A atividade dos formadores no reconhecimento e validação de adquiridos: a
evolução de um instrumento a partir da atividade
Investigações anteriores que conduzimos sobre o sistema de reconhecimento e
validação de adquiridos (RVA) português, centradas, entre outros aspetos, na
análise da atividade dos formadores neste sistema (Caramelo & Santos, 2013;
Fernandes, 2014; Fernandes & Santos, 2010; Fernandes & Santos, 2012a;
Fernandes & Santos, 2012b; Santos & Caramelo, 2013; Santos &
Fernandes, 2014) evidenciaram que a sua atividade se caracteriza, entre outros
aspetos, pela ambivalência, obrigando cada formador a uma gestão complexa e,
por vezes, solitária de um conjunto de desafios. Desde logo, o principal
instrumento da atividade, o referencial de competências-chave (ANEFA, 2001), é
considerado pelos formadores como sendo vago, difuso e confuso, conduzindo-os à
reconcepção do referencial e também à conceção de novos instrumentos para o
reconhecimento e a validação de competências. Independentemente das opções
singulares que cada formador acaba por tomar para a gestão da sua atividade, o
que parece ser consensual é a forma como os formadores percecionam a margem de
manobra que lhes é concedida: ora como a autonomia de que necessitam para
poderem ter em conta os percursos e experiências dos adultos (tão importante
neste processo), ora como a necessidade de tomar decisões individualmente, sem
o conhecimento das opções efetuadas pelos outros formadores e, portanto, na
ausência de uma validação da sua atividade pelo coletivo de trabalho. Foram
estes elementos que nos mostraram a importância de aumentar a compreensão sobre
a atividade dos formadores neste processo e, em especial, em relação à evolução
de um instrumento a partir da atividade. Esta análise foi sobretudo sustentada
em contributos de Béguin e Rabardel, acerca da atividade mediada (Béguin,
2007a; Béguin, 2007b; Béguin, 2008; Béguin & Rabardel, 2000; Rabardel,
1995, 1999; Rabardel & Béguin, 2005).
1. O Reconhecimento e a Validação de Adquiridos em Portugal
1.1 Dimensões de Intervenção e Atores
Foi no final da década de noventa do século XX que, em Portugal, se começaram a
dar os primeiros passos para o estabelecimento de um sistema de RVA, designado
por sistema de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC),
sendo esta uma das atribuições da Agência Nacional de Educação e Formação de
Adultos [ANEFA] (Decreto-Lei n.º 387/99, de 28 de Setembro). Sob a
responsabilidade da ANEFA foi concebido e editado o primeiro referencial de
competências-chave português, o Referencial de Competências-Chave para a
Educação e Formação de Adultos (ANEFA, 2001), que viria a ser utilizado para o
desenvolvimento de processos de RVCC e de outras modalidades formativas. Assim,
em Portugal e desde 2001, é possível aceder a uma certificação escolar de nível
básico através do processo de RVCC. Estes processos começaram por ser
desenvolvidos em Centros de Reconhecimento Validação e Certificação de
Competências (CRVCC); em 2007 deram lugar aos Centros de Novas Oportunidades
(CNO) e foram, em dezembro de 2013, substituídos pelos Centros para a
Qualificação e Ensino Profissional (CQEP). Desde 2006, a certificação
profissional e a certificação escolar de nível secundário pela via do RVCC,
tornaram-se também possíveis.
O processo de RVCC foi estruturado em três eixos de intervenção: (i) o
reconhecimento; (ii) a validação e (iii) a certificação. Na etapa de
reconhecimento, o adulto [1], com o apoio do formador, identifica as
competências adquiridas, ao longo da vida, em diferentes contextos (formais,
não-formais e informais). O produto desta análise vai resultando na
(re)construção de um portefólio reflexivo de aprendizagens (PRA) (Gomes &
Canelas, 2007). Em termos metodológicos o processo desenvolve-se através de
abordagens autobiográficas, em que se inserem as histórias de vida, o PRA e o
balanço de competências (Gomes, 2006). Quando são detetadas lacunas em termos
de competências demonstradas pelos adultos face ao referencial do nível de
certificação para que se candidatam, desenvolvem-se ações de formação
complementar (no máximo de 50 horas por adulto), baseadas nas áreas de
competências-chave dos respetivos referenciais (Gomes & Canelas, 2007). A
etapa seguinte, de validação das competências, centra-se na realização de uma
sessão, na qual o adulto e a equipa técnico-pedagógica analisam e avaliam o
PRA, face ao referencial de competências-chave identificando as competências a
validar e a evidenciar/desenvolver. O terceiro eixo, da certificação,
corresponde ao final do processo de RVCC, e consiste na confirmação oficial e
formal das competências validadas através do processo, realizando-se através de
uma apresentação oral a um júri de certificação. Se as competências validadas
nesta fase forem consideradas suficientes, o adulto tem acesso a uma
certificação total, caso não o sejam, através de uma certificação parcial, o
adulto será encaminhado para um percurso formativo definido a partir da
identificação das suas necessidades formativas.
