O risco sistémico
I
Todos sabemos que o mundo tem mudado muito, e cada vez mais depressa, em
particular desde as últimas décadas do século passado. A tão falada
«globalização» cuja última vaga, iniciada por volta dos anos 1970, torna o
mundo cada vez interdependente, aliada ao acelerado desenvolvimento científico
e tecnológico, tem contribuído não só para «mudar o mundo», mas sobretudo mudar
a nossa maneira de vê-lo. E também de vivê-lo, mesmo sem darmos por isso.
Tudo contribuindo, e de diversas formas, para a coexistência e convivência, em
certo ponto do tempo, de pessoas e de sociedades de grande diversidade de
culturas, conhecimentos, modos de vida e ideologias ou «visões do mundo». Numa
interpretação optimista, a de Alain Touraine
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, o mundo ocidental após a conquista da democracia política, terá conquistado a
democracia social (social-democracia, Welfare State, etc.), dirigindo-se agora
para a democracia cultural.
Na verdade, o mundo tornou-se mais interdependente ou «integrado» mas também
mais marcadamente heterogéneo e desigual. E o confronto intercultural é uma das
suas facetas. Basta notar que não existe paradigma único para o
«desenvolvimento humano» e que o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)
regularmente calculado pela ONU desde 1990 é apenas uma noção expedita e
simplista para comparações ou rankings internacionais
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Recusar a percepção desta evolução relativamente recente, como se não houvesse
nada de novo, na trajectória multimilenária da humanidade, é manifestar uma
estranha forma de cegueira, que consiste em julgar o presente inelutável
prisioneiro do passado. Como se, ao conduzir um veículo, apenas bastasse olhar
o retrovisor para conhecer o caminho. E assim sofrer o «choque do futuro», para
recordar o título dum livro de Alvin Toffler que foi muito famoso há cerca de
quarenta anos.
Ora, há razões para afirmar, como vários autores, e de diferentes maneiras, o
têm feito, que o actual «presente» está de algum modo mais próximo do «futuro»
do que do passado
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ou que o sistema económico e social em que a humanidade encontrou e encontra
grandes processos de transformação, o capitalismo, se encontra perto do «fim»,
sem todavia se saber o que porventura virá a seguir4.
Pois não estamos seguros de que «futuros» se avizinham, apenas podemos imaginar
cenários alternativos em função de diferentes conjuntos de hipóteses. Ilya
Prigogine, Prémio Nobel da Química em 1977, na sua investigação da
termodinâmica, abriu novas perspectivas sobre a problemática do caos sistémico
e desvendou possíveis direcções da evolução do cosmos
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Acresce que a tendência para a extensão da duração média da vida humana, ou
prolongamento da esperança de vida à nascença, origina uma coexistência de
níveis etários muito distintos, que por seu turno se projectam em «visões do
mundo» também muito diferenciadas. Os mais idosos transportam, na sua
experiência, realidades profundamente distintas das conhecidas hoje pelos mais
jovens. Uma das consequências disto reside na dificuldade crescente de
comunicação entre gerações jovens e maduras. As primeiras são menos
influenciadas pelas segundas, no seio familiar, e mais condicionadas pelas
novas tecnologias da informação e comunicação. Acentuam-se, pois, factores de
descontinuidade na transição de gerações.
Este salto geracional é particularmente vincado nos casos em que as sociedades
sofreram bruscas e profundas transformações, como foi o caso das «democracias
populares» depois do colapso da URSS e do regime ditatorial em Portugal, regime
que resistira durante quase meio século aos chamados ventos da História, até à
revolução de 1974.
A diferenciação de raiz etária adiciona-se à resultante do lastro que a
História e a Geografia depositaram em cada «local» do planeta. Onde, em suma, a
identidade que culmina uma específica e longa crónica no espaço-tempo que,
eventualmente, poderá ter estado à margem dos mais recentes factores de
mudança, é confrontada com outra vivência de um tempo novo. Pense-se, por
exemplo, na tendência de concentração de populações nos meios urbanos, com
correspondente despovoamento das regiões interiores. Estas envelhecem em vários
sentidos, podendo constituir verdadeiras reservas de «espécies» humanas
esquecidas num passado cada vez mais remoto. Como a «reserva de selvagens»
imaginada por Aldous Huxley na sua famosa anti-utopia Admirável Mundo Novo.
