O filme A Gaiola Dourada: Reflexões sobre o regresso em força da emigração
portuguesa e a portugalidade' de uma gaiola (cada vez menos) dourada
1. Introdução
O meu interesse no filme A Gaiola Dourada (2013), de Ruben Alves, tem por
base a abordagem do realizador à vivência dos emigrantes portugueses em França
e das suas marcas identitárias. Trata-se de um olhar de quem conhece a
realidade que se vive em França, já que ele próprio é um lusodescendente, filho
de pais emigrantes, com uma história que se desenvolve trilhando o caminho dos
estereótipos decorrentes dos respetivos percursos.
Num registo pontuado pelo humor, desfila no filme muita da parafernália
simbólica da emigração portuguesa para França, cujo ponto alto teve lugar nos
anos 60 do século XX, em pleno regime do Estado Novo. Um êxodo na sequência da
pobreza, da guerra colonial e da fuga a um regime totalitário. Foi nessa altura
que terá sido cunhada a palavra portugalidade', à qual se refere, numa
entrevista, o próprio realizador de A Gaiola Dourada, como uma alegada
pertença a Portugal, e que associa à vida dos emigrantes portugueses em França
mostrados no seu filme.
Depois de um período de acalmia no fluxo de emigração portuguesa durante os
anos que se seguiram à revolução do 25 de abril, a crise financeira atual
trouxe o fenómeno, de novo, para a ordem do dia, mostrando os índices
disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE)1 a existência de
um novo boom na saída de portugueses, fazendo lembrar os valores registados nos
anos 60 do século XX. Uma tendência já verificada, de resto, em 2010, por Jorge
Malheiros no artigo intitulado Portugal 2010: O regresso do país de
emigração?. E, ao contrário do que o filme quer fazer crer, a existir, a
Gaiola dos portugueses em França já não é dourada', sendo agora a palavra de
ordem dos novos emigrantes lusos sobreviver, encarando a presença em Paris
como uma passagem e já não como uma estadia para toda a vida, ao contrário do
que acontecia com os seus antecessores.
A pretexto do filme A Gaiola Dourada, que trouxe para os média o debate sobre
a emigração portuguesa, aproveitamos a ficção que ele encerra para analisarmos
o fenómeno da emigração portuguesa para França, perspetivando-o no tempo e
tentando traçar o perfil dos novos emigrantes, refletindo sobre o significado
de identidade portuguesa na diáspora, a cultura portuguesa e as culturas de
origem e, em tempo de globalização, questionarmos o sentido de portugalidade',
palavra que nos últimos anos tem sido por vezes utilizada, depois de um hiato
de vários anos verificado a seguir à extinção do Estado Novo.
Para o efeito, socorremo-nos da perspetiva de Vitorino Magalhães Godinho
(L'emigration portugaise (XVéme-XXéme siècles) - une constante structurelle et
les réponses au changements du monde, artigo publicado em 1978) que considera
a emigração uma constante estrutural da demografia portuguesa, no que é
secundado por Jorge Carvalho Arroteia, em A Emigração Portuguesa. Suas Origens
e Distribuição (1983), num fenómeno que o livro Portugal: Atlas das Migrações
Internacionais (2010), coordenado por Rui Pena Pires, mostra estar ligado,
muitas vezes, à fuga à pobreza e à crise. Há, no entanto, que ter em atenção os
números não conhecidos relativos à emigração clandestina, que fazem com que se
tenha que duvidar dos índices apresentados, como advertem Maria I. Baganha e
Pedro Góis, no artigo Migrações Internacionais de e para Portugal: o que
sabemos e para onde vamos?, publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais
(1999), já que muitas vezes esses índices são discrepantes entre autores,
nomeadamente em períodos em que a emigração estava proibida, como aconteceu
durante o período do Estado Novo, para proteger o país das influências
estrangeiras, como defende Vítor Pereira, em A Ditadura de Salazar e a
Emigração. O Estado Português e os seus Emigrantes em França (1957-1974)
(2014).
José Manuel Sobral enumera entre as características da identidade nacional, a
partilha do nome Portugal' e do respetivo território, o que leva à formação de
um sentido coletivo identificado pelo nome portugueses' e que abrange os que
emigraram (Sobral, 2012). Mas será que, como refere Albertino Gonçalves (2009),
os portugueses na diáspora ainda reavivam a chama lusitana? Recorde-se, a
propósito, que o Presidente da República, Cavaco Silva, tem apelado por
diversas vezes aos emigrantes para que estes sejam os veículos da
portugalidade' na diáspora. Mas como podem os emigrantes que, na maior parte
dos casos, são obrigados a abandonar o país por falta de condições mínimas de
sobrevivência em Portugal (Lourenço, 2004 [1999]: 189), ser extensões de uma
qualquer portugalidade'?
2. O filme
O filme A Gaiola Dourada recupera a temática da emigração portuguesa depois
de, no ano de 2012, se ter verificado um aumento significativo na saída de
portugueses do país2 - provocando comparações com o êxodo de pessoas que saíram
de Portugal nos anos 60 (séc. XX) -, batendo, no verão de 2013, recordes de
audiência nas salas de cinema, tornando-se num fenómeno de popularidade3. Uma
situação que poderá estar ligada ao facto de se tratar de uma história simples,
cheia de humor e com ligações de proximidade a muitos portugueses que, direta
ou indiretamente, viveram de perto o fenómeno da emigração dos anos 1960.
Tal como é referido na sinopse do filme4, o casal composto por Maria e José
(como no presépio), de apelido Ribeiro, vive há cerca de 30 anos num dos
melhores bairros de Paris, na casa da porteira, no rés-do-chão de um prédio.
Eles são queridos por todos no bairro: Maria, porteira e José, trabalhador da
construção civil; abnegados, trabalhadores e submissos, tal como, na vida real,
são geralmente vistos pelos franceses os emigrantes portugueses. Com o passar
do tempo, ambos se tornam indispensáveis no dia-a-dia dos que com eles
convivem, tanto mais que, quando surge a possibilidade de concretizarem o sonho
das suas vidas, regressam a Portugal na sequência de uma herança familiar,
ninguém os quer deixar partir. O filme retrata a perspetiva do regresso da
família a Portugal e os problemas que a sua partida vai colocar a toda a gente
- à família Ribeiro e também aos franceses que habitam no prédio, ou mesmo ao
patrão de José. Mas será que o casal estará, realmente, com vontade de deixar a
sua preciosa gaiola dourada'? O filme reflete sobre o eventual regresso dos
emigrantes a Portugal, depois de anos a fio em França, onde têm as suas vidas
definidas e a família sedimentada. Ironicamente, o filme evidencia a inversão
do percurso lógico, com os filhos a rumarem a Portugal e os pais, que emigraram
há muitos anos, a mostrarem-se apegados ao país de acolhimento, afinal de
contas, o seu verdadeiro' país.
O realizador terá partido do seu próprio percurso para fazer uma longa-metragem
que retrata a sua vivência pessoal, o que faz com que ele próprio se assuma
como um cliché5. Não obstante, Ruben Alves rejeita tratar-se de um filme
autobiográfico, o que não deixa de levantar algumas dúvidas, atendendo ao facto
de o casal protagonista ter as mesmas profissões dos seus pais e toda a
história associada. Ele é, como referimos, lusodescendente, daí que os
pormenores da vida dos emigrantes portugueses em França estejam tão bem
caracterizados. De facto, A Gaiola Dourada está pejada de clichés assentes
quase sempre numa pretensa tradição' e sublinha uma alegada forma de estar
dos portugueses' (que vêm sempre à baila quando o assunto são os emigrantes em
França), recorrendo amiúde a estereótipos. Os relatos de plateias inteiras a
baterem palmas no final do filme, são disso demonstrativos, o que poderá estar
relacionado com o facto de a maior parte dos espetadores se reverem nas
situações apresentadas, vincando alguns valores' e alegadas características
dos portugueses (muitas das vezes assentes em comportamentos cujas caricaturas
são conhecidas), como a sua tipicidade, tradicionalidade e preconceitos. Ao
mesmo tempo, o filme pode ser visto como um tributo a várias gerações de
portugueses que rumaram a França, levando na mala de cartão sonhos e esperanças
que foram na maior parte das vezes difíceis de concretizar. Como assinala Clara
Moura Lourenço (2008), embora o emigrante esteja muito presente na literatura
portuguesa, raramente a sua voz se faz ouvir em discurso direto, partilhando a
sua sina com outros grupos marginalizados por uma cultura elitista (Lourenço,
2008: S/P). Em França, o filme também teve índices de audiência elevados, sendo
acompanhado por reportagens nos média, onde também vieram ao de cima vários
estereótipos, nomeadamente retratando os portugueses como bons trabalhadores e
obedientes.