A equipa que desenvolve o processo de reconhecimento e validação de adquiridos
é composta por profissionais de reconhecimento, validação de competências (RVC)
e formadores. Ambos são responsáveis pela prestação de apoio a cada adulto,
orientando a construção do PRA e participam em todos os eixos de intervenção
(reconhecimento, validação e certificação). A cada formador é pedido que apoie
o adulto na área de competência-chave em que se insere. Por exemplo, ao
formador de Matemática para a Vida, uma das áreas de competência-chave do
referencial, é requerido que identifique e valide competências nessa mesma
área. Enquanto o profissional de RVC introduz as abordagens autobiográficas,
procurando tornar o adulto disponível para a reflexividade e a exploração da
sua trajetória.
O profissional de RVC e os formadores devem possuir, preferencialmente,
formação e experiência especializadas no domínio da educação e formação de
adultos. Os formadores devem estar formalmente habilitados para o exercício da
atividade de professor no ensino regular, conforme definido pelo Ministério da
Educação, para poder atuar nestes processos. O profissional de RVC deve ser
detentor de uma qualificação de nível superior. Esta equipa reporta à direção
do centro.
1.2 O Instrumento para Reconhecer, Validar e Certificar Competências
É no Referencial de Competências-Chave (ANEFA, 2001) que estão identificadas as
competências que devem ser demonstradas para o acesso a uma certificação. Este
referencial, para o nível básico, organiza-se em quatro áreas de competência-
chave: (i) Linguagem e Comunicação (LC); (ii) Matemática para a Vida (MV);
(iii) Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e, (iv) Cidadania e
Empregabilidade (CE). Cada área de competência-chave está estruturada em quatro
unidades de competência - A, B, C e D, de acordo com três níveis de
certificação - B1, B2 e B3, correspondentes aos ciclos do ensino básico: 1.º
ciclo, 2.º ciclo e 3.º ciclo [2]. Neste referencial, enquanto principal
instrumento prescrito para o RVA, estão identificadas as competências que cada
formador deve reconhecer e validar, para posteriormente decidir acerca da
certificação.
O referencial, disponível em formato de papel e digital, é apresentado ao longo
de 211 páginas e estrutura-se em duas partes. Num primeiro momento é feita uma
descrição do desenho global do referencial e numa segunda parte privilegiada a
abordagem específica a cada uma das áreas. Não é possível encontrar uma
coerência relativamente aos campos que compõem a abordagem a cada uma das áreas
do referencial, à exceção da “fundamentação” que inaugura a explicitação de
todas as áreas e da identificação dos critérios de evidência relativos a cada
área. Em nenhuma das áreas é explicitada a escala que os formadores devem
utilizar para a apreciação das competências e para a decisão de validação.
2. A Atualização no Uso
2.1 O Instrumento: no Encontro entre a Dimensão Artefactual e a Dimensão Humana
A relação que se estabelece entre a pessoa e o objeto para o alcance de um
determinado objetivo é mediada, através de signos e instrumentos [3]. Rabardel
(1995) distinguiu três tipos de mediação instrumental. A mediação do objeto que
se refere à ação do sujeito sobre o objeto, podendo assumir dois formatos:
epistémica, quando orientada para a familiarização com o objeto e as suas
propriedades e, pragmática, sempre que se centra na ação sobre o objeto, seja
ao nível da sua transformação ou manipulação. Um ou outro tipo de mediação,
epistémica ou pragmática, pode ser predominante mas habitualmente interagem
ambas na ação. A mediação reflexiva ou heurística refere-se à relação que o
sujeito estabelece consigo próprio através do instrumento. Finalmente, a
mediação interpessoal é relativa às relações mediadas com outros. Este tipo de
mediação também se enquadra nas mediações colaborativas, em contextos
coletivos.
Portanto se a relação entre o sujeito e o objeto é mediada, uma análise do
artefacto deve ser desenvolvida atendendo à forma como este é mobilizado na
ação pelo sujeito.
