O goodwill não é um activo
Num recente artigo da revista The Economist(2008) sobre a crise financeira
internacional são analisadas as consequências contabilísticas e financeiras do
goodwill no âmbito das concentrações empresariais. Em particular, é analisado o
efeito das avaliações em cada data de relato, na medida em que, de acordo com
as normas de contabilidade americanas
[1]
, é necessário proceder a um teste de imparidade dos mesmos. Ou seja, se o
valor de goodwill registado autonomamente nos activos da empresa adquirente
ainda se mantém ou não. Caso não se mantenham, as empresas têm de registar uma
perda por imparidade. Dada a dimensão que este tipo de activo tem nas empresas
(2,6 triliões de dólares ou 10% dos activos do S&P 500), as eventuais
perdas por imparidade afectam significativamente os resultados e os capitais
próprios das mesmas. Por sua vez, afectam os rácios de solvabilidade técnica ou
de balanço e o de autonomia financeira. A título de exemplo, no dia 19 de
Janeiro de 2008, o Royal Bank of Scotland anunciou que iria registar uma perda
não monetária (non-cash) por imparidade entre os 7 e os 8 mil milhões de libras
[2]
por causa da compra do banco holandês ABN AMRO. Segundo a revista The
Economisté a maior perda da história empresarial do Reino Unido.
Ora, de acordo com um comentário ao artigo, é referido que o « Goodwill is not
an asset. It was a dividend paid the old owners of the business bought. Many
companies have paid out ALL their earnings from the past few years in these
distributions to old owners. To claim that this has no effect on cash flow' is
ridiculous. The distributions were almost always made in cash. Only
infrequently are they paid in share equity» ( http://www.economist.com/members/
persona.cfm?econUId=2993623 ).
A questão levantada é de todo pertinente. Se não é um activo então o que é? É
um item do passivo? É um item do capital próprio?
Como bem sabem os contabilistas, auditores, revisores e analistas financeiros
ser uma coisa ou outra não é a mesma coisa. Muito pelo contrário. O facto de
não vir a ser considerado como um activo traz consequências na estrutura do
balanço. O balanço pode mesmo dar uma «cambalhota». Poder ser considerado como
capital próprio apenas atenua essa «cambalhota».
O presente artigo pretende analisar o conceito de goodwill e o respectivo
racional económico subjacente, posteriormente enquadrá-lo em termos
contabilísticos, à luz das IFRS, e finalizamos com uma perspectiva futura sobre
a temática.
Ogoodwillrepresenta o valor extra atribuído a uma empresa em virtude da sua
marca, reputação, posição competitiva no mercado, patentes, lealdade dos
clientes, entre outros elementos difíceis de mensurar e de identificar que uma
empresa possa ter. O valor extra é a diferença entre o valor pago pelo
adquirente da empresa e o valor líquido
[3]
(activos menos passivos) da empresa comprada (já considerando e mensurando o
justo valor líquido dos activos e passivos identificáveis)
[4]
. Se a diferença for positiva chama-se goodwill. Se a diferença for negativa
chama-se goodwill negativo.
Para compreendermos melhor o racional económico do goodwill gerado no âmbito de
concentrações empresariais, este pode ser analisado sob duas ópticas: a óptica
do proprietário (o que compra e o que vende) e a óptica da empresa (a que
compra e a que é comprada).
Segundo a óptica do proprietário, o goodwillgerado, enquanto resultado de uma
transacção entre proprietários de duas empresas, significa de facto uma
atribuição de um valor extra ou de um prémio, que pode ser assimilado a uma
distribuição antecipada de dividendos ao proprietário da empresa comprada, mais
a devolução do valor investido pelo proprietário que vende.
Por exemplo, uma empresa X que tenha um activo de 1000 unidades monetárias
(u.m.), um passivo de 650 u.m. e um capital próprio de 350 u.m. O proprietário
desta empresa tem um património que vale em termos contabilísticos 350 u.m.
Este é o valor que o proprietário tem como interesse sobre a empresa. No
entanto, não é uma reclamação no sentido em que as responsabilidades da empresa
o são. Após a liquidação da empresa, é originada uma obrigação de a empresa
distribuir os activos que restarem aos seus proprietários (os accionistas), mas
só após os credores serem integralmente pagos.