De resto, o filme agradou a muita gente, mas também desagradou a muitas pessoas
que o viram como denotando a sobranceria com que os franceses tratam os
emigrantes portugueses, evidenciando a sua ignorância sobre as suas origens6. É
o caso do produtor de cinema Paulo Branco que, em entrevista à CMTV, criticou o
facto de os portugueses apresentados pelo filme A Gaiola Dourada
representarem clichés, e que é, no fundo, a forma como às vezes a Europa gosta
de nos ver: dóceis, trabalhadores, aceitando todas as consequências. O que
corresponde a uma distorção da realidade e que infelizmente ainda nos temos de
bater contra esse tipo de clichés, muitas vezes quando estamos lá fora. Paulo
Branco refere que os emigrantes portugueses estão integrados na sociedade
francesa e reagem como franceses, sendo que o filme tenta demonstrar o
contrário: Tudo acontece como se Portugal não tivesse passado pelas
transformações que se conhecem, como foi o caso da revolução do 25 de abril e,
mesmo não sendo os portugueses os únicos que são caricaturados na comédia
francesa, neste filme, há uma forma quase racista na maneira como nós somos
apresentados7. Miguel Esteves Cardoso, por exemplo, na sua crónica diária no
jornal Público, que intitulou Um filme que não é, criticava A Gaiola
Dourada como sendo um filme que não valia a pena ir ver, referindo que como
português que sou, tive vergonha do filme, apesar de não ter tido nada a ver
com ele, reputando-o de uma merda má e que não tem graça, uma vez que nem
uma desgraça consegue ser (Cardoso, 2013: 53). Já o cineasta e crítico Lauro
António numpost no seu blog intitulado A Gaiola Dourada, tece-lhe grandes
encómios, sublinhando-lhe um argumento bem urdido, em que as personagens têm
dimensão humana, e se impõem pela sua convicção e, mesmo que correspondam a
estereótipos, a verdade é que funcionam bem, uma vez que os estereótipos
correspondem a personagens assim (António, 2013: S/P). Critica o facto de o
cinema português ser sempre tão soturno, pelo que o filme de Ruben Alves
constitui uma comédia divertida que fala de portugueses em França com
elegância e bom gosto, com algum orgulho na nossa maneira de ser, sem
choradinhos inúteis, colocando os pontos nos ii, quando é necessário (António,
2013: S/P). Condena, ainda, os que desprezam a cultura de massas, privilegiando
o denominado cinema de autor, fazendo votos para que o cinema português
ganhasse juízo de vez em quando, enaltecendo o filme A Gaiola Dourada e
evidenciando que, se se agarrarem em temas portugueses e os trabalharem com
sinceridade, sensibilidade e um olhar profundamente nacional, isto é, original
em relação aos outros, faremos de certeza obras interessantes que não deixarão
de despertar interesse (António, 2013: S/P). E refere ter-lhe dado gozo
entrar numa sala quase esgotada e ouvir as reações francas de uma plateia
rendida (António, 2013: S/P).
Também na secção das Cartas à Diretora do jornal Público, se encontram
referências ao filme de Ruben Alves, como é o caso da missiva assinada por José
Alegre Mesquita intitulada Família feliz dentro de uma Gaiola Dourada, que
refere o retrato de uma certa emigração, assente no estereótipo do português
saloio e ignorante mas que vende (Mesquita, 2013: 43). Já no jornal
Expresso, Irina Rosa observa que lá por ser dourada não deixa de ser uma
gaiola (Rosa, 2013: S/P), o que indicia a privação de liberdade e, mesmo no
caso de uma nova geração bem preparada e remunerada com vontade de explorar
novas vidas, emigrando por necessidade, evidencia que nunca a opção em sair do
país terá sido tomada de ânimo leve, não obstante o mundo ter mudado e o
pensamento ser global e haver a necessidade de sair daquela que era expectável
ser uma zona de conforto. No entanto, A verdade é que nada disso é novo para
os portugueses. Pelas piores razões, cedo descobriram o tamanho do mundo
(Rosa, 2013, S/P).
António Loja Neves, na revista Atual do jornal Expresso, num texto
intitulado Um filme feel good'? destaca a ideia de como uma comédia pode
encobrir circunstâncias que trazem ao filme ( ) elementos prazerosos e o seu
oposto. Caricatura não pode ser pilhéria (Neves, 2013: 18). O autor refere-se
à proliferação de lugares-comuns, em que a comédia encobre um défice analítico
que quase raia a humilhação, sendo que a fotografia das comunidades
emigrantes fica tremida (Neves, 2013: 18). De resto, a maior parte dos
emigrantes portugueses em França não foram concierges, nem hommes de batiment,
como mostra o realizador que se circunscreveu à sua própria experiência, uma
vez que é largo o leque de profissões que exerceram: desde a distribuição aos
taxistas, aos operários nas unidades fabris de automóveis (Neves, 2013). Para
além disso, Ruben Alves sonoriza o filme com música de Rodrigo Leão, mas também
recorre ao kitsch da Casa Portuguesa que se faz ouvir até à exaustão, para
além dos acordes de Tiro-Liro-Liro, canção que soa a anacrónica, e de Quero
Cheirar Teu Bacalhau, na utilização de uma lógica brejeira e, de certa forma,
distante da narrativa que o filme pretende sublinhar. Ou seja: o cliché dos
portugueses em França continua, apesar da tentativa do filme em sair desse
registo. É que em A Gaiola Dourada é retratada uma emigração que se pretende
pós-moderna, onde aparecem cantores contemporâneos a mostrarem que a emigração
do tipo mala de cartão', protagonizada por Linda de Suza, já não existe. A
este propósito, Eduardo Prado Coelho propõe que, se a identidade for procurada
naquilo que os povos estão mais perto do kitsch, da bétise, da cretinice, da
estupidez (Silva & Jorge, 1993: 133) ' o que é sublinhado, de resto, pelo
filme, através do desfile de clichés sobre os emigrantes portugueses em França
' poderão ser encontrados traços mais concretos sobre a especificidade' dos
países. No filme aparece, ainda, o ex-futebolista Pauleta, também ele ex-
emigrante, mas de ouro, que marcava muitos golos na equipa do Paris Saint-
Germain, numa altura em que o clube ainda não pertencia a um grupo árabe (no
filme deixa-se perceber, através dos diálogos, que os romenos e os árabes estão
a conquistar o território' da emigração portuguesa nos empregos a estes
associados).
Embora, à primeira vista, possa parecer um filme despretensioso, mostrando
situações conhecidas, que integram o anedotário sobre os emigrantes portugueses
em França, não deixa de ser, ao mesmo tempo, um filme francês, com um olhar
francês sobre as minorias e as suas questões identitárias num país de
acolhimento, em que se pode concluir que a identidade é aquilo que nós
queiramos que ela seja; que vale o que vale; e que provoca equívocos, tratando-
se de um conceito que não é estanque, mas pelo contrário, bastante dinâmico. E,
sem pretender generalizar o que quer que seja, o filme retrata uma certa forma
de vida, de um género de emigrantes portugueses em França (bem integrados na
sociedade), com o foco colocado na comédia, não deixando de evocar algumas
atitudes assentes na grosseria que, como refere José Gil, tem como pior
característica, não a ruína da forma, mas a arrogância em julgar-se forma:
violência característica do burgesso, que, assim, não chega a destruir
completamente a forma, erigindo os seus borborigmos em linguagem única e livre
(Gil, 2005: 106).