O artefacto não é em si mesmo um instrumento, é o sujeito que lhe confere e
atribui esse estatuto quando o inscreve numa ação específica e o mobiliza como
meio de ação (Rabardel & Béguin, 2005), desenvolvendo-o como um instrumento
na sua atividade. O instrumento é, por isso, uma entidade combinada (Béguin,
2007a, 2008; Rabardel & Béguin, 2005) que tem origem, simultaneamente, no
objeto e no sujeito (Daniellou, 2005), composta por:
- uma componente artefactual: dimensão que é envolvida na ação, relativa ao
artefacto, para o alcance de um dado objetivo (Béguin, 2007b);
- uma componente humana: dimensão que tem origem no sujeito, que integra
dimensões individuais, sociais e culturais relativas ao utilizador e ao sistema
(Béguin, 2007b; Béguin, 2008; Daniellou, 2005). Esta componente humana
relaciona-se com os esquemas de utilização, estruturas ativas que integram
experiências anteriores, e que se constituem como referência para a
interpretação de novos dados (Béguin, 2007a; Rabardel & Béguin, 2005).
Neste sentido, o envolvimento de um instrumento na ação, enquanto “componente
funcional da ação individual” (Rabardel & Béguin, 2005, p.442, tradução
livre), implica, simultaneamente, a mobilização da sua dimensão humana e
artefactual.
O processo de apropriação da novidade técnica e de conceção na utilização pelos
utilizadores designa-se génese instrumental. Como referido anteriormente, o
instrumento é uma entidade bipolar, portanto a génese instrumental envolve
tanto a dimensão humana (pela instrumentação), como a dimensão artefactual
(através da instrumentalização) (Béguin, 2007a; Béguin, 2007b; Béguin, 2008).
3. Método
Decorrente do enquadramento teórico anterior, esta pesquisa procurou conhecer
as funções que o referencial de competências-chave (ANEFA, 2001) desempenha na
atividade do formador no RVA e compreender como este referencial evolui a
partir da atividade dos formadores.
3.1 Participantes
No contexto de entrevista coletiva (em pares), participaram nesta pesquisa dez
formadores (ver Quadro_1).
________________________________________________________________________________________________________________________________
|Códig| Data |Duraç?Géner|Idade*| Habilitações| Área de Formação | Antiguidade na Função (em|Tipologia|
|______|Entrevista|_______|______|______|__Escolares*___|_________________________________|___________anos)*___________|___CNO___|
| EC1 | | | F | 32 | Licenciada | Engenharia Informática | 5 | IEFP e |
|______|Abril 2011|01h54m |______|______|_______________|_________________________________|____________________________|_Privado_|
|_EC2__|__________|_______|__F___|__39__|__Licenciada___|________Química_Analítica______|_____________4______________|_Privado_|
| EC3 | | | F | 35 | Licenciada | Matemáticas Aplicadas – Ramo| 4 | Privado |
|______|Abril 2011|02h16m |______|______|_______________|___________Educacional___________|____________________________|_________|
|_EC4__|__________|_______|__F___|__29__|__Licenciada___|______Engenharia_Biológica______|_____________2______________|_Privado_|
| EC5 | |02h01m | F | 34 | Licenciada | Matemáticas Aplicadas – Ramo| 4 | Privado |
|______|Junho 2011|_______|______|______|_______________|___________Educacional___________|____________________________|_________|
| EC6 | | | F | 30 | Licenciada | Engenharia Química | 4 | IEFP e |
|______|__________|_______|______|______|_______________|_________________________________|____________________________|_Privado_|
| EC7 | | | F | 28 | Licenciada | Matemáticas Aplicadas – Ramo| 3 | IEFP |
|______|Junho 2011|01h47m |______|______|_______________|___________Educacional___________|____________________________|_________|
|_EC8__|__________|_______|__M___|__46__|__Licenciado___|_______Engenharia_Química_______|_____________1______________|__IEFP___|
| EC9 | | | F | 34 | Licenciada | Matemáticas Aplicadas – Ramo| 5 | IEFP |
|______|Julho 2011|02h17m |______|______|_______________|___________Educacional___________|____________________________|_________|
| EC10 | | | F | 31 | Licenciada | Matemáticas Aplicadas – Ramo| 3 | Privado |
|______|__________|_______|______|______|_______________|___________Educacional___________|____________________________|_________|
Quadro 1:Caracterização dos Formadores que Participaram nas Entrevistas
Coletivas
O total de formadores (um homem e nove mulheres, Mage = 33.8, SD = 5.4,
intervalo etário: 28-46 anos) tinha uma antiguidade de trabalho no processo de
RVCC que variava entre um e cinco anos (M = 3.6; SD = 1.2). Relativamente à
área de formação, cinco formadores são licenciados na área da Matemática
(ensino de Matemática) e os restantes em Engenharia (Química e Biológica). No
que se refere à tipologia da entidade promotora: um dos formadores trabalhava
num centro com ligação ao Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP);
um outro formador trabalhava, em simultâneo, em dois centros de diferentes
tipologias (IEFP e privado); e os restantes oito desenvolviam a sua atividade
numa entidade privada. Todos os formadores com formação ao nível da Matemática
têm experiência profissional, anterior e/ou atual, no ensino regular.