Por questões de simplificação do exemplo apresentado, o capital próprio engloba
a entrada inicial de capital (designado de capital social de 100 u.m.) e a
acumulação dos resultados líquidos positivos, ou em forma de reservas ou em
forma de resultados transitados, no valor de 250.u.m. Em todo caso, em termos
teóricos, são verbas passíveis de serem distribuídas e por conseguinte poderem
configurar como um dividendo obtido pelos proprietários da empresa X. Em bom
rigor, a distribuição do capital configura apenas uma mera devolução do
dinheiro investido pelo proprietário.
Ora, quando o proprietário de uma empresa Y quer comprar a empresa X por um
valor de 750 u.m. está a pagar ao proprietário da empresa X não só o valor que
este lá investiu (as 100 u.m.), como também a acumulação dos resultados
positivos que a empresa tenha, ou seja, as 250 u.m.
[5]
. Note-se, que estas 250 u.m. podiam até não ser passíveis de distribuição em
termos legais ou estatutários, em virtude da imposição de reservas mínimas, e o
capital social nunca é integralmente devolvido aos accionistas, apenas se
admitindo a amortização de capital aos proprietários, a compra de acções
próprias até determinados limites fixados em lei e em situações muito
específicas, como são o caso das operações de redução e aumento de capital
(operações harmónio).
Assim sendo, o que acontece é que as u.m. que nunca são obtidas na íntegra
pelos proprietários da empresa X (as 100 u.m. mais as 250 u.m.) (desde que ela
se mantenha na sua propriedade e em continuidade), com a venda da empresa estes
acabam por vir a obtê-las na sua integralidade, mais o valor extra (goodwill)
de 400 u.m. que o proprietário da empresa Y está disposto a pagar pela empresa
X. Pelo que, na substância da transacção, as 750 u.m. recebidas pelo
proprietário, no acto da venda da empresa X, incorpora não só a devolução na
íntegra do capital investido e os resultados positivos e reservas acumuladas
pela empresa, às quais se designam de dividendos quando distribuídos (algo que
nunca acontece em situações normais de actividade), como também o recebimento
antecipado dos futuros lucros (dividendos, mais uma vez) que a empresa X possa
vir a gerar, sendo já detida pelos proprietários da empresa Y.
Não nos podemos esquecer que quem compra por 750 u.m. algo que
contabilisticamente vale 350 u.m. é porque tem expectativas que, no futuro,
fluam para a empresa Y benefícios económicos de pelo menos igual valor.
Como veremos mais adiante, no momento do registo contabilístico do goodwill na
empresa Y, o valor de 400 u.m. pode ser ajustado para cima ou para baixo em
função do justo valor líquido dos activos, passivos e passivos contingentes
identificáveis. Pelo que o goodwill diz apenas respeito a activos que não sejam
capazes de ser individualmente identificados e separadamente reconhecidos. Por
questões de simplificação do exemplo apresentado, assumiremos que não existe
diferença entre o valor contabilístico e o interesse da adquirente no justo
valor líquido dos activos, passivos e passivos contingentes identificáveis.
Segundo a óptica da empresa, temos que na empresa Y ocorreu um pagamento de 750
u.m., mas só irá receber como contrapartida um património que, em termos
líquidos, vale 350 u.m.
Isto significa que, no futuro, todos os gestores que entrarem para as duas
empresas
[6]
têm de gerar benefícios económicos futuros que permitam recuperar o dispêndio
realizado pela aquisição dos activos e assumpção dos passivos da empresa X. De
um ponto de vista sistémico e macroeconómico, esta responsabilidade de geração
de benefícios económicos futuros gera questões de equidade intergeracional, ou
seja, os proprietários vendedores da empresa X recebem no presente parte da
riqueza que os futuros gestores e proprietários da empresa X têm de criar para
compensar o pagamento efectuado por decisão dos actuais gestores e
proprietários da empresa Y, saindo desta pouco tempo depois, como normalmente é
o caso.
Importa, ainda, referir que «at an operational level, acquired entities are
either maintained as operating subsidiaries or their assets and liabilities are
absorbed into the acquirer's existing business. The financial reporting of the
surviving entity or the consolidated financial reporting of the parent company
will be identical in either case, but in the latter the subsidiary's own
(separate company) financial statements preserve its historical cost carrying
values, so there will be a need to maintain memo' records so that asset and
liability step-ups or step-downs (to reflect fair values as of the acquisition
date, further adjusted for amortization and other occurrences thereafter until
the financial statement date) can be made in preparing consolidated financial
statements. Where the assets and liabilities are transferred to the acquirer,
the records for the acquiring unit will reflect the new carrying values of
assets and liabilities as at the date of acquisition» (Epstein e Jermakwicz,
2008, p. 4203).