O título do filme foi-o buscar o realizador a um programa televisivo onde uma
idosa, que emigrara em jovem para França, confessava o seu sonho de regressar a
Portugal, muito embora deixasse transparecer que se sentia bem onde estava, na
sua pequena gaiola dourada (Cordeiro, 2013: 20). Um desabafo que encaixou na
perfeição na ideia que Ruben Alves tinha para o filme que queria fazer,
retratando a gaiola dourada' pelo lado em que os emigrantes (os que são
retratados) ganharam a vida e criaram os filhos, não obstante a sensação de
prisão, já que os apartamentos das porteiras são exíguos e têm grades. E, muito
embora ninguém aprisione os portugueses, são eles próprios que se aprisionam a
si próprios, como refere o realizador (Cordeiro, 2013: 20).
De resto, o filme tem o mesmo título de um livro de Shirin Ebadi (La Cage
Dorée, publicado em 2009), a primeira juíza iraniana, vencedora do Prémio
Nobel da Paz de 2003, e que se viu forçada, em 1979, a deixar o cargo após a
chegada ao poder de Khomeini, decidindo lutar contra o regime, o que lhe valeu
ser presa em Junho de 2000. O livro conta o drama de uma família esmagada pela
história, que mistura ficção e realidade, onde o Irão é visto como uma gaiola
dourada' gangrenada pela violência, corrupção, intolerância e opressão. Uma
gaiola dourada' muito diferente da descrita pelo filme
A Gaiola Dourada é, de resto, um produto muito marcado em Portugal pelo
marketing que, para além de ter ajudado o filme a ser o mais visto de sempre,
teve extensões práticas nessa área, tornando-o visível fora das salas de
cinema. Foi, por exemplo, disponibilizado um flyer de divulgação, em forma de
bacalhau, numa alusão direta à história contada no filme8. Para além disso,
durante a transmissão televisiva do jogo da seleção nacional de futebol contra
a sua congénere da Irlanda do Norte9, podia ver-se, no meio da claque verde
rubra, um cartaz onde se podia ler Força Bacalhaus!, numa alusão clara ao
filme, mas que pouco tem que ver com a realidade, já que os portugueses nunca
foram conhecidos por bacalhaus', não obstante a sua alimentação privilegiar
aquele pescado.
Balizado em parâmetros hollywoodescos, o sucesso do filme está espelhado nas
notícias que lhe estão relacionadas, nomeadamente assentes na sua
internacionalização, como o interesse de uma produtora dos EUA em fazer um
remake de A Gaiola Dourada (Pinheiro, 2013, S/P); pelo facto de o filme ir
ser exibido no MoMa' de Nova Iorque em 2014 (Jornal de Notícias, 2013: S/P); e
de ter sido o preferido do público nos Prémios do Cinema Europeu (Lopes, 2013,
S/P).
3. Emigração, patriotismo, portugalidade' e cultura portuguesa'
A cunhagem da palavra portugalidade' coincidiu com o boom da emigração
portuguesa para França registado no século XX10, muito embora não esteja
diretamente relacionada com o fenómeno. E, muito embora o termo portugalidade'
não esteja tipificado nos dicionários de referência de língua portuguesa e, nos
dicionários mais comuns, como é o caso do que é editado pela Porto Editora,
seja traduzido como qualidade do que é português, ou sentido verdadeiramente
nacional da cultura portuguesa (Costa & Melo, 1995) ' o que, convenhamos,
é de difícil tipificação -, a sua cunhagem é balizada pelo portal Ciberdúvidas
da Língua Portuguesa nas décadas de 50 e 60 do século XX11, portanto, em pleno
Estado Novo12. Trata-se de um conceito, desde logo, centrado em Portugal e que
pode ser contextualizado na ideia de Portugal do Minho a Timor, slogan do
Estado Novo que começou a fazer o seu caminho em 1951 com a revogação do Ato
Colonial, em que o Governo português passou a defender que Portugal seria um
todo uno e indivisível, em que todas as colónias passariam a ser províncias,
tal como as outras que existiam na metrópole'. Foi desenvolvida a partir daí,
toda uma retórica destinada a sustentar um mito que apoiasse a ideia de que não
haveria razões para o desenvolvimento de movimentos independentistas nos
territórios portugueses de África e da Ásia. De resto, a portugalidade' entra
no discurso político da Assembleia Nacional (AN) apenas a 27 de abril de 1951 -
16 anos após o início da AN ' servindo, através do único partido existente, a
União Nacional, de eco da governação, disseminando a ideologia do Estado Novo
(Sousa, 2013).
Numa altura em que a emigração atingia os maiores valores de sempre, o Estado
Novo preocupava-se com a ideia de Portugal associado às províncias
ultramarinas, não obstante a miséria existente nas suas fronteiras originais'
e a ditadura fizessem com que muitos milhares de portugueses emigrassem, quase
sempre para França e, na sua maioria, de forma clandestina.
A palavra portugalidade' foi cunhada, numa lógica a sublinhar, sempre, o lado
positivo, branqueando a contestação à retórica oficial, por via da censura e da
propaganda do regime. A portugalidade' foi incrementada para sublinhar que as
províncias ultramarinas' eram território português, não estando, por isso,
diretamente ligada à emigração dos anos 1960, nomeadamente para a Europa e, em
especial, para França.
Mas, qual o significado de portugalidade' em relação à emigração, sabendo-se
das razões que levaram milhares de portugueses a deixarem o país? Serviria para
destacar alegadas características dos portugueses? Mas onde estão tipificadas
essas características'?
Eduardo Lourenço é bastante cáustico quando se refere à emigração e à sua
ligação à diáspora, adiantando mesmo tratar-se de uma aberração ( ) que a
nossa longa gesta emigrante, de continentais, madeirenses, açorianos, seja
percebida como diáspora (Lourenço, 2004 [1999]: 189). Partindo do princípio de
que diáspora é uma dispersão que, pela força, nos priva da pátria, Lourenço
explica que, se essa designação se transformou em lugar-comum, É talvez apenas
porque para a consciência ressentida ou amorosamente ferida dos que ficam na
sua concha' ( ) o emigrar aparece como uma espécie de culpa, de punição de
quem parte (Lourenço, 2004 [1999]: 189), muito embora se trate de uma punição
sem sujeito, quer dizer que pode ser encarada enquanto libertação, anseio de
melhor vida ou de outro mundo menos especialmente confinado (Lourenço, 2004
[1999]: 189). Já Jorge de Sena, que quase sempre foi emigrante, em declarações
a Arnaldo Saraiva (O Tempo e o Modo), em 1968, a propósito de um alegado
recorte comportamental dos portugueses, utilizava o humor para referir que
Portugal não se salvaria enquanto todos os portugueses não [fossem] obrigados,
por lei, a fazer um estágio no estrangeiro, mas proibidos de se encontrarem uns
com os outros (Sena, 2013: 59). Uma proibição que reputava da maior
importância, para impedi-los de assarem coletivamente sardinhas, cozerem
bacalhau com fervor nacionalista, ou trocarem, sofregamente, as últimas
novidades do Chiado (Sena, 2013: 59). Durante a II Guerra Mundial, em trânsito
para os Estados Unidos da América, fugindo ao regime nazi, na Alemanha, o
escritor Alfred Doblin (1992) esteve em Lisboa alguns meses e, descreveria em
livro, alguns anos mais tarde, que uma das características dos portugueses
consistia em cuspir para o chão (fossem homens ou mulheres). Será essa uma
característica' dos portugueses e, por conseguinte, da portugalidade'?
No caso de A Gaiola Dourada, quem é, afinal, o português'? Quem partiu para
França e lá ficou, ou os seus descendentes que são franceses, mas que (no
filme) se vão instalar no país dos pais? O que vale ser português? Ser
conhecido pelo epíteto de trabalhador'? Aquele que faz tudo que lhe mandam sem
pestanejar nem protestar? Aquele que se junta aos outros portugueses no café,
junto dos compatriotas, e bebe cerveja da marca que há no seu país (no caso do
filme, da Superbock', que está omnipresente, a indiciar um eventual patrocínio
encapotado)? Aquele que se cruza com a verdadeira vida dos franceses, mas
apenas e só quando isso é do interesse destes?
3.1. Portugalidade' e patriotismo
Em A Gaiola Dourada o realizador refere-se à portugalidade' como alegada
pertença a Portugal', recorrendo ao seu percurso, que o próprio reputa de
cliché. Mas será que essa pertença a Portugal é sinónimo de portugalidade'?