Participaram, ainda, nesta pesquisa três formadores e uma profissional de RVC
através do acompanhamento desenvolvido, em contexto real, de um processo de
RVCC decorrido numa empresa do setor metalúrgico, situada no Norte de Portugal,
especializada na área da serralharia civil, nas vertentes de alumínio, ferro e
inox. Alguns dados de caracterização destes trabalhadores encontram-se
disponíveis no Quadro_2.
_____________________________________________________________________________________________________________________________________________________
|Códig|Géner|Idade*| Habilitações| Área de formação | Habilitação própria par| Função |
|______|______|______|__escolares*___|_______________________________________________________________________|_________docência*________|____________|
| T1 | F | 25 | Licenciatura | Psicologia | Não |Profissional|
|______|______|______|_______________|_______________________________________________________________________|___________________________|____RVC_____|
| T2 | M | 41 | Licenciatura | Matemáticas Aplicadas | Sim | Formador |
|______|______|______|_______________|_______________________________________________________________________|___________________________|____TIC_____|
| T3 | F | 30 | Licenciatura | Matemáticas Aplicadas - Ramo Educacional | Sim | Formador |
|______|______|______|_______________|_______________________________________________________________________|___________________________|_____MV_____|
| T4 | F | 30 | Licenciatura | Línguas e Literaturas Modernas – Variante de Estudos Portugueses e| Sim | Formador |
|______|______|______|_______________|_______________________________Franceses_______________________________|___________________________|__LC_e_CE___|
Quadro 2: Caracterização da Equipa Técnico-Pedagógica Responsável pelo Grupo de
Formação do Setor Metalúrgico
A equipa era constituída por três formadores, que asseguraram as quatro áreas
do referencial (LC, CE, TIV e MV) e pela profissional de RVC. Estes quatro
elementos da equipa tinham idades compreendidas entre os 25 e os 41 anos (M =
31,5; SD = 6,8). Dos quatro elementos que compunham a equipa, três são do
género feminino. Todos os trabalhadores são licenciados e apenas T1,
profissional de RVC, não possui habilitação própria para a docência.
3.2 Instrumentos
A entrevista coletiva e a análise da atividade foram os instrumentos
privilegiados para o acesso e a recolha dos dados. Procurou-se desenvolver
conhecimento a partir da perspetiva dos formadores, partindo-se da análise de
diversos elementos constitutivos da atividade: o que era esperado que fizessem
(ao nível do prescrito); aquilo que efetivamente faziam e como faziam; aquilo
que não faziam (porque não podiam ou não conseguiam); e também aquilo que
faziam, por ser o possível num dado momento.
Privilegiaram-se, então, os métodos de acesso e de construção de conhecimento
que associam os protagonistas da situação de trabalho à sua análise (Clot,
Faïta, Fernandes, & Scheller, 2000), complementada com a análise em
contexto.
3.3 Procedimento de recolha e análise dos dados
O acompanhamento do processo em contexto real desenvolveu-se entre março e
dezembro de 2010, e consistiu na participação, pela observação, em todas as
sessões de reconhecimento e formação complementar da área de MV, num total de
29 horas. Durante estas sessões foram registadas as verbalizações dos adultos e
da formadora de MV, e foram arquivados todos os instrumentos e atividades
desenvolvidos no âmbito do processo.
As entrevistas coletivas decorreram entre abril e julho de 2011. Estas foram
gravadas em formato áudio e vídeo, para posterior análise e transcrição. Estes
dados foram arquivados, organizados e analisados pelo recurso ao
softwareNvivo9.
4. Análise e Discussão dos Dados
4.1 A Utilização do Referencial
Como referido anteriormente, o referencial de competências-chave é o principal
instrumento prescrito para reconhecer e validar competências. Procurou-se
compreender de que forma este referencial estruturava concretamente a atividade
dos formadores, no objetivo de reconhecer e validar competências. A partir da
análise em contexto foi possível identificar os momentos em que o referencial
era utilizado e qual o significado e objetivo da sua utilização em cada
momento.
O Quadro_3 identifica os momentos em que o referencial foi utilizado no eixo de
reconhecimento do processo de RVCC acompanhado na empresa do setor metalúrgico.