Assim sendo, em qualquer dos casos (manutenção jurídica da empresa X ou fusão
da empresa X na Y), surgirá sempre um goodwill. Pelo que, como referido
anteriormente, a questão que se coloca é esta: em que elemento do balanço devem
ser contabilizadas as 400 u.m.?
Actualmente, segundo os termos definidos no apêndice A da IFRS 3 '
Concentrações de actividades empresariais
[7]
, o goodwill são «benefícios económicos futuros resultantes de activos que não
são capazes de ser individualmente identificados e separadamente reconhecidos».
Não sendo o goodwill composto por elementos passíveis individualmente
identificados e separadamente reconhecidos, então não satisfaz os critérios
para ser considerado como um activo intangível.
Um activo intangível é um activo não monetário identificável sem substância
física. Activos monetários são dinheiros detidos e activos a ser recebidos em
quantias fixadas ou determináveis de dinheiro.
A IAS 38 ' Activos Intangíveis refere que «um activo satisfaz o critério da
identificabilidade na definição de um activo intangível quando:
a) for separável, i.e., capaz de ser separado ou dividido da entidade e
vendido, transferido, licenciado, alugado ou trocado, seja individualmente ou
em conjunto com um contrato, activo ou passivo relacionado; ou
b) resultar de direitos contratuais ou de outros direitos legais, quer esses
direitos sejam transferíveis quer sejam separáveis da entidade ou de outros
direitos e obrigações» (parágrafo 12).
O goodwill também não é considerado um activo tangível porque os activos fixos
tangíveis «são itens tangíveis que sejam detidos para uso na produção ou
fornecimento de bens ou serviços, para arrendamento a outros, ou para fins
administrativos e se espera que sejam usados durante mais do que um período»
(IAS 16 ' Activos Fixos Tangíveis, parágrafo 6). Ou seja, o goodwill é um
activo, mas não é tangível nem intangível. É apenas um activo.
A IFRS 3 exige que o goodwill originado num processo de aquisição de empresas
tenha de ser reconhecido como um activo e «inicialmente mensurar esse goodwill
pelo seu custo, que é o excesso do custo da concentração de actividades
empresariais acima do interesse da adquirente no justo valor líquido dos
activos, passivos e passivos contingentes identificáveis» (IFRS 3, parágrafo
51). «Após o reconhecimento inicial, a adquirente deve mensurar o goodwill
adquirido numa concentração de actividades empresariais pelo custo menos
qualquer perda por imparidade acumulada» (IFRS 3, parágrafo 54).
Adicionalmente, «o goodwill adquirido numa concentração de actividades
empresariais não deve ser amortizado. Em vez disso, a adquirente deve testá-lo
quanto a imparidade anualmente, ou com mais frequência se os acontecimentos ou
alterações nas circunstâncias indicarem que pode estar com imparidade, de
acordo com a IAS 36 - Imparidade de Activos» (IFRS 3, parágrafo 55).
De acordo com a IAS 36 (parágrafo 88 e 90), o teste de imparidade do goodwill é
feito da seguinte forma:
a) Quando [ ] o goodwill se relaciona com uma unidade geradora de caixa [a
empresa comprada] mas não tenha sido imputado a essa unidade - a unidade deve
ser testada quanto a imparidade, sempre que exista uma indicação de que essa
unidade pode estar com imparidade, comparando a quantia escriturada da unidade,
excluindo qualquer goodwill, com a sua quantia recuperável
[8]
. Qualquer perda por imparidade deve ser reconhecida de acordo com o parágrafo
104 da IAS 36.
b) Quando o goodwill se relaciona com uma unidade geradora de caixa [a empresa
comprada] à qual tenha sido imputado a essa unidade ' a unidade deve ser
testada quanto a imparidade anualmente, e sempre que exista uma indicação de
que essa unidade possa estar com imparidade, comparando a quantia escriturada
da unidade, incluindo o goodwill, com a quantia recuperável da unidade. Se a
quantia recuperável da unidade exceder a quantia escriturada da unidade, a
unidade e o goodwill imputado a essa unidade devem ser considerados como não
estando com imparidade. Se a quantia escriturada da unidade exceder a quantia
recuperável da unidade, a entidade deve reconhecer a perda por imparidade de
acordo com o parágrafo 104 da IAS 36.