Configurará a ideia de portugalidade' ' mesmo que não tipificada, como vimos,
nos dicionários de referência -, um certo patriotismo?
Quem afasta a possibilidade de o amor à pátria poder ser sinónimo, por si só,
de patriotismo é Igor Primoratz. No artigo sobre patriotismo que assina na
Enciclopédia de Filosofia online da Universidade de Stanford (2009), o termo é
definido através de quatro dimensões: i) sentimento especial pelo país; ii)
identificação pessoal com o país; iii) preocupação com o bem-estar do país; e
iv) capacidade de sacrifício para promover o bem do país. Ou seja: não basta
dizer-se que se ama o país (conceito mais comum) para se ser considerado um
patriota (Primoratz, 2009).
Para Anthony D. Smith, nação' refere-se a uma dada população humana que habita
um território histórico e que partilha mitos e memórias históricas comuns, uma
cultura pública e de massas, uma economia comum e os mesmos direitos e deveres
legais para todos os seus membros (Smith, 1997 [1991]: 43). Trata-se de uma
definição com recortes de tipo ideal que, como o próprio explica, pode ser
entendida num sentido modernista, o que não obstaculiza a possibilidade de
encontrar elementos étnicos que sobrevivem nas nações modernas.
Já Eduardo Lourenço refere que, como todo o verdadeiro amor, o patriotismo é,
por assim dizer, 'silencioso'. Silencioso, mas ativo. A devoção ao bem comum
que nele se incarna só os atos que exteriorizam lhe conferem conteúdo e
significado (Lourenço, 1989: 4), pelo que defende tratar-se de um sentimento
em princípio positivo, ao contrário do nacionalismo, visto geralmente como uma
forma exacerbada de patriotismo e com efeitos perversos como a xenofobia. Em
1986, José Augusto Seabra, no livro Cultura e Política ou a identidade e os
labirintos, advertia para a necessidade de a universalidade da cultura
portuguesa dever ser acentuada, o que pressupunha superar duas das
degenerescências serôdias da nossa mentalidade: o nacionalismo e o
provincianismo, ambos correspondendo nas suas metástases, [a] uma alienação
do patriotismo e do municipalismo autênticos, que evidenciam a construção
independente do povo português (Seabra, 1986: 114). Salientava que a alienação
do universalismo correspondia ao internacionalismo, mera fórmula abstrata ou
então justificação da realpolitik de imperialismos totalitários (Seabra, 1986:
114).
A identidade, cujo sinónimo mais vulgar é qualidade do que é idêntico pode,
no entanto, assumir outras perspetivas interpretativas, tudo dependendo do
contexto em que o termo é utilizado. José Mattoso (2008) propõe algumas pistas
explicativas para a atribuição de significado e de valor ao conceito,
introduzindo-lhe dimensões geográficas, políticas e sociais. E é no campo da
Sociologia que a definição mais comum de identidade também é mais contestada,
nomeadamente no que se refere ao aspeto relativo àquilo que é idêntico e
permanece, numa continuidade que se não descaracteriza ao longo do tempo. Tudo
por causa do facto de a identidade se não cingir à mesmidade-continuidade, sem
dar conta da sua dimensão relacional, estratégica e de poder (Ribeiro, 2011:
33). O que quer dizer que toda e qualquer identidade é construída, resultando
de um processo com base num atributo cultural, ou ainda um conjunto de
atributos culturais inter-relacionados, o(s) qua(is) prevalece(m) sobre outras
fontes de significado (Castells, 2007 [1997]: 3). Não obstante no Portugal
contemporâneo a reflexão sobre a identidade nacional não se tenha aprofundado
como noutras nações europeias, o assunto nunca deixou de estar presente na
historiografia e na literatura, tendo-se mesmo desenvolvido e rumado em várias
direções após a queda do denominado Império português' (Matos, 2002). O facto
é que hoje mais do que nunca o discurso sobre a identidade prolifera, havendo
mesmo quem sublinhe a existência de uma verdadeira explosão discursiva em
torno do assunto que passou mesmo a parecer-se como uma avalanche (Sousa,
2011).
Anthony D. Smith reconhece que a construção da nação, para além de implicar a
existência de mitos coletivos e a territorialização étnica, requer assimilação
cultural, educação pública de massas e estandardização legal (Smith, 1997
[1991]:115). Observa, por isso, que os autores que defendem a localização da
nação e do nacionalismo na transição para a época moderna, complicaram a tarefa
de explicar o sentimento de ligação a um passado étnico. Não põe de parte,
porém, a generalidade das análises do contexto sobre o facto de as nações e o
nacionalismo terem emergido na idade moderna. Tem uma visão da nação como um
depósito histórico ' anterior à Idade Média -, sendo que a sua compreensão
deriva da interpretação do passado comum protagonizado quer pelos
historiadores, quer pelos nacionalistas (Smith, 1997 [1991]: 178-179). Se o
nacionalismo, que define como o movimento ideológico que procura alcançar e
manter a autonomia, unidade e identidade para uma população que alguns dos seus
membros pensam constituir uma nação', atual ou potencial (Smith, 1997 [1991]:
71-73), tem recortes modernos, também tem vários aspetos relativos à pré-
modernidade. Nesse sentido, advoga que o nacionalismo desempenha um papel
fundamental no que respeita ao passado étnico, abrindo, dessa forma, portas à
possibilidade de compreender o presente da nação enquanto comunidade moderna.
Para Smith, a identidade nacional não constitui um elemento estanque, sendo
qualquer coisa em reconstrução permanente, em resposta a determinadas
necessidades, interesses e perceções, embora sempre dentro de determinados
limites (Smith, 1997 [1991]: 17). Nesse quadro, na relação entre passado e
presente, refere a importância dos processos de recorrência, de continuidade e
de reapropriação. E, embora reconhecendo que as obras dos autores nacionalistas
contribuíram para a compreensão do passado no que respeita à comunidade de
ascendência comum, chama a atenção para a existência de processos relativos à
invenção das tradições, sustentando que estes não podem ser assumidos como
explicativos do facto nacional (Smith, 1997 [1991]: 129-131).
Albertino Gonçalves destaca três efeitos que os discursos de identidade
comportam e que o sociólogo pode reproduzir, ampliar legitimar: de reificação,
de desdialetização e de dominação. Todos eles remetem para essências, estando
estas ligadas a estados (lusitanidade [portugalidade]) ou a destinos (V
Império), absolutizam o que é relativo, substantivam o que é relacional,
fundamentam na natureza ou no mito o que é histórico, propiciando, nesse
sentido, efeitos de reificação (Gonçalves, 2009: 61); evidenciando que uma vez
(pre)dita, à entidade resta-lhe cumprir a predição (Gonçalves, 2009: 61);
convoca o Princípio de W. I. Thomas relativo às predições criadoras: uma
crença falsa nos seus fundamentos, pode revelar-se verdadeira nas suas
consequências (Gonçalves, 2009: 62); Os discursos de identidade tendem a
suspender ou a exorcizar a negatividade, e tanto a hétero-identificação, que
categoriza o outro, como a autoidentificação, que reconhece o semelhante,
diluem e atropelam a diversidade (Gonçalves, 2009: 62); Socialmente
construídas, as identidades, sempre polémicas, envolvem bricolages ideológicos
(Gonçalves, 2009: 63); Estas construções podem ser mais ou menos bem sucedidas
consoante os casos e as circunstâncias. Convém, contudo, não esquecer que
relevam de estratégias de poder que, operando com arbitrários culturais,
implicam o recurso à violência simbólica (Gonçalves, 2009: 63); Relativas e
questionáveis, as propostas identitárias tendem a converter-se, pela fé e pela
crença, em princípios absolutos. Reencontramos, mais uma vez, a alquimia da
dominação e o efeito de reificação. O meio ultrapassa o fim e a essência trava
a potência (Gonçalves, 2009: 63).
No livro Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional (2012), José Manuel
Sobral enumera entre as características da identidade nacional, a partilha do
nome Portugal' e do respetivo território, o que leva à formação de um sentido
coletivo identificado pelo nome portugueses' e que abrange os que emigraram.