___________________________________________________________________________________________________________________________________________
|N.º_Sessão_______________|1|2|______________________________3______________________________|4|5|___6____|_____7______|8|9|_10__|11|__12__|
|Significado da utilização|-|-|Levantamento de competências nas 4 áreas de competência-ch|Descodifica? - |Diagnóst|-o| - |
|Referencial________________|_|_|_____________________________________________________________|____________|____________|_________|__|______|
|Responsável | Profissional RVC | Formador |Profissional|Formador |Profissio|al
|___________________________|_________________________________________________________________|____________|____RVC_____|_________|___RVC___|
Quadro 3: Momentos e Significados da Utilização do Referencial no Eixo do
Reconhecimento
As três primeiras sessões foram desenvolvidas pela profissional de RVC (T1) e
tiveram como objetivos: a apresentação dos participantes; a distribuição do
cronograma; o fornecimento de informação sobre o funcionamento do processo; e,
a identificação de expectativas em relação ao processo. Nestas duas sessões
iniciais o referencial, no formato original ou adaptado, não foi ainda
mobilizado.
Na fase final da terceira sessão foi distribuída uma atividade intitulada -
Levantamento de competências nas quatro áreas de competência-chave, na qual foi
solicitado a cada formando que identificasse e registasse, num formato de
resposta “sim” ou “não”, se possuía cada uma das competências existentes numa
lista e referisse a situação de vida em que a desenvolveu [4]. O objetivo desta
atividade pareceu relacionar-se com a tentativa de aproximação dos formandos às
áreas de competência-chave, procurando também facilitar o posterior
reconhecimento de competências por parte dos formadores. Neste caso, e pelo
facto de a atividade ter sido completada pela maior parte dos formandos apenas
numa fase final do processo, a mesma não cumpriu esse fim.
Tal como o Quadro_3 procurou ilustrar, as sessões seguintes, n.º4, n.º5 e n.º6,
foram dedicadas áquilo que os formadores habitualmente designaram de
descodificação do referencial. Na área de MV essa descodificação foi
desenvolvida pela resolução de quatro fichas que simultaneamente permitiram
“traduzir” o referencial e identificar as competências que cada participante
possuía.
No concreto, nas sessões de MV, a tradução do referencial foi feita através da
resolução de fichas com exercícios de tipo escolar. Era através da sua
resolução que a formadora (T3) conseguia, simultaneamente, apresentar o
referencial e avaliar as competências e os saberes de que os adultos eram
detentores. Depois de uma nova sessão com a profissional de RVC, sessão n.º 7,
para monitorização do desenvolvimento do processo, os formadores dedicaram-se,
nas sessões n.º8, n.º9 e n.º10, ao diagnóstico de competências, para
determinação das competências já adquiridas e das que estavam em falta. O eixo
do reconhecimento terminou após duas novas sessões, sessões n.º 11 e n.º12 com
a profissional de RVC, em que procurou que os formandos fizessem um balanço do
processo e definissem planos para o futuro.
Após a conclusão da etapa do reconhecimento, os formadores analisaram os
dossiers de cada candidato e reuniram para validação, definindo, neste momento,
quais as competências já explicitadas e as que deveriam ser aperfeiçoadas ou
adquiridas através de formação complementar.
Em síntese, apesar do referencial ser um instrumento central na estruturação da
atividade dos formadores, ele vai evoluindo e cumpre finalidades muito
distintas na atividade dos formadores, com destaque como vimos neste
subcapítulo, para a descodificação e diagnóstico de competências.
4.2 As Funções do Referencial
O referencial em análise é uma entidade mediadora entre o formador e o objeto
da sua ação. Procuraremos, de seguida, analisar as funções do referencial à luz
dos tipos de mediação entre o sujeito e o objeto propostas por Rabardel (1995).
Os formadores entrevistados referiram-se ao referencial de diferentes formas
mas salientam as funções de:
- reconhecimento das competências: quando se constitui enquanto recurso para a
ação e permite ao formador agir no sentido da identificação das competências
dos adultos. Esta formulação sobre o referencial pelos formadores parece querer
dizer, que o instrumento pode assumir uma forma de uma mediação pragmática
(Rabardel, 1995);
- orientação / guia da sua própria atividade, já que o referencial auxilia no
conhecimento que os formadores passam a ter dos adquiridos pelos adultos que
optam por estes processos, quando é a referência para o conhecimento do objeto
(de acordo com Rabardel (1995), o instrumento assume, nestes casos, uma
mediação epistémica);
- constrangimento, quando delimita aquilo que o formador pode valorizar no
percurso dos adultos. Neste sentido, a utilização do referencial age sobre o
próprio sujeito/formador, pelo que o tipo de mediação que de acordo com
Rabardel (1995) está aqui em causa é uma mediação heurística ou reflexiva.