Ora, o que é que nos diz o parágrafo 104 da IAS 36: «Uma perda por imparidade
deve ser reconhecida para uma unidade geradora de caixa (o grupo mais pequeno
de unidades geradoras de caixa ao qual tenha sido imputado goodwill ou um
activo «corporate») se, e apenas se, a quantia recuperável
[9]
da unidade (grupo de unidades) for inferior à quantia escriturada
[10]
da unidade (grupo de unidades). A perda por imparidade deve ser imputada para
reduzir a quantia escriturada dos activos da unidade (grupo de unidades) pela
ordem que se segue:
a) primeiro, para reduzir a quantia escriturada de qualquer imputado à unidade
geradora de caixa (grupo de unidades); e
b) depois, aos outros activos da unidade (grupo de unidades) pro rata na base
da quantia escriturada de cada activo da unidade (grupo de unidades).
Mas o registo de uma perda por imparidade tem limites. «Ao imputar uma perda
por imparidade uma entidade não deve reduzir a quantia escriturada de um activo
abaixo do mais alto de entre:
a) o seu justo valor menos os custos de vender (caso seja determinável);
b) o seu valor de uso
[11]
(caso seja determinável); e
c) zero» (IAS 36, parágrafo 105).
No fundo, o racional económico subjacente a estes parágrafos é o seguinte: se o
goodwill não tem a probabilidade de vir a ser integralmente recuperado através
dos lucros da empresa comprada, deve ser registada uma perda parcial ou total
por imparidade, consoante o caso. Qualquer perda por imparidade deve ser
reconhecida nos resultados do exercício. Ao contrário dos restantes activos,
uma vez reconhecida a perda total ou parcial do goodwill não deve ser revertida
num período posterior (parágrafo 124 da IAS 36). Isto porque se reconhece que
«qualquer aumento na quantia recuperável de goodwill nos períodos que se seguem
ao reconhecimento de uma perda por imparidade nesse goodwillé provável que seja
um aumento no goodwill gerado internamente, em vez de uma reversão da perda por
imparidade reconhecida no goodwilladquirido» (IAS 36, parágrafo 125).
Conjugando os parágrafos 48 e 49 da IAS 38, o goodwill gerado internamente não
deve ser reconhecido como um activo porque não é um recurso identificável
(i.e., não é separável nem resulta de direitos contratuais ou de outros
direitos legais), controlado pela entidade que possa ser fielmente mensurado
pelo custo.
No caso do goodwill apurado ser negativo, a IFRS 3 estipula que a adquirente
deve:
a) «reavaliar a identificação e a mensuração dos activos, passivos e passivos
contingentes identificáveis da adquirida e a mensuração do custo da
concentração [à semelhança para o goodwill]; e
b) reconhecer imediatamente nos resultados qualquer excesso remanescente após a
reavaliação (parágrafo 56)».
Este tratamento contabilístico diferenciado do goodwill deve-se ao facto de
«essentially, this is regarded, for financial reporting purposes, as a gain
realized upon the acquisition transaction, and accounted for accordingly»
(Epstein e Jermakwicz, 2008, p. 4322).
Resumindo, temos, em termos contabilísticos, tratamentos distintos para a mesma
operação económica:
· no caso de a compra gerar um goodwill, é contabilizado como um activo e
sujeito periodicamente a testes de imparidade;
· no caso de a compra gerar um goodwill negativo, é contabilizado nos
resultados como um rendimento.
Qual a racionalidade económica subjacente a este tratamento contabilístico
diferenciado para a mesma transacção (compra de empresas)? Pretendendo a
contabilidade retratar a realidade e a substância económica das transacções,
onde está a imagem verdadeira e apropriada das demonstrações financeiras?
Esta incoerência é ainda mais notória quando, no parágrafo 52 da IFRS 3, é
referido explicitamente que «o goodwill adquirido numa concentração de
actividades empresariais representa um pagamento feito pela adquirente em
antecipação de benefícios económicos futuros de activos que não sejam capazes
de ser individualmente identificados e separadamente reconhecidos» [o realce é
nosso].