Para Sobral, ser português é reconhecer-se como parte de um coletivo que não
se sobrepõe, antes coexiste com todas essas diferenças e os conflitos que lhe
são inerentes (Sobral, 2012: 17-18), destacando como fatores de diferenciação
a crença religiosa, os valores geracionais, as clivagens políticas, e, em
alguns casos, as identificações regionais. Defende, a propósito, que a nação é
um produto de processos situados no tempo e no espaço, que se afiguram como
um produto da ação humana que, a partir da formação de uma entidade política '
Estado medieval -, constrói lentamente um coletivo diferenciado (Sobral, 2012:
18), pelo que a forma de analisar o processo será através de um exame
histórico. Refere, contudo, que ser-se português não implica partilhar uma
qualquer essência ou substância inefável, mas tão-só reconhecer-se a si e a
outros como tais, e a outros como diferentes, estrangeiros, e que os epítetos
associados ao ser-se português nunca terá sido algo de homogéneo e ainda hoje
o não são (Sobral, 2012: 33). Adverte, no entanto, para o facto, de as
definições sobre pátria, nação, e, por exemplo, identidade, não serem pacíficas
e que a ideia de Portugal enquanto estado-nação ficou enfraquecida com a
globalização e a construção da União Europeia: A este respeito, não deixa de
ser esclarecedor que um símbolo fundamental da criação de uma identidade
específica, a moeda própria, tenha desaparecido (Sobral, 2012: 98), sendo que
outro facto relevante que destaca, prende-se com a aproximação da ligação com
Espanha. Sublinha, ainda, o contexto em que Portugal vive hoje, decorrente da
pós-colonialidade, que terá provocado alterações nas dinâmicas identitárias:
O antigo Império desapareceu em 1975, e da expansão só ficaram as
ilhas atlânticas chamadas, outrora, adjacentes. Portugal, país de
emigração, passou a ser também um país de imigração. E passou a ter
em número significativo, como cidadãos nacionais, portugueses que não
haviam nascido no País, ou cujos antepassados provinham de outros
países que não Portugal, como aqueles que vieram das antigas
colónias. O Portugal pós-colonial é diferente do que era há algumas
décadas, embora esta realidade não tenha ainda alterado as percepções
antigas e muito maioritárias do que é ser-se português, que se
revelam, por exemplo, num orgulho na história centrada na génese e
construção de um império extra-europeu (Sobral, 2012: 97).
O enfraquecimento do Estado decorrente da globalização, por via de uma nova era
pós-nacional e cosmopolita, poderia, segundo Sobral, tornar em algo do passado
as identidades circunscritas, o que não diz que não irá acontecer, não
obstante as mudanças rápidas que se estão a operar já que se as dinâmicas
cosmopolitas são uma parte do presente, as identidades nacionais e os
nacionalismos estão longe de desaparecer (Sobral, 2012: 98). Uma perspetiva já
antes avançada por Anthony D. Smith que salientou que o nacionalismo está
destinado a florescer enquanto persistirem os fundamentos sagrados da nação e
o materialismo e individualismo seculares não tiverem minado as crenças
essenciais numa comunidade de história e destino e a identidade nacional
continuará a servir de material básico de construção da ordem mundial
contemporânea (Smith, 2006 [2001]: 213).
Trata-se de uma visão que não é partilhada pelo historiador Diogo Ramada Curto,
que refere que, no caso de José Manuel Sobral, na obra citada, cria o espaço
necessário para as impressões mais subjetivas acerca da identidade nacional
(Curto, 2012: S/P). Na crítica que fez à publicação no jornal Público, refere
que o autor, ao fazer variar os seus ângulos de análise na compreensão da
identidade dos portugueses, acentua dois aspetos assumidos como argumentos
principais: a necessidade de se pensarem historicamente as práticas de
identidade nacional recorrendo à longa duração, a começar pelo período
medieval e o reconhecimento de uma presença constante do império e das
colónias na narrativa histórica posta ao serviço da identificação dos
portugueses (Curto, 2012: S/P). O que quer dizer que os factos escolhidos para
sustentar a identidade nacional portuguesa implicam que se tivessem que excluir
outros, eventualmente mais importantes, como refere Ramada Curto, dos quais
destaca:
a dimensão estrutural da emigração, as vidas constituídas à margem ou contra as
configurações mais institucionalizadas do Estado e do império, as
discriminações sociais e racistas que acompanham o mesmo processo
expansionista, e as permanentes práticas de violência que foram alvo de uma
glorificação bem arcaica (Curto, 2012: S/P).
Moisés Martins (2011) assinala que, com a globalização e a falência da ideia
aristotélica de unidade, a crise naturalizou-se na vida social, já que o
incremento da velocidade e a alteração do conceito de tempo, conduziu à
fragmentação, à passagem do uno ao múltiplo e à crise de paradigmas. O conceito
de identidade, por exemplo, à luz de uma lógica pós-moderna, sofre um ajuste
interpretativo, na sequência da perda do sentido de unidade associado à
modernidade. Na contemporaneidade a ideia clássica de harmonia é subvertida, o
que se alastra à imagem nacional, assente numa coletividade, que também é
estilhaçada no que concerne à construção da identidade. Colocam-se, assim, em
causa as narrativas sobre a História e a Nação, facto que Jean-François Lyotard
(1986) sublinha ter como consequência a perda da credibilidade das
metanarrativas fundadoras. São, assim, sublinhadas as noções de fragmentação,
de heterogeneidade, dando-se mais importância às denominadas margens do
conhecimento. Segundo Lyotard, a pós-modernidade questiona a legitimidade dos
valores de alegada emancipação totalizante, colocando em causa, e
desmistificando a homogeneidade das narrativas que, antes, subordinavam,
explicavam, organizavam outros discursos, impedindo as diferenças13.
Toda a lógica da modernidade foi desconstruída, provocando o descentramento e
colocando em causa a legitimidade e a bondade' explicativa anterior. A ideia
de totalidade ruiu e, com ela, a ideia da existência de um princípio, um meio e
um fim. Cai, assim, por terra a organização hegeliana de tese, antítese e
síntese, uma vez que todos estão, agora, convocados para o presente, sabendo-se
da existência de um princípio, mas não de um fim. Para essa desconstrução muito
contribuiu Derrida (1971), que não lhe associa a ideia de destruição, mas de
desmontagem, e de decomposição nomeadamente dos elementos da escrita. Para além
disso, com a cunhagem do conceito différance', o filósofo sublinha a
existência de dois sentidos: um, que remete para o futuro (tempo) e, outro,
para a distinção de algo criado pelo confronto, choque. Nesse sentido, o
significado é sempre adiado ou postergado, pela existência de uma cadeia sem
fim de significados e, para além disso, a diferenciação entre elementos um do
outro, promove oposições binárias e hierarquias que sustentam o próprio
significado (Derrida, 1971: 1-28). Este processo amplo de mudança abalou os
quadros de referência que davam aos indivíduos estabilidade no mundo social
(Hall, 2000 [1992]). Questionam-se, assim, as ideias preconcebidas sobre si
próprio, sobre o outro e sobre o mundo (Dubar, 2011), passando-se da identidade
tida como 'definitiva', à identidade não tipificada, que sai da esfera da visão
centrada em 'nós' próprios. Rita Ribeiro (2011) chama a atenção para a
volubilidade do conceito de identidade e da sua vocação para tornar-se num
palimpsesto.
Stuart Hall (2000 [1992]) evidencia que a compressão do binómio espaço-tempo
fez com que as identidades criadas na Europa a partir do Renascimento e do
Iluminismo, estejam em declínio, provocando a fragmentação do sujeito e a
consequente ideia de crise pelo descentramento das identidades. Propõe três
conceções de identidade, todas elas associadas a épocas diferentes: a do
Iluminismo, centrada no indivíduo; a do sujeito sociológico, traduzida na
crescente complexidade do mundo moderno, na interação do indivíduo com a
sociedade; e a identidade do sujeito pós-moderno, que encerra a fragmentação do
sujeito e as suas várias identidades, que não são permanentes nem fixas (Hall,
2000 [1992]). O que, segundo Bauman (2001), significa que a modernidade
líquida' implica que as identidades também são instáveis, tornando-se híbridas
e deslocadas de qualquer vínculo local. Stuart Hall (2000 [1992]) assinala,
ainda, o recorte cultural híbrido das identidades inclusivamente dentro de um
mesmo estado-nação, sendo que este, através da globalização, desloca as suas
próprias identidades nacionais, não obstante a tendência para a sua
homogeneização, sublinhando a diferença, e a alteridade.