Os referenciais são, portanto, inegáveis instrumentos da atividade dos
formadores, cumprindo diferentes funções que ora facilitam a consecução da
finalidade da sua ação ora a constrangem e delimitam.
4.3 A Zona de Valor Funcional do Referencial
Rabardel (1999) reconheceu que a todo o artefacto se associa uma zona de valor
funcional partilhada e situada, que constitui o sentido do artefacto,
recuperando a analogia com a linguagem [5]. Parece, assim, ser possível
estabelecer uma ligação entre esta zona de valor funcional partilhado do
referencial e o conteúdo das entrevistas aos formadores, sobretudo ao nível da
sua utilidade.
O Quadro_4 sinaliza o conjunto de categorias emergentes acerca da utilidade do
referencial.
Designação Número de Distribuição percentual
Referências
Constranger a atividade 3 5,9
Dar segurança ao formador4 7,8
Legitimar pedidos dos 3 5,9
formadores
Orientar a Atividade 24 47,1
Ponto de partida 4 7,8
Uniformizar, selecionar e 13 25,5
sintetizar informação
Nota: valor mais elevado encontra-se a bold.
Quadro 4: Identificação da Utilidade do Referencial
Identificou-se, assim, que o referencial se reveste de utilidade na orientação
da atividade dos formadores no processo de RVCC:
(…) eu acho importante existir um referencial e eu, como não venho do ensino,
se eu não tivesse o referencial estava frita, porque não sabia o que havia de
fazer. (EC4)
Esta utilidade ao nível da orientação da atividade parece relacionar-se com uma
outra categoria, em que a existência de um referencial surge associada a uma
perspetiva de segurança, por parte dos formadores,
Mas, no meu caso concreto, quando fui para um centro de reconhecimento de
competências eu nem sequer sabia o que é que queria dizer a sigla RVCC, não é?
Saía de lá, todos os dias, em pânico a dizer “eu amanhã não venho” porque eram
RCC para um lado (...) para outro, e isto, e eu não percebia nada do que eles
estavam para lá a dizer e, portanto, eu acho que para quem inicia atividade
profissional neste tipo de processos ele [referencial] é importante,
independentemente dos defeitos que possa ter. (EC3)
ao mesmo tempo que legitima o pedido que os formadores dirigem aos adultos em
processo:
(…) não estamos a pedir as coisas porque nos apetece. (EC3) (…) são esses
critérios que terão que ser validados. (EC2)
E uniformiza e sintetiza a informação:
Aliás passa-se o mesmo no processo normal escolar. Portanto tem que haver
sempre um programa, tem que haver para uniformizarmos, porque se não eu fazia
uma coisa a colega fazia outra e andávamos aqui todos, quer dizer (…) (EC3)
No entanto, este referencial serve essencialmente enquanto ponto de partida,
pois apesar de desempenhar um papel incontornável na estruturação da ação dos
formadores, essa utilidade concretiza-se, essencialmente, através da sua
contínua reconceção.
O referencial, enquanto instrumento da atividade, revelou-se também um
constrangimento porque define e limita as competências que o formador pode
considerar.
4.4 Descrição da Evolução do Referencial a partir da Atividade – Géneses
Instrumentais
Compreendeu-se, pelos dados anteriores, que o referencial é um guia orientador
para a identificação de competências e que a utilização deste instrumento
evolui com a experiência.
A Figura_1 a evolução da utilização do referencial pelos formadores que
participaram s nesta pesquisa, quer através das entrevistas coletivas como pela
análise da atividade.
O contacto com o referencial iniciou-se através da sua leitura e interpretação.
Deste trabalho de análise e apropriação resultou a conceção de novos
instrumentos, mais simples, para o desenvolvimento do processo. De entre estes
novos instrumentos destacaram-se: a construção de grelhas próprias para a
validação (cujo processo será explorado no próximo subcapítulo); a preparação
de atividades para a explicitação, a identificação e a avaliação de
competências; e, a construção de apresentações em que o formador tenta traduzir
a linguagem científica do referencial em situações do quotidiano.
Neste sentido, a reconceptualização do referencial, independentemente do
formato que assuma, pareceu cumprir dois objetivos: (i) traduzir os conceitos
científicos do referencial numa linguagem mais simples e mais próxima do
quotidiano dos participantes e (ii) tornar mais objetiva a atividade
desenvolvida pelo formador neste processo. A necessidade da conceção de novos
instrumentos surgiu, então, pela necessidade de diminuir (e controlar) a
subjetividade do processo e o seu caráter vago provocado pela ausência de
orientação no desenvolvimento da atividade. Talvez seja por este motivo que os
formadores revelaram ambivalência em relação à autonomia que têm na organização
e gestão do seu trabalho.