Ora, quando a própria norma contabilística assume taxativamente a substância
económica das transacções, tal como a relatámos na parte inicial deste artigo,
não se compreende não só o tratamento contabilístico diferenciado do goodwille
do goodwill negativo, como também o não assumir na sua plenitude a substância
económica dos mesmos: pagamento/recebimento antecipado de benefícios económicos
futuros.
Afigura-se-nos que esta diferença de tratamento ou incoerência é um reflexo da
insuficiência conceptual que as IFRS têm no que diz respeito às transacções
entre proprietários, nas quais as empresas são meros veículos e que deu origem
à criação de mais um item no activo que, não sendo tangível ou intangível,
acaba por ser uma coisa sem nexo e que nem como híbrido pode ser qualificado. É
um activo apenas porque as normas o dizem.
Traduzindo a transacção, uma decisão dos proprietários da empresa Y e X em que
existe um pagamento antecipado de benefícios económicos futuros, este deve ser
contabilizado como tal, ou seja, a débito num item do capital próprio da
empresa Y (a deduzi-lo), enquanto elemento que traduz o «interesse residual nos
activos depois de deduzir todos os seus passivos» (Estrutura Conceptual do
IASB), eventualmente como outras variações no capital próprio ou como pagamento
de dividendos antecipados, se entendermos contabilizar até ao limite da
substância da transacção.
Caso existisse um goodwillnegativo, seria registado a crédito num item do
capital próprio da empresa Y (a aumentá-lo), eventualmente como outras
variações no capital próprio, passível de ser distribuído sob a forma de
dividendos aos proprietários se estes e/ou os gestores da empresa assim o
entenderem ou como recebimento de dividendos antecipados se entendermos
contabilizar até ao limite da substância da transacção. Não nos podemos
esquecer de que os gestores, quando não coincidentes com os proprietários,
actuam por conta destes numa relação tipificada como a teoria da agência, sendo
os primeiros os agentes e os últimos os principais.
Em caso algum deveria ser levado a resultados, porque as empresas foram meros
veículos da transacção operada entre os proprietários de ambas. Não nos podemos
também esquecer de que a empresa é apenas um instrumento de concretização das
opções dos accionistas. Quando se compram e vendem empresas, estas servem de
veículo à transferência de riqueza operada entre os vários proprietários
envolvidos na transacção.
As normas estão focalizadas para a relação entre o proprietário e a empresa e
para a relação entre empresas. Por isso, os conceitos e as regras inseridas nas
normas estando construídas com esta lógica padecem de uma insuficiência: as
IFRS parecem ignorar a relação entre os proprietários das empresas.
Por isso, o conceito de activo e de passivo surge com tal força (criando-se,
inclusive, activos que não são tangíveis ou intangíveis) que o conceito de
capital próprio surge apenas como uma diferença entre ambos. Mas que, ainda
assim, é aquele que melhor releva a substância económica da transacção e
assegura uma imagem mais verdadeira e apropriada do desempenho financeiro da
empresa. Vejamos. O seu desempenho financeiro deixa de ser afectado por
decisões dos seus proprietários, quando estes decidem comprar empresas acima ou
abaixo do justo valor dos activos, passivos e passivos contingentes. Com isto
não se reconhecem resultados não atribuíveis ao desempenho da empresa. A
decisão foi dos proprietários.
Somente a posição financeira é afectada e apenas na parte que diga respeito ao
interesse dos proprietários na empresa. Se for goodwill, é logo reflectido a
débito nos capitais próprios da empresa essa decisão onerosa e penalizadora da
sua estrutura financeira, por ser uma distribuição antecipada de dividendos. Se
for goodwillnegativo, é igualmente reflectido a crédito nos capitais próprios
da empresa adquirente a decisão da compra vantajosa da empresa adquirida e,
como tal, passível de distribuição imediata a título de dividendos.
