituídas a organizarem
dinâmicas contextuais de disseminação ou produção de informação ou saberes
(Clamote, 2011) sobre esses consumos.
Contudo, tal indução pode operar a um nível mais estrutural do que o das
exigências colocadas contextualmente ao desempenho individual, na medida em que
tais contextos constituam ou participem de sistemas de ação social de
interdependência (Boudon, 1979), onde a medida do sucesso da ação individual é
sistemicamente dependente do sucesso relativo da ação dos outros indivíduos
participantes do sistema. Tal induz uma pressão sistémica (não explícita) sobre
o seu desempenho, resultante da mera perceção pelos indivíduos dos efeitos de
práticas de consumo no desempenho de outros atores envolvidos no sistema.
A subtileza para-informacional daquele mecanismo de indução ilustra a
importância de ter em conta estes efeitos contextuais na indução social de
consumos de performance, apesar da limitada evidência empírica de que partimos.
Estas dinâmicas não participam da visibilidade e impositividade geral das
paisagens informacionais, estando os seus efeitos dependentes da integração dos
indivíduos em contextos particulares. Estes introduzem, assim, pregas naquelas
paisagens, exigindo uma atenção analítica particular. Se determinadas
finalidades performativas podem estar mais tematizadas nessas paisagens – com
os indivíduos expostos a informação (por exemplo, por fontes difusas) sobre as
mesmas e tendo vias socialmente legitimadas (por exemplo, por fontes periciais)
para a sua validação e para o acesso a (alguns) recursos para lhes dar resposta
– outras não colherão dessa visibilidade generalizada, aparecendo mais
dependentes da entrada em determinados contextos. Eventualmente alguns poderão
mesmo constituir-se – parafraseando Goffman (1987) – como contextos totaisna
organização de práticas de consumo: induzindo a sua necessidade, referenciando
os recursos para lhe dar resposta e providenciando o acesso aos mesmos.
Contudo, para o avaliar, é necessário abrir espaço analítico e metodológico
para captar os potenciais efeitos da impositividade e pluralidade das paisagens
informacionais na organização dessas práticas de consumo pelos indivíduos,
articulando outras fontes nas suas trajetórias informacionais para lá das
fronteiras desses contextos.
3.2 Referenciação de consumos
Ao abrir a análise para o patamar da referenciação dos consumos efetuados pelos
indivíduos, vemos que a centralidade dos contextos de ação – e da referência
leiga neles organizada – não se basta a si mesma para a organização dos
consumos de performance, pluralizando-se as fontes que desempenham este papel
específico nas trajetórias informacionais dos indivíduos.
Olhando para a fonte que indicou o último fármaco ou produto natural consumido
(Quadro_2) podemos, para além disso, dar conta da diversificação dessas
trajetórias – por via das diferentes fontes presentes nesta etapa – em função
da diferenciação social das finalidades (neuro/cognitivas ou físico/corporais)
e da natureza desses consumos (farmacológicos ou naturais).
O domínio neuro/cognitivo aparece demarcado pela presença da pericialidade, em
articulação com a referência leiga familiar. Só os consumos para finalidades
especificamente cognitivas constituem um nicho de mercado onde o
farmacêuticoadquire relativa saliência, na medida em que se constitui como uma
dinâmica de farmacologização que dispensa a medicalização de uma condição
clínica prévia para legitimar esses consumos. Contudo, mesmo aí a figura do
médicoestá presente, sendo dominante nos fármacos para dormir e descontrair/
acalmar, o que indicia nessas finalidades uma forma de medicalização do
desempenho por via da extensão funcional do uso de medicamentos para lá das
fronteiras estritas da saúde. Por sua vez, nos produtos naturais para essas
mesmas duas finalidades, assoma uma presença mais evidente dos familiares. Tal
evidência, pois, uma segunda linha de diversificação das trajetórias dos
indivíduos em função da natureza dos recursos, com o campo menos regulado dos
produtos naturais a ampliar as margens de exercício de autonomia leiga na
gestão dos consumos terapêuticos.
Já no domínio do desempenho físico/corporal, verificamos uma dissipação da
centralidade da pericialidade. Neste domínio, é a referência leiga – mas aqui
na forma de amigos/colegas, e já não da família, na qual tais finalidades não
colherão o mesmo beneplácito – que assoma como presença mais constantemente
estruturante destes consumos, mesmo que só nos fármacos e produtos naturais
para a massa muscular assumam a primazia da referenciação. Primazia essa que
partilham com a novidade da saliência de outrasfontes neste domínio de consumos
– que os dados das paisagens informacionais e a evidência exploratória dos
grupos focais indiciam constituir-se como fontes proto-periciais associadas a
contextos como ginásios ou lojas de desporto.
Tal sugere que, se as finalidades de desempenho neuro/cognitivo encontram
precedência ou acolhimento em dinâmicas periciais de medicalização ou
farmacologização relativamente estabilizadas, as finalidades de desempenho
físico/corporal vão vendo a sua tradução em práticas de consumo organizada
através de trajetórias que se afastam dos trilhos clássicos da referenciação
terapêutica, mesmo nos universos leigos (assumidos pela família).
Importa, pois, prolongar a análise até às vias de acesso aos recursos
consumidos, com vista a perceber em que medida esta diversificação de
trajetórias se sedimenta em torno de espaços sociais e de mercado efetivamente
segmentados, ou reflete uma plasticidade das fontes de informação em se
adaptarem – ou serem adaptadas – à pluralização destes consumos.
3.3 Vias de acesso a recursos
À partida, os dados relativos às vias de acesso aos recursos consumidos pelos
indivíduos (respeitantes às mesmas categorias de consumo constantes do Quadro
2; Lopes, 2014: 216) prolongam as divisórias na organização deste universo
constituídas pela natureza dos recursos e, particularmente, as finalidades de
desempenho. Contudo, ao mesmo tempo, complexificam as trajetórias
informacionais dos indivíduos, ao evidenciar a articulação de outras fontes,
nesta etapa, com as que marcavam o plano da referenciação dos diferentes
consumos.
No universo de consumos farmacológicos para finalidades de desempenho neuro/
cognitivo (fármacos para dormir, concentrar e descontrair/acalmar), a farmáciaé
o espaço central de acesso com, nos três casos, acima de 80% de respostas,
potenciando, neste plano, a intervenção do farmacêutico, muito limitada no
plano da referenciação.
Contudo, no desdobramento dessas finalidades a partir do consumo de produtos
naturais, essa centralidade é diminuída em pouco menos de metade, com
asparafarmáciasa surgirem como via de acesso, particularmente em produtos para
a concentração (30,5%), e mais subsidiariamente a famíliae outrosem produtos
para dormir e descontrair/acalmar. Ainda que o papel da referência leiga mirre
como via de acesso a recursos, por contraponto à sua importância na
referenciação, a sua articulação salienta os processos de socialização no
âmbito da família como um possível contexto de iniciação de alguns destes
consumos.
Por sua vez, no plano de consumos direcionados para o desempenho físico, a
centralidade do acesso pela farmáciareduz para os cerca de 50% em fármacos para
aumentar a energia física (55,8%) e para emagrecer (51,3%), com as
parafarmáciasa ganharem protagonismo nos seus desdobramentos naturais (27,3% e
56,5%, respetivamente), mas também nos fármacos para emagrecer (31,6%).Contudo
– embora já com totais marginais –, em torno dos fármacos para aumentar a massa
muscular e dos produtos naturais para o mesmo fim e para a energia física,
emergem vias de acesso desalinhadas dos circuitos de aquisição de recursos para
a saúde (e mesmo, como vimos, para finalidades de desempenho neuro/cognitivo),
com a categoria outros(como lojas de desporto) a assumir algum protagonismo,
bem como a internete amigos/colegasem fármacos e produtos naturais para a massa
muscular. Tal aloca estas duas fontes apenas ao acesso residual a recursos que
possivelmente transcendem as fronteiras regulatórias do que será possível
adquirir nos espaços físicos de mercado para estas finalidades.
O universo de consumos para o desempenho físico/corporal espelha, pois, um
quadro de acesso bastante mais fragmentário do que o de consumos para o
desempenho neuro/cognitivo, à medida que se diferencia também, cada vez mais, o
estatuto e a regulação dos produtos consumidos para estes fins, como seja do
campo do medicamento, para o dos suplementos alimentares e alimentos
funcionais. Contudo, essa segmentação não é estanque. Ainda que com pesos muito
desiguais, verificam-se várias formas de acesso e referenciação, institucionais
e informais, ao longo das trajetórias informacionais em torno destes diversos
recursos, revelando um campo em estruturação, com vários agentes a
(re)posicionarem-se em torno destes consumos, contribuindo, por diversas vias,
para a sua difusão social.
Será, pois, neste ponto, útil olhar globalmente para as diferenciações e
articulações operadas entre diferentes fontes nas diversas etapas destas
trajectórias informacionais, para destacar as processualidades que vêm
estruturando este universo de consumos.
3.4 Das trajetórias informacionais às processualidades sociais
Como vimos, na análise destas trajetórias ressaltam duas grandes linhas
organizadoras da sua diversidade: uma, a finalidade dos consumos (neuro/
cognitiva ou físico/corporal); e outra – que interseta aquelas fronteiras, e as
desdobra internamente – a natureza dos recursos (fármacos ou produtos
naturais). Essas linhas sugerem, pois, que o universo dos consumos de
performance se organiza na convergência de dinâmicas sociais diversas, não numa
processualidade social homogénea.
Primeiro, verifica-se uma continuidade com os quadros tradicionais de relação
com os medicamentos, com a continuada saliência da pericialidade e da
referência leiga. Essa continuidade é mais forte no campo da performance neuro/
cognitiva, que indicia uma primeira dinâmica procedente dos próprios processos
de medicalização. O facto de a implicação da medicina na regulação de cada vez
mais aspetos da vida humana suscitar a necessidade de responder a solicitações
sociais cada vez mais diversas instaura, aqui, um trânsito subtil, no uso de
recursos terapêuticos, entre a esfera conceptual da saúde e a da performance.
Essa matriz medicalizada é visível mesmo numa segunda dinâmica, respeitante à
apropriação leiga de recursos e orientações periciais (Lopes, 2003), exercida
neste domínio por via da família, que a prolonga para o campo menos regulado
dos produtos naturais. Sendo o princípio operativo da validação da referência
leiga a experiência própria de consumo, a referenciação e acesso pela família a
recursos para fins de desempenho – possivelmente utilizados primeiramente pelos
familiares para fins de saúde –, aprofunda assim o trânsito entre essas duas
esferas.
O que estas dinâmicas periciais e leigas corporizam é assim uma lógica de
consumo, que opera pela extensão funcional do uso de recursos terapêuticos para
fins de desempenho, mas mantendo uma filiação social ao campo da saúde,
manifesta nos seus referentes informacionais. Filiação que, conferindo uma
dupla valência funcional a estes recursos, propicia a diluição simbólica do seu
consumo para fins de desempenho; explicando também a menor visibilidade destas
duas dinâmicas na discussão dos consumos de performance.
O que opera o maior corte neste universo de consumos é a reverberação dessa
lógica em duas outras dinâmicas que corporizam já uma lógica de produção ,
assente no desenvolvimento de um mercado de recursos expressamente dirigidos a
finalidades de performance, e que terá um efeito de ampliação das margens
possíveis de exercício daquela lógica de consumo, particularmente na referência
leiga.
Essa lógica de produção começa por ser desenvolvida pela extensão de dinâmicas
de farmacologização para lá do quadro da medicalização, em que o medicamento
ganha não só centralidade mas autonomia enquanto ferramenta terapêutica. Tal é
já manifesto no domínio particular da performance cognitiva, como uma
finalidade de desempenho definida a partir da existência de recursos produzidos
expressamente para a otimizar.
Contudo, a matriz de pericialidade que ainda poderia organizar a produção e a
distribuição de recursos nas dinâmicas de farmacologização, vê-se relativizada
por uma quarta dinâmica, manifesta essencialmente no domínio da performance
físico/corporal. Nesse domínio verifica-se – para os produtos naturais
identificados pelos inquiridos que efetuaram consumos – uma crescente
sobreposição da indústria farmacêutica e da indústria alimentar na produção de
produtos para a performance; e de farmácias, parafarmácias, lojas dietéticas e
lojas de desporto, como locais de venda desses recursos (Lopes, 2014: 205-207).
Os consumos para o desempenho físico indiciam assim uma dinâmica de
comodificação que ultrapassa a farmacologização, diluindo as figuras –
metonimicamente ligadas (Geest e Whyte, 1989) – da pericialidade e do
medicamento, e o elo que operavam entre esses consumos e o quadro social e
cultural da saúde. Configurando um espaço de mercado de alguma orfandade
regulatória, sem fechamentos sociais significativos, são as fontes proto-
periciais ligadas aos contextos ou recursos associados a finalidades
performativas que aí emergem como os referentes informacionais mais imediatos,
juntamente com as redes de sociabilidade organizadas nesses contextos.
Se estas diversas dinâmicas não colhem todas da mesma visibilidade social ou
preocupação institucional, todas reverberam, por modos diferentes, uma lógica
social de expansão dos usos sociais de recursos terapêuticos na gestão dos
quotidianos sociais e da existência incorporada dos indivíduos, concorrendo,
articuladamente, para a estruturação do universo de consumos de performance.