O desvio em relação à utilização prescrita do referencial é reveladora, por um
lado, que o referencial no seu formato original não é capaz de auxiliar o
formador na resposta bem-sucedida às necessidades da situação e, por outro, que
o formador é capaz de o alterar e envolver na atividade para a inevitável
atualização no uso (Rabardel, 1995).
4.5 A Definição de Grelhas Próprias para a Validação
A construção de grelhas próprias para a validação emergiu como uma etapa
transversal à evolução do referencial, consistindo na versão pessoal de cada
formador para a decisão acerca da validação. Esta reconceptualização do
referencial foi considerada pelos formadores como essencial para o
desenvolvimento da sua atividade, pois consideram o referencial, no seu formato
original, ininteligível.
As grelhas, que são sínteses pessoais daquilo que os formadores consideram ser
as áreas principais dos referenciais e sobre as quais decidem acerca da
validação, são também bastante distintas (Santos & Fernandes, 2014). A
análise do Quadro_5 revela que o número de competências exigido por cada
formador para validação é distinto.
Formadores MV MVA MVB MVC MVD
EC1 75 63 38 33
EC2 75 75 54 33
EC3 63 50 38 67
EC4 75 50 46 67
EC5 75 50 62 33
EC6 75 50 54 50
EC7 63 75 38 33
EC8 38 38 8 0
EC9 100 75 32 50
EC1O 88 75 54 83
Quadro 5: Percentagem de Critérios de Evidência Mínimos para Validação [6]
A análise do Quadro_5 revela, por exemplo, que a formadora EC8 não solicita a
explicitação de qualquer critério de evidência da unidade D (MVD). Compreendeu-
se, em contexto de entrevista, que esta formadora considerou esses critérios
excessivamente complexos para integração no processo. Registaram-se, ainda,
exemplos também contrastantes na unidade A (MVA), em que EC9 exige a
explicitação de todos os critérios, enquanto EC8 requere apenas 38% da
totalidade dos critérios desta unidade.
Em contexto de entrevista procurou-se compreender quais os elementos em que
cada formador se baseava para determinar quais os critérios a serem
considerados como obrigatórios. Decorrente da análise do conteúdo das
entrevistas coletivas, foram identificadas seis categorias, aqui representadas
no Quadro_6.
Designação Número de Distribuição percentual
Referências
Bom senso 2 9,1
Experiência de outros colegas 10 45,5
Facilidade e frequência 6 27,3
Formação ANQ 1 4,5
Importância 2 9,1
Utilidade prática 1 4,5
Nota: o valor mais elevado encontra-se a bold
Quadro 6: Critérios para a Identificação dos Critérios Mínimos para Validação
A consideração da experiência de outros colegas tornou-se bastante expressiva
na tomada de decisão sobre os critérios mínimos. A partilha de experiência
interpares registou-se tanto pelo contacto com colegas, sobretudo os mais
experientes, do próprio centro, como também de outros centros.
E portanto em conversa com colegas vamos tentando. Inicialmente, no início do
processo eu tinha muitas dúvidas se estava a fazer bem, se realmente chegava se
não chegava e então tínhamos muita necessidade e mesmo assim vou tendo quando
conheço pessoas de outros CNO de ir vendo como é que eles trabalham, o que é
que validam, como é que validam experiências portanto estou confortável com
aquilo que foi decidido. (EC5)
A facilidade dos critérios, a que se associa a sua frequência foi também
ponderada pelos formadores na seleção dos critérios a serem considerados
mínimos:
(…) estas mínimas são aquelas mais fáceis de operacionalizar, ou seja, é mais
fácil dizer a uma pessoa tem que explicar um gráfico, do que dizer “olhe tem
que em contexto de vida reconhecer funções como critério…”. “Desculpe isso é
fazer o quê?” é complicado certo? (EC8)
Apesar de cada formador construir as suas grelhas pessoais tendo por base os
critérios anteriormente identificados, em que se registou uma elevada
variabilidade inter-formador, isto é, encontraram-se marcadas diferenças nos
critérios solicitados pelos diferentes formadores, assistiu-se, por outro lado,
através da análise da atividade, a uma utilização invariável destas grelhas
junto de diferentes adultos. Assim, independentemente da trajetória individual,
o formador avaliou os diferentes adultos em processo sobre a mesma grelha e os
mesmos critérios. A partir das entrevistas também foi possível perceber que os
critérios mínimos definidos por cada formador foram evoluindo ao longo do tempo
em função da experiência que adquiriram, pelo confronto com diversos percursos
e experiências dos adultos.
5. Reflexões Finais
Olhando por detrás da fachada
Procurou-se, neste trabalho, não só aumentar a compreensão sobre a atividade
dos formadores neste processo, mas também aceder às condições em que o fazem.