Não será por isso de estranhar que o filósofo Rui Nunes se refira à pátria como
sendo um conceito de uma grande fluidez, observando que quando ela é
invocada, pretende-se falar de estado ou de nação, ou da terra onde se nasceu
ou mesmo da língua. Ou da própria viagem, que também é lugar onde a pátria
nasce: Porque só nos apercebemos da sua existência quando nos distanciamos
dela. E falamos dela e gostamos dela. Mas quando regressamos, a sufocação
volta (Carita, 2013: 36).
Em A Gaiola Dourada, a ligação ao país assenta numa ideia nebulosa,
pintalgada de verde e vermelho, sempre acompanhada pelo cachecol da seleção
nacional de futebol portuguesa. Mas, mesmo para aqueles que nasceram em
Portugal e estão em França há mais de 40 anos, o coração' não prima pela
racionalidade, sendo por isso, algo de estranho. E, muito embora balance para
umas alegadas raízes, o corpo acorrenta-se ao país de acolhimento. Mesmo que os
média e os responsáveis políticos mais proeminentes do país mostrem uma visão
mítica de uma alegada portugalidade', com Portugal vestido de Mourinho-
Ronaldo-Mariza, a realidade sublinha o Portugal-pobre-e-falido, que não deixa
de ser recorrente. José Eduardo Agualusa (2009) resume, de certa forma, a
relação dos portugueses com Portugal que diz ser bastante desvirtuada quando é
comparado com a grandeza dos outros países, facto que tem que ver com a cultura
nacional. E, se para um estrangeiro, isso se pode confundir com desamor, o
escritor realça que isso não passa de um grave equívoco, já que para um
português, maldizer a pátria é uma forma superior de patriotismo (Agualusa,
2009: 73).
3.2. Portugalidade' e cultura portuguesa'
Stuart Hall defende que para se falar sobre a existência de uma eventual
centralidade da cultura, torna-se necessário deixar para trás a ideia de
verdade absoluta. Nesse sentido, a temática da identidade, à luz da cultura,
coloca em causa a tradição disciplinar assente na existência de um sujeito
monolítico. Hall, questiona o lugar da cultura através das suas centralidades
substantivas, enquanto o lugar da cultura na estrutura empírica real e na
organização das atividades, instituições e relações culturais na sociedade, em
qualquer momento histórico particular e epistemológico, que se refere à
posição da cultura em relação às questões de conhecimento e conceptualização,
em como a cultura' é usada para transformar a nossa compreensão, explicação e
modelos teóricos do mundo (Hall, 1997: 208-209).
Dessa forma, quando se fazem alusões sobre a existência de uma cultura
portuguesa' será que há alguma forma de sustentar essa ideia? Como vimos, a
portugalidade' ' um termo que assenta num certo imaginário' fundado numa
determinada ideologia -, não consta dos dicionários de referência. Não
obstante, há inúmeras alusões à palavra, ligando-a não raras vezes a um aspeto
cultural identitário dos portugueses e daquilo que é verdadeiramente'
português, o mesmo acontecendo noutros países, embora em contextos
diferenciados e com géneses diversas14.
A propósito desta temática e tentando responder à questão da existência ou não
de uma cultura portuguesa, foi promovida, em 1992, uma mesa-redonda alargada,
coordenada por Augusto Santos Silva e Vítor Oliveira Jorge, (cujo resultado foi
publicado em livro, com coordenação de ambos, em 199315), que contou com a
participação de vários especialistas de áreas diversas. Foram encontradas
quatro respostas, na tentativa de explicar em que condições se pode falar de
cultura portuguesa. i) Pode, assim, falar-se da cultura dos portugueses,
referindo-se aos padrões de conduta e às práticas e obras culturais de grupos
sociais portugueses, em que se impõe a diversidade. E, mais do que a procura de
unidades míticas, importa atender às diferenças de escala, contexto, condição
e projeto dos atores que invocamos. A cultura nacional declina-se no plural, é
um mosaico de culturas regionais, de classes ( ); ii) Através de um processo
dinâmico, por vezes subtil ou quase impercetível, de endogeneização' de
contributos externos que queremos, assim, ressaltar; iii) Pela via da
especificação da singularidade social portuguesa, tal como ela é apercebida
quando traçamos comparações internacionais sistemáticas; iv) Finalmente,
utilizando os três sentidos anteriores, podemos tomar o tema da cultura
portuguesa como uma imagem elaborada por intelectuais, por ideólogos ou mesmo
por atores comuns, sendo esse o motivo da criação da identidade cultural dos
portugueses. Nesta perspetiva, o olhar poderá ser doutrinário ou analítico,
cúmplice, distanciado ou mesmo desconstrutivo relativamente às criações
estéticas, filosóficas, eruditas ou de senso comum sobre a nossa própria
realidade, quer no presente quer na sua dimensão histórica (Santos &
Jorge, 1993: 12-13).
O tema, como sintetizam os autores na introdução da publicação, provocou um
vivo diálogo entre especialistas das ciências humanas, que tendiam a valorizar
a cultura dos portugueses, e os especialistas mais vinculados à cultura
estética e literária, que prestavam muita atenção às tentativas recorrentes de
definir uma identidade cultural, mesmo que mítica, da Nação (Silva &
Jorge, 1993: 13). O que significa que para uns há uma cultura portuguesa
justamente na medida em que os pensadores têm proposto uma imagem, mítica ou
não, do que é Portugal, e é essa imagem que acaba por dar unidade à nossa
cultura, sendo que outros preferem o caminho da desconstrução de qualquer
ideia identitária, sugerindo que ela tem de ser contextualizada histórico-
sociologicamente e sujeita a um trabalho permanente de desmistificação (Silva
& Jorge, 1993: 13). A construção e a desconstrução dos elementos
alegadamente característicos' da cultura portuguesa' constitui, então, um
movimento pendular mais ou menos inevitável (Silva & Jorge, 1993: 13):
A perspectiva científica, analítica, tende a dar mais ênfase ao
segundo aspecto, o da desconstrução, para historicizar,
contextualizar, mostrar o carácter particular (no tempo, espaço, e em
conjuntos de pessoas específicos) de determinados comportamentos ou
representações. A primeira visão, porém, impõe-se também como síntese
reflexiva, necessariamente variável de pessoa para pessoa ou de grupo
para grupo. Essa síntese pode ser consciencializada, trabalhada como
teoria explicativa do que é ser português, ou, no outro extremo,
apenas vivida e articulada em torno de hábitos, afectos, símbolos
colectivos, que o emigrante, por exemplo, procura reproduzir (pelo
menos ao nível privado ou de pequenas comunidades) no país que o
acolhe (Silva & Jorge, 1993: 14).
Quando se fala em cultura portuguesa', está a falar-se de identidade coletiva
do povo português, que vive dentro de fronteiras estáveis ao longo de séculos.
Mas pode, também, colocar-se do ponto de vista da identidade individual:
Se a identidade de uma pessoa é uma realidade sempre trabalhada,
sempre em negociação, multiforme, também a identidade colectiva terá
de ser um conjunto de representações que, traduzindo a variedade dos
grupos e dos interesses, aponte em cada momento para um tecido mínimo
que sustente a coesão social, para ter de se reformular no momento
seguinte, como decantação de múltiplas forças, múltiplas contradições
e interesses que coexistem no seio da comunidade (Silva & Jorge,
1993: 15).
E, numa altura (1992) em que se perspetivava uma mutação na noção de estado-
nação, os mesmos autores questionavam que, talvez, as identidades colectivas
[deixassem] de ser feitas de estado contra estado, mas por inclusão (Silva
& Jorge, 1993: 15), por integração dos indivíduos e dos grupos em escalas
de identidade', em que o facto de alguém se sentir português extravasa os
limites do país, podendo cruzar-se com outras latitudes:
Se nos sentimos portugueses, somos também ibéricos ' e portanto já
resultantes de um profundo cruzamento das tradições judaica, cristã e
muçulmana. E somos ainda europeus, habitantes do Mundo Antigo. E
cidadãos do planeta, cada vez mais articulado pela rede dos negócios,
das comunicações, das viagens ' e dos problemas da mais chã
sobrevivência. Pensar na nossa cultura não deixará de ser pensar
também nos modos como poderemos fazer essa articulação planetária
um mundo de sentido e convivência em que todos nos reconheçamos, na
diversidade que é a raiz mais funda da unidade da espécie humana.