Que sentido faz considerar como activo algo que não se consegue identificar,
mesmo que se consiga quantificar? Onde está a representação fidedigna das
transacções? Os benefícios económicos futuros advêm de activos que se conseguem
pelo menos identificar. Afinal de contas, quais são os benefícios económicos
futuros do goodwill de per si se este está constantemente sujeito a testes de
imparidade, em virtude dos benefícios económicos futuros obtidos pelos
restantes activos e passivos identificados e adquiridos? O goodwill de per si
não gera benefícios económicos futuros, mas sim os activos e passivos
subjacentes que lhe deram origem. Qualificar como uma perda não monetária uma
perda por imparidade de um goodwill é erróneo. O dinheiro já saiu anteriormente
da empresa adquirente, aquando da compra da empresa adquirida ou irá sair no
futuro, caso não tenha sido pago a pronto. O activo de uma empresa são bens e
direitos e o passivo são obrigações, ambos representados de uma forma
monetária. Quando se perde um activo, perde-se o dinheiro associado a esse
activo. Os activos são financiados pelo capital próprio e pelo passivo. O que
na realidade aconteceu foi um hiato no tempo até ao seu reconhecimento como uma
perda. Entretanto, esteve sempre no activo «à espera de ser guilhotinado». O
problema é que o goodwill não é e nem nunca foi um activo porque não é um bem
ou um direito e muito menos «um recurso controlado pela empresa como resultado
de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade
benefícios económicos futuros» (alínea a), do parágrafo 49 da Estrutura
Conceptual do IASB). O goodwill não é um recurso. É somente um valor pago a
mais na expectativa de benefícios futuros superiores a esse mesmo valor.
Enquanto a aposta estivesse a correr bem (os benefícios económicos fossem
fluindo), o goodwillmantinha-se no activo; quando a aposta começasse a correr
mal (os benefícios económicos futuros deixassem de fluir), registava-se uma
perda por imparidade relativo ao goodwill.
No fundo, a contabilidade acabou por reflectir o capitalismo de casino que
vigorava nos mercados de capitais. Não nos podemos esquecer que a contabilidade
também incorpora o pensamento, os valores e as crenças económicas das pessoas.
A contabilidade é uma ciência, mas a normalização contabilística internacional
não é. As normas contabilísticas internacionais resultam de um consenso obtido
entre os principais actores à volta do processo de normalização e estas estão
direccionadas para os mercados de capitais. Os mercados de capitais acreditavam
que o goodwill era um activo.
Como o goodwill nunca é passível de ser realizado em dinheiro, em termos de
análise financeira e avaliação de empresas já é retirado dos activos para
efeitos de determinação do valor da empresa.
Anteriormente, segundo as normas contabilísticas de vários países
[12]
, o goodwill era sujeito a uma amortização contínua (o inverso acontecia para
o goodwillnegativo) em função do período de benefício esperado até um período
máximo que variava entre os 5 e os 40 anos. Por conseguinte, o activo e o
capital próprio eram também diminuídos em virtude da amortização do goodwill.
Tratamento inverso tinha o goodwill negativo, com efeitos também inversos no
passivo e no capital próprio, em virtude do diferimento dos ganhos.
Se com o modelo de amortização do goodwillos resultados e os resultados por
acção eram tendencialmente mais baixos, com o modelo de não-amortização e
imparidade os resultados e os resultados por acção tendem a ser maiores. No
entanto, a segunda parte da afirmação só é verdade em ciclos económicos
ascendentes. Quando o ciclo económico é descendente, como agora é o caso, os
resultados e os resultados por acção tendem a ser piores. Isto origina um
efeito de maior volatilidade e pró-ciclicidade nos resultados das empresas, com
influência na estrutura financeira das mesmas e no sistema financeiro e
empresarial a nível mundial.
Dando mais relevo à óptica do proprietário na normalização contabilística para
este tipo de transacções, assume-se não só na sua plenitude aquilo que de facto
é o goodwill (um pagamento antecipado de benefícios económicos futuros
realizados entre dois proprietários), como também fica neutralizado os efeitos
pro-cíclicos da mesma. Ad contrarium, diríamos mesmo que a pró-ciclicidade
surgia por insuficiência e incoerência das normas contabilísticas.
Como perspectivas futuras, apontamos que recentes desenvolvimentos na
normalização contabilística e transacções materialmente relevantes entre
empresas traduziram-se numa falta de representação fidedigna da posição e do
desempenho financeiro das mesmas, contribuindo para uma degradação da imagem
verdadeira e apropriada das respectivas demonstrações financeiras.
A solução aqui apresentada, de considerar o goodwillpositivo ou negativo como
um item do capital próprio, é aquela que melhor retrata a substância económica
do mesmo, resolve o problema da actual insuficiência e incoerência conceptual
das IFRS e dos seus efeitos pro-cíclicos.