Nas raízes históricas do processo de RVCC em Portugal, encontra-se a opção por
este processo justificada no facto de a nossa população estar subcertificada,
valendo em termos de saberes e competências mais do que aquilo que as suas
qualificações o demonstravam (Caramelo & Santos, 2013; Santos &
Caramelo, 2013; Santos & Fernandes, 2014). Porém, quando este processo foi
gizado, no final do século XX, destinava-se apenas a alguns, às pessoas que
eram detentoras de competências diversas e consolidadas, sendo assim
compatível, pela quantidade de pessoas e pelo seu perfil, o recurso a
metodologias autobiográficas. Na verdade, os especialistas que participaram na
conceção do sistema de RVCC consideravam que esta resposta não deveria ser
sequer maioritária, ponderando que apenas 10 a 15% da população adulta
portuguesa pudesse integrar este sistema, uma vez que a maioria deveria
beneficiar de formação de base e mais prolongada (Fernandes, 2014). Contudo, em
poucos anos as práticas de RVA constituíram-se como a grande aposta
governamental para o acesso à certificação escolar. Para além do crescimento
exponencial de centros que passaram a ser necessários para o desenvolvimento
deste processo, os programas de financiamento impuseram metas de certificação
(que garantiam a subsistência dos centros e, por consequência, a manutenção dos
postos de trabalho das equipas envolvidas), o que contribuiu para a difícil
compatibilização com as práticas autobiográficas, o apoio personalizado e o
tempo que estes processos exigem (Caramelo & Santos, 2013; Santos &
Caramelo, 2013; Santos & Fernandes, 2014). É, assim, no quadro destas
condições e condicionantes que se revela e fundamenta a necessidade de os
formadores desenvolverem e recriarem continuamente a sua própria atividade.
Transformar para compreender e agir
Decorrente da análise conduzida, conclui-se que a evolução do referencial a
partir da atividade dos formadores pareceu resultar de dois processos. Por um
lado, da necessidade que os formadores reconhecem de o adaptar para uma
resposta crescentemente bem-sucedida às exigências das situações, uma vez que
lhe reconhecem no seu formato original uma utilidade limitada. Por outro, pela
inventividade que naturalmente caracteriza cada formador e utilizador.
Compreendeu-se, assim, que a reconceção contínua do referencial, pela sua
transformação, é o resultado da compreensão e interpretação individual do
formador acerca da sua própria atividade em função dos constrangimentos por ela
impostos. É, provavelmente, na base dessa atualização no uso (Rabardel, 1995)
que os formadores procuram reforçar o seu poder de agir (Clot, 2006).
Compreender para se transformar
No âmbito do RVA o formador não só recria o processo e os instrumentos da
atividade, mas também se recria a si próprio. Neste sentido, o formador não é
um agente passivo que cria condições para a transformação de outros, mas antes
um sujeito, também em transformação. Os diferentes métodos utilizados para o
desenvolvimento de investigações em torno da atividade do formador no
reconhecimento e validação de adquiridos (Fernandes & Santos, 2010;
Fernandes & Santos, 2012a; Fernandes & Santos, 2012b; Santos &
Fernandes, 2014), em especial, a análise da atividade e as entrevistas
coletivas, têm de alguma forma criado condições para que o formador reconheça o
seu contributo ativo neste processo.
No encontro com os formadores, e quando convidados a pensar a sua atividade,
vão tomando consciência dos determinantes da sua atividade e das condições em
que a desenvolvem. Criaram-se neste encontro condições, por exemplo, para a
tomada de consciência em relação à pressão a que estão sujeitos (temos metas a
cumprir e o facto de termos metas a cumprir faz com que nós, muitas das vezes,
tenhamos de aceitar pessoas em processo de RVC que não têm de todo perfil para
esse processo -EC3); a aceitação de que fazem o possível, determinado por uma
série de constrangimentos (... uma coisa é o que as coisas são e outra coisa é
o que as coisas deveriam ser, o ideal não é? - EC8) e que o fazem para o
alcance de um resultado (E portanto temos que uniformizar, colocar o processo
uniformizado não é, como eu estava a dizer, o ideal porque chega-se a um ponto
e nós olhamos para um dossier e está tudo lá, está lá a tabela, está lá o
gráfico, está lá a percentagem, não é? Quer dizer por um lado não é bom, não
vamos dizer que é bom, o que é certo é que funciona desta forma e eles
evidenciam as competências – EC6). Assim, a tomada de consciência por parte dos
formadores em relação a aspetos determinantes da sua atividade, parece reunir
elementos potenciais de intervenção, ainda que sob determinadas condições.