Como então proceder para, quanto possível, guiar um veículo a grande e
crescente velocidade (digamos, com todo o respeito, o veiculo chamado História)
por caminhos desconhecidos e povoados de ameaças e riscos ignorados? Confiar em
algo como a «vontade de Deus» ou a «fatalidade histórica»?
Ou deambular entre acaso e necessidade nas peripécias, curvas e contracurvas do
enevoado caminho por onde seguimos, com ambição e esperança, mas também
crescente receio?
É assim importante, a propósito de tão imensas e inquietantes questões,
reflectir um pouco sobre o que significam tais mudanças. Mesmo sem dispor de
apurados instrumentos analíticos para fazê-lo.
II
Em grande parte, o panorama descrito é consequência do desenvolvimento recente
das novas tecnologias de informação e comunicação. Qualquer indivíduo, esteja
onde estiver, se tiver acesso à Internet (o que ainda não é possível por todo
lado, não por razões técnicas, mas políticas, como é conhecido), pode ter
igualmente acesso a fontes ilimitadas de informação e possibilidades também
ilimitadas de comunicação em rede. Diz-se que vivemos no ciberespaço.
O que significa, também, desenvolver uma nova capacidade não só de conhecer,
mas de gerir. Gerir pessoas, relações sociais, capitais e organizações. E
gerir, além do mais, a nossa percepção do mundo circundante através dos
chamados meios de comunicação social, aquilo que no português falado no Brasil,
comodamente se designa por midia. Meios que, aliás, não tornam o contexto
envolvente necessariamente mais «transparente», mas antes e sobretudo mais
«presente», também, mais manipulado, no nosso quotidiano.
Além de tudo isto, e em consequência da evolução própria da economia norte-
americana, a colossal globalização financeira das últimas décadas veio dar o
predomínio a novas formas de acumulação de capital financeiro, sem
contrapartida na economia real. Fazem-se e desfazem-se grande «bolhas» no
mercado global de capitais.
Diz-se e escreve-se muitas vezes, confundindo desejos com realidades, que
vivemos ou caminhamos, para a «economia baseada no conhecimento», ou até para a
«sociedade do conhecimento». Na realidade, estamos cada vez mais dependentes de
frágeis economias baseadas na especulação financeira. E esta, por seu turno,
gera além do mais um conhecimento adequado ao prosseguimento dessa especulação.
Mas tomamos também consciência de um mundo inseguro, de destino incerto, e
palco de múltiplos riscos. Terrorismo, pandemias, degradação ambiental, crises
financeiras, são exemplos disso
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Dir-se-ia que navegamos à vista, num mar recheado de ameaças, mais terríveis do
que o Gigante Adamastor que assustou os intrépidos navegadores portugueses no
Séc. XV.
No aspecto financeiro, tem-se dito que a recente grande crise mundial é
sistémica e não poderá ser resolvida por apressados regressos ao business as
usual, para benefício dos grandes manipuladores de dinheiro que ainda dominam a
economia mundial.
Assim, se fosse possível medir, além da esperança média de vida (ou duração
provável da vida humana), qualquer coisa como a «intensidade de vida» nos
tempos que correm, tempos de «lufa-lufa», como analisa o sociólogo Machado Pais
em livro recente editado pela Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa, registaríamos grandes crescimentos em ambas.
Temos, com efeito, muito «mais vida», em média, em cada percurso pessoal, o que
não implica necessariamente «melhor vida», que requer, entre outras coisas,
tempo livre. Livre, claro, para fazermos o que gostamos de fazer e não aquilo
que, de uma forma ou outra, nos «mandam» fazer ou simplesmente fazemos para
sobreviver.