(Silva & Jorge, 1993: 15).
Um dos especialistas presentes na mesa-redonda foi Boaventura de Sousa Santos,
referindo que as culturas não estão fechadas e que, de alguma maneira, todas
elas são fronteiras. No entanto, devido à experiência histórica relativa à
sociedade portuguesa, a diferença existente é diferente. O sociólogo
evidenciava não ser em vão que a maioria dos portugueses tenha dentro de si
uma memória cultural de dupla cidadania, isto é, o português não é cidadão de
um país só. É cidadão de Portugal, como é da América, como é de Moçambique,
como é de Angola, como é de França, o que torna difícil as cidadanias
estandartizadas dos portugueses (Silva & Jorge, 1993: 36). Dizia existir
uma falta de lealdade estandartizada e homogeneizada, justificando a criação
de formas de violência babélica, e outras formas de falta de protagonismo face
ao outro, com excessiva identificação (Silva & Jorge, 1993: 37). Já
Eduardo Lourenço, na mesma mesa-redonda, defendia a ideia de que Portugal tem
uma hiperidentidade, porque tem um deficit de identidade real que compensa no
plano imaginário (Silva & Jorge, 1993: 38), observando que os portugueses
ficam muito portugueses, ficam sempre portugueses (Silva & Jorge, 1993:
39). E, a propósito de quem se refere aos povos como independentes da
existência de sinais próprios e de características diferenciais de
autoidentificação, assinalava ser estranho perceber como é que, em contacto e
deslocados do seu lugar de origem, os portugueses continuam a preservar a sua
essência, entre aspas ou mesmo sem aspas (Silva & Jorge, 1993: 39), que
refere ter sido sempre motivo de admiração. Não obstante, Lourenço salientava
que essa essência é de difícil definição, aventando como possível explicação o
facto de os portugueses se tivessem sempre de definir em relação a outros pela
sua própria debilidade.
O facto de Portugal ser um país para o qual a preservação da
continuidade histórico-política foi sempre inconscientemente, ou na
realidade histórica, uma dificuldade (não é o único país, há outros,
mas esses perderam na História, na Europa Central, por exemplo), fez
com que nós tenhamos, se não um sentimento de ordem positiva, um
sentimento de identidade intensamente negativo. Nós não queremos ser
o outro. E isto também é uma marca. E, não querendo ser o outro,
somos qualquer coisa que nos estabelece numa diferença, já neste
capítulo (Silva & Jorge, 1993: 39).
No filme A Gaiola Dourada destacam-se as incongruências entre a realidade e
aquilo que alguns gostavam que acontecesse, nomeadamente em relação a Portugal:
visto como um regresso quase mítico às origens, mas que não corresponde à
verdade nos dias que correm, em que a globalização diluiu as fronteiras e o
mundo, por assim dizer, ficou mais pequeno, devido ao encurtamento das
distâncias (físicas e comunicacionais). Este tipo de lógica é utilizada,
nomeadamente, pelo discurso político, sendo o Presidente da República, Cavaco
Silva, um grande cultor dessa retórica, apelando por diversas vezes aos
emigrantes para que estes sejam os veículos da portugalidade' na diáspora16.
Na mesa-redonda que temos vindo a citar, sobre a existência de uma identidade
portuguesa, a antropóloga Eglantina Monteiro salientava que ela estava ligada a
um período coincidente com o fechamento de Portugal ao exterior, uma vez que a
questão da nossa identidade ou da construção das múltiplas identidades, põe-se
na confrontação com o outro, com a alteridade (Silva & Jorge, 1993: 46). É
através da diversidade da identificação que se poderá organizar um povo, o que
significa tratar-se do início do anti-racismo, do anticolonialismo e do anti-
sexismo, porque assim se escapa aos perigos da marginalização e subordinação
sociais, muitas vezes ligadas à ideia de identidade (Silva & Jorge, 1993:
46). O historiador Diogo Ramada Curto contrapunha com a ideia de que, mais do
que a oposição entre a identidade e a alteridade, o problema assentava nas
formas de contextualização e de historicização de determinados objectos
(Silva & Jorge, 1993: 137). Ora, mais de 20 anos depois, o historiador
Pedro Cardim, num artigo de opinião publicado no jornal Público intitulado
Portugal, Catalunha e Espanha ou o uso que o nacionalismo faz da história,
veio mostrar que aquilo que era referido por Ramada Curto se veio a verificar,
estando patente na evolução na historiografia [no caso de Portugal e de
Espanha] numa mudança que aconteceu após a democratização, e em que quase
todos os historiadores dos dois países puseram de lado as paixões nacionalistas
e desenvolveram investigações cientificamente alinhadas com o que de melhor se
faz no plano internacional (Cardim, 2014: S/P).
Fazendo, de certa forma, a síntese sobre toda esta problemática, e apontando um
eventual caminho a seguir, José Mattoso sublinha que se o critério de análise
for o da objetividade, excluem-se desde logo as teorias míticas e messiânicas,
tão insistentes, tão carregadas de emotividade, acerca do destino universal do
povo português, do seu insondável mistério' e da sua irredutível
originalidade (Mattoso, 2008: 97).
4. A emigração portuguesa: uma constante estrutural'
Vitorino Magalhães Godinho (1978) considera a emigração uma constante
estrutural da demografia portuguesa, já que essa prática está associada à
população do país desde a conquista de Ceuta (1415), assumindo novos recortes a
partir de 1420-1425, na sequência da fixação dos primeiros colonos, com
carácter permanente, na ilha da Madeira, território então recém-descoberto,
como assinala Joel Serrão (1970). O fenómeno estendeu-se a outras ilhas, com a
necessidade existente em colonizá-las ' casos de Açores, Cabo Verde e S. Tomé e
Príncipe -, acontecendo o mesmo após a descoberta do Brasil e, sobretudo, a
partir do século XVI, com a transferência do eixo da política colonial do
Índico para o Atlântico e as tentativas de ocupação daquelas terras (Arroteia,
1983: 11). Humberto Moreira assinala que, a par das estatísticas sobre
nascimentos, casamentos e óbitos, constantes dos registos paroquiais, a
emigração aparecia de igual modo, desde os finais do século XIX, nas
publicações estatísticas nacionais de âmbito demográfico (Moreira, 2006: 51).
Rui Pena Pires aponta como razões para a emigração dos portugueses, a fuga à
pobreza e à crise, o que não significa que os emigrantes sejam sempre os mais
pobres dos pobres, nem que toda a migração tenha origem na pobreza (Pires,
2010: 15).
Há, no entanto, que ter em atenção que os índices disponíveis sobre o fenómeno
da emigração não integram a emigração clandestina, pelo que há a necessidade em
problematizar alguns dados, sendo conveniente salvaguardar a hipótese de as
características conhecidas serem uma pobre, e muito provavelmente, errónea
representação do fluxo migratório global, como referem Maria I. Baganha e
Pedro Góis (1999: 250). Para além disso, referem que os estudos existentes à
data, pareciam desconhecer que mais de 48% e de 81% dos emigrantes entre 1960-
1969 e 1970-1979, respetivamente, deixaram o país de forma clandestina, pelo
que se se tivesse em conta o seu perfil demográfico e as suas características
socioeconómicas muito provavelmente alteraria por completo o que se escreveu e
escreve sobre a evolução destas mesmas características (Baganha & Góis,
1999: 250), pelo que referiam ser necessário para a investigação tipificar os
perfis do emigrante clandestino, bem como quais as redes de apoio por eles
usadas, e que tipo de negócios promoveram.