Dadas as suas implicações sociais na transformação dos modos de integração
social dos indivíduos e da sua relação com os recursos terapêuticos, o corpo e
a saúde, o seu escrutínio analítico deverá ser capaz de apreender o efeito
articulado daquelas dinâmicas, independentemente da maior ou menor legitimidade
social que lhes possa estar associada.
Considerações finais
No final deste percurso analítico, interessará projetar as questões que o
quadro de continuidade e mudança constituído pelas diversas dinâmicas
informacionais que vimos organizarem este universo de consumos coloca
relativamente aos modos de relação dos indivíduos com os recursos terapêuticos
e com a própria figura da performance nos seus quotidianos.
Em primeiro lugar, a ampliação do uso funcional dos recursos terapêuticos para
finalidades de performance, no quadro dos próprios processos de medicalização,
produziu um efeito de reverberação, pelo qual essa lógica social é prolongada
por outros atores. Todavia, quando essa reverberação transita de uma lógica de
consumo, que oscila entre a esfera da saúde e a da performance, para uma lógica
de produção, que organiza um mercado de recursos dedicados à performance, ela
aparenta atravessar para o outro lado do espelho dos processos de
medicalização, onde se continua a aprofundar a gestão da vida e do corpo por
via de consumos terapêuticos, mas sem os seus arranjos institucionais e
regulatórios.
Não obstante, as trajetórias informacionais analisadas evidenciam igualmente
uma polivalência das fontes, particularmente leigas e periciais, cujos
princípios de validação – o conhecimento especializado de base científica e o
conhecimento incorporado derivado das próprias experiências de consumo – lhes
conferem uma saliência no desempenho de diversos papéis em diferentes consumos.
Nesse sentido, este configura-se como um campo em estruturação, em que aquelas
reverberações podem ecoar em diversos sentidos: diluindo a especificidade que
os recursos terapêuticos e a pericialidade assumiam no próprio território da
saúde; incrementando a segmentação institucional de recursos e agentes entre o
campo da saúde e o da performance; ou, de retorno ao ponto inicial, suscitando
reposicionamentos periciais, particularmente médicos, no campo da performance,
no limite, (re-)medicalizando-a.
Em segundo lugar, a captação dos diversos níveis de reverberação da lógica
social de consumo de recursos terapêuticos para fins de performance oferece
igualmente dados para problematizar os processos estruturais que alavancam a
saliência da própria figura do desempenho nos quotidianos dos indivíduos e a
sua progressiva comodificação em bens de consumo. A maior visibilidade das
dinâmicas informacionais decorrentes de uma lógica de produção de recursos para
fins de performance suscita, como primeiro instinto sociológico, o
enquadramento destes consumos no domínio dos estilos de vida, no contexto de
culturas de consumo (Featherstone, 1994), em que pelas práticas de consumo se
diversificam as possibilidades de gerir a vida e a identidade pessoal para lá
de determinismos biológicos e sociais. Contudo, por um lado, a incorporação
pela medicina, no seu amplexo regulatório, de respostas terapêuticas a
solicitações sociais ao nível da gestão do desempenho, confere-lhes um tom
social mais estrutural que o de finalidades estritamente eletivas. Por outro, o
enraizamento da indução de consumos – por via da mediação leiga das redes de
sociabilidade – em alguns contextos de ação organizados em torno das
finalidades que esses consumos visam otimizar, sugere que aí se potencia um
efeito de escala sistémico, pelo qual a “melhoria” passaria a ser o novo
“normal”: por um lado, pela exposição aos – e concorrência com os – efeitos
desse consumo no desempenho dos outros indivíduos dentro desse sistema de
interdependência; por outro, pelo recalibrar das próprias balizas do desempenho
esperado nesses contextos, em função da disponibilidade de recursos para o
otimizar.
Vistos pelo prisma destas duas dinâmicas, os consumos para o desempenho podem
constituir não tanto, ou exclusivamente, uma escolha eletiva de um menu de
reinvenções pós-modernas do self, mas uma nova modalidade de dar resposta aos
constrangimentos estruturais dos contextos de ação dos indivíduos. A
individualidade da escolha pode configurar, a espaços, menos a liberdade
inerente à construção da identidade pessoal, do que a atomização da relação dos
indivíduos com as exigências dos contextos onde se inserem. Esse ângulo de
análise implica, pois, não perder de vista, neste domínio, sob a visibilidade
simbólica dos estilos de vida, os seus vínculos sociais aos constrangimentos
estruturais dos velhos modos de vida dos quais, em boa verdade, nunca nos
teremos propriamente libertado.