Para todos os indivíduos, organizações e Estados, que tentam navegar neste
universo tenso, incerto e movediço, é assim fundamental a avaliação dos riscos
que correm e encontrar a melhor forma de superá-los. Sem com isso imitar os
ratos que, ao menor ruído, fogem e procuram refúgio no buraco mais próximo. Ou
sendo vítimas de outros «ratos» que procuram assustar-nos para tirarem algum
benefício disso.
Pois, nesta matéria, não faltam os conselheiros que nos apontam os caminhos
óptimos para proteger as nossas poupanças ou, de preferência, para multiplicá-
las se fizermos apostas apropriadas nos múltiplos e até engenhosos mercados de
capitais que nos rodeiam.
Entre eles, encontram-se as chamadas agências de rating que avaliam os actores
que se movimentam nos mercados mundiais e nos dizem que confiança podemos
depositar neles, para de uma forma ou outra, aplicar os nossos capitais.
Podemos gratuitamente receber todos os dias, mesmo não figurando entre os ricos
deste planeta, pela Internet, conselhos sobre aplicações de dinheiro no mundo
inteiro que permitirão ganhos impressionantes se feitas já, bem entendido.
Time is money, como se sabe.
De facto, como se dizia em português popular e ingénuo, a ocasião faz o ladrão.
Claro que em ambiente de desconfiança mútua, há países que merecem maior
confiança do que outros. Os que não são bem vistos pelas agências de rating, -
até os ingleses, grandes pioneiros do capitalismo industrial, além dos gregos,
espanhóis e portugueses - são hoje vistos com desconfiança, no grande casino
que se tornou a economia mundial.
A delicada questão que se coloca nesta matéria, é a de saber que interesses
movem essas tais agências, até porque influenciam em boa medida os riscos em
causa, quando pretendem avaliar e classificar «objectivamente» as economias em
análise.
Segundo afirmou recentemente Durão Barroso, presidente da Comissão Europeia,
não é aceitável que as agências de rating hoje dominantes, ou seja, a Standard
& Poor's, a Moody's e a Fitch sejam todas do mesmo país, isto é, os EUA.
Daí a intenção de criar, no âmbito da União Europeia, um sistema próprio de
regulação financeira, incluindo um regulador europeu para aquelas agências.
Mas os tempos necessários para as decisões com consequências práticas, no seio
da UE, são lentos e requerem laboriosas negociações. Ao invés, nos mercados
financeiros, os tempos são voláteis e difíceis de prever, mesmo ou sobretudo,
quando a tempestade se aproxima.
Na realidade, o caminho para a construção de uma nova ordem económica mundial
mais estável, justa e equilibrada está longe do seu termo, e novas crises
sistémicas serão provavelmente necessárias para acelerar essa construção.
III
Este quadro de «risco sistémico» generalizado, sumariamente descrito, apela
para agentes ágeis, capazes de actuação eficaz no mercado global: trata-se de
prever, prevenir ou superar, quanto possível, os factos nocivos, de maior ou
menor envergadura, que se associam aos diferentes tipos de risco, seja no
referente à segurança das pessoas, à degradação ambiental, à saúde pública ou
ao rendimento individual.
Afinal, encontramos aqui um vector claramente indicativo da necessidade de
certo tipo de regulação, de múltiplas dimensões.
Nesta perspectiva, ao contrário do que é mais comum nas análises normativas
sobre «futuros desejáveis», orientadas para certo modelo mais ou menos utópico,
trata-se duma postura defensiva, visando obstar aos «futuros indesejáveis».
Em tempos passados não muito distantes (digamos, simplificando muito, desde o
Séc. XVIII), a humanidade foi sobretudo desafiada pelos «amanhãs que cantam»,
estes embora sempre correndo na frente, fugindo aos perseguidores de sonhos.
Neste Séc. XXI, ainda recentemente inaugurado, as mudanças requeridas decorrem
sobretudo duma atitude defensiva perante futuros, agora realmente possíveis,
mas tão negros como o petróleo derramado pela BP na sua desastrosa exploração
no Golfo do México.