De resto, Vitorino Magalhães Godinho (1978) considera que, desde sempre, a
emigração clandestina ou, pelo menos a que nunca foi registada, se revelou
extremamente importante, referindo a existência de relatos em épocas distintas,
a atestar a extensão do fenómeno. Jorge Carvalho Arroteia refere que esse
movimento se tem desenrolado ao longo de décadas, sempre apoiado por inúmeras
redes de engajadores que, por esta forma, prometem minimizar as dificuldades
impostas pela emigração legal, primeiro em direção ao Brasil e, mais tarde
para a Europa (Arroteia, 1983: 99). Vítor Pereira sublinha ter sido, no
entanto, através da emigração clandestina que os migrantes portugueses puderam
obter, para si e para as suas famílias, melhores condições de vida e contribuir
para a modernização de Portugal e para o processo de europeização (Pereira,
2014: 429). A contribuição dos migrantes é, no entanto, negligenciada na
historiografia e nos discursos públicos portugueses, sendo frequentemente
comparada a uma fuga, a um fracasso e a um símbolo de atraso do país: A
emigração continua a ser até aos nossos dias um fenómeno que as elites
portuguesas preferem calar (Pereira, 2014: 429). José Manuel Sobral contrapõe,
salientando não terem sido apenas as elites que estiveram envolvidas no
fenómeno da emigração associada aos descobrimentos portugueses e que O
empreendimento constituiu uma oportunidade para muitos dos habitantes de
Portugal, incluindo os mais pobres, tentarem melhorar a sua fortuna e posição
ou, pura e simplesmente, para escaparem à pobreza existente nas cidades e nos
campos (Sobral, 2012: 44). Já Miguel Real (2013), no livro Nova Teoria do
Sebastianismo, defende que o sebastianismo tem a dupla função de servir de
consolo para o fracasso e a inação, instigando, no entanto, a esperança,
através do sonho e da ideia de acreditar que a mudança é possível. Só que esse
desiderato está sempre dependente de um fator externo, sendo a emigração o
único grande ato emancipador possível, mesmo que haja alguma perversidade nessa
dinâmica, uma vez que são os mais corajosos, os mais capazes que saem do país,
impelidos pelas elites a buscarem no estrangeiro o que lhe é negado na sua
terra natal(Real, 2014).
É, por conseguinte, longo o historial português relativo às estatísticas
migratórias. Eduardo Lourenço chama a atenção que, nas relações consigo mesmos,
os portugueses exemplificam um comportamento que só parece ter analogia com o
do povo judaico: Tudo se passa como Portugal fosse para os portugueses como a
Jerusalém para o povo judaico (Lourenço, 1994 [1988]: 10). Rui Pena Pires
refere que, em Portugal, a emigração é um importante fenómeno de dimensão
nacional que ganhou lastro a partir de meados do século XIX. Entre 1855 e 1930,
quase 2 milhões de portugueses emigraram com destinos variados, embora fosse
evidente o predomínio do Brasil como principal destino, no que constitui o
primeiro grande ciclo da emigração portuguesa: Foi um fluxo emigratório
transatlântico, com o continente americano como principal destino, em
particular o Brasil. Sobretudo a partir dos anos 30 do século XX, este fluxo
emigratório ganha dimensão (Pires, 2010: 22-23). O segundo grande ciclo
emigratório coincide com o fim da Segunda Guerra Mundial e afirma-se em pleno a
partir de 1960, tendo recortes predominantemente intra-europeus, com a França a
ser o principal destino. Entre 1931 e 1975, terão emigrado mais de 2 milhões de
portugueses17, sendo que a crise económica que despontou a partir de 1973 e a
diminuição da necessidade de mão-de-obra levou a que muitos países adotassem
políticas restritivas à entrada de estrangeiros: Os reflexos no fluxo
emigratório português são evidentes, originando uma diminuição acentuada do
número de emigrantes portugueses até ao final da década de 1970 (Pires, 2010:
23).
Ainda recentemente (2010), no quadro da União Europeia, Portugal era,
simultaneamente, país de destino e de origem de migrações internacionais. Já
nessa altura, Rui Pena Pires alertava para o facto de o saldo que era favorável
à imigração nos últimos 25 anos do século XX, ter tendência a ir provavelmente
mudar em favor da emigração durante a década em curso, o que se está, de resto,
a verificar. Referia, a propósito, que os dois fluxos não e limitavam a
coexistir, mas reforçavam-se mutuamente.
Quanto à emigração portuguesa, cujo fluxo tinha sido interrompido em
1974, voltou a crescer no quadro da integração europeia, com novos
destinos (Suíça, Espanha, Reino Unido e Angola), e mantendo alguns
dos países de emigração nos anos 1960 (Luxemburgo), caindo os
destinos transatlânticos do século XX. Em consequência de toda esta
história longa de emigração, há hoje [2010] cerca de 2,3 milhões de
emigrantes portugueses. Contando com os descendentes já nascidos no
estrangeiro, os portugueses no mundo serão cerca de 5 milhões (Pires,
2010: 16).
Maria I. Baganha e Pedro Góis referem que, em 1991, os portugueses a residir
no estrangeiro representariam mais de 40% do total de residentes no território
nacional, enquanto os estrangeiros que permaneciam em Portugal representariam
1,5% da população nacional residente (Baganha & Góis, 1999: 229), sendo
que, ainda em 2010 ' ano em que a França liderava, destacada, a lista dos
países de destino da emigração portuguesa (Pires, 2010) -, Jorge Malheiros
falava de Portugal como o país do regresso da emigração, depois de muitos anos
em que a saída de portugueses para o estrangeiro não foi significativo, sendo
substituída pela imigração, apanágio dos países desenvolvidos, e que quase todo
o espaço reservado nas agendas política, académica e social ao fenómeno das
migrações internacionais (Malheiros, 2010: 133).
Rui Pena Pires observa que, desde meados do século XIX a emigração suscitou um
longo debate, com o Estado liberal a desenvolver estratégias de intervenção
para limitar as redes de engajamento. Via, contudo, na emigração a
possibilidade de dilatar a influência e o mercado externo português, pelo que,
durante a vigência do Estado Novo, por exemplo, a política emigratória
portuguesa estava subordinada aos interesses económicos do Estado, garantindo
as necessidades nacionais de mão-de-obra, a satisfação dos interesses em África
e beneficiar das remessas dos emigrantes: Nesse sentido, o Estado procurou
condicionar o fluxo emigratório nos anos 1960, determinando que apenas se
autorizasse a saída de 30 mil portugueses por ano, chegando-se a interditar a
saída de algumas profissões (Pires, 2010: 28).
Vítor Pereira (2014) corrobora esse ponto de vista, observando que a política
relativa à emigração durante o Portugal de Salazar (que constituía a mais
antiga ditadura de direita na Europa) era ambígua, servindo, em primeiro lugar,
os seus próprios interesses, e impedindo a população de emigrar legalmente,
pelo que quem emigrava para França, fazia-o clandestinamente. Uma situação que
decorria do fechamento do país ao exterior, mantendo as colónias sob sua
alçada, ao mesmo tempo que tentava filtrar os efeitos da modernidade,
protegendo o país das influências estrangeiras18. Não obstante, por abarcar 10%
da população, a emigração vai converter-se num desafio para o regime, sendo que
só entre 1957 e 1974, emigraram para França cerca de 900.000 portugueses, mais
de metade dos quais de forma clandestina, contornando o Estado (Pereira,
2014)19. Rui Pena Pires (2010) refere que, com a Europa a ser o novo destino da
emigração portuguesa, a par das restrições colocadas pelas autoridades
portuguesas à emigração, a opção pela saída clandestina do país foi ganhando
cada vez maior dimensão.
O fluxo intra-europeu a partir dos anos 1960 demonstrou uma
particularidade: o enorme peso da emigração ilegal, em particular
para França. As redes de emigração implementadas nas zonas
fronteiriças e a oferta de trabalho nos países de destino foram
igualmente factores que permitiram o crescimento da emigração ilegal,
em particular até meados da década de 1970. A partir de então, muitos
dos países de acolhimento adoptaram políticas de imigração
restritivas, passando a promover políticas de regresso voluntário dos
emigrantes aos países de origem (Pires, 2010: 34).
Vítor Pereira sublinha tratar-se da primeira vez, desde 1926, que a emigração
se reveste de uma tal dimensão, dirigindo-se não maioritariamente para a
América mas para a Europa. E também a primeira vez que a mobilidade
transnacional da população coloca semelhante problema à ditadura (Pereira,