Atendendo ao impacto que esta proposta envolve, sugere-se a sua adopção com um
período de carência razoável (por exemplo de 3 anos), de forma a preparar os
utilizadores das demonstrações financeiras e demais stakeholders para os
respectivos impactos contabilísticos e financeiros, aplicar prospectivamente
para as concentrações após a entrada em vigor da norma e, retrospectivamente,
das duas uma: i) manter o actual modelo de imparidade; ou, ii) voltar ao
anterior modelo de amortização. Como a informação financeira não é neutra, a
decisão será sempre política.
NOTAS
1
O mesmo é aplicável às International Financial Reporting Standards (IFRS) e
Internacional Accounting Standards (IAS), emitidas pelo International
Accounting Standards Board (IASB).
2
De acordo com a alínea j) do artigo 56.º da Directiva 2006/48/C do Parlamento
Europeu e do Conselho de 14 de Junho, relativa ao acesso à actividade das
instituições de crédito e ao seu exercício (reformulação), que por sua vez
remete para o ponto 9 do artigo 4.º da Directiva 86/635/CEE do Conselho de 8 de
Dezembro de 1986, relativa às contas anuais e às contas consolidadas dos bancos
e outras instituições financeiras, o trespasse (goodwill) é deduzido para
efeitos de cálculo dos fundos próprios. Por isso, o Royal Bank of Scotland
referiu que a imparidade não tinha efeitos nos rácios de capital regulados. Em
todo o caso, do ponto de vista contabilístico, a perda por imparidade
influenciará a posição financeira e o desempenho do banco.
3
Designado contabilisticamente de capital próprio (equity).
4
Mais adiante veremos que, em termos contabilísticos, deverão ser tidos ainda
em conta os passivos contingentes no cálculo do goodwill.
5
No exemplo apresentado, os proprietários de ambas as empresas são diferentes e
independentes.
6
Directamente no caso de fusão das duas empresas e indirectamente no caso de
mera compra.
7
Entrada em vigor em 31 de Março de 2004.
8
«Se uma unidade geradora de caixa incluir na sua quantia escriturada um activo
intangível que tenha uma vida útil indefinida ou ainda não esteja disponível
para uso e se esse activo puder ser testado quanto a imparidade apenas como
parte da unidade geradora de caixa, o parágrafo 10 [da IAS 36] exige que a
unidade também seja testada quanto a imparidade anualmente» (IAS 36, parágrafo
89).
9
«A quantia recuperável de uma unidade geradora de caixa é a mais alta de entre
o justo valor menos os custos de vender da unidade geradora de caixa e o seu
valor de uso» (IAS 36, parágrafo 74).
10
A quantia escriturada de uma unidade geradora de caixa:
a) inclui apenas a quantia escriturada dos activos que possam ser directamente
atribuídos, ou imputados numa base razoável e consistente, à unidade geradora
de caixa e que gerarão os influxos de caixa futuros usados ao determinar o
valor de uso da unidade geradora de caixa; e
b) não inclui a quantia escriturada de qualquer passivo reconhecido, a menos
que a quantia recuperável da unidade geradora de caixa não possa ser
determinada sem considerar este passivo.
Isto dá-se porque o justo valor menos os custos de vender e o valor de uso de
uma unidade geradora de caixa são determinados excluindo os fluxos de caixa
relacionados com activos que não façam parte da unidade geradora de caixa e
passivos que tenham sido reconhecidos» (IAS 36, parágrafo 76).
11
«Os seguintes elementos devem ser reflectidos no cálculo do valor de uso de um
activo:
a) uma estimativa dos fluxos de caixa futuros que a entidade espera obter do
activo;
b) expectativas acerca das possíveis variações na quantia ou na tempestividade
desses fluxos de caixa futuros;
c) o valor temporal do dinheiro, representado pela taxa corrente de juro sem
risco do mercado;
d) o preço de suportar a incerteza inerente ao activo; e
e) outros factores, tais como a falta de liquidez, que os participantes do
mercado reflectissem no apreçamento dos fluxos de caixa futuros que a entidade
espera obter do activo» (IAS 36, parágrafo 30).
12
Em Portugal o período de vida útil do goodwill variava (e ainda varia),
segundo o Plano Oficial de Contabilidade, entre os 5 e os 20 anos. Até Julho de
2001, nos Estados Unidos da América, o período de vida útil do goodwill podia
ir até aos 40 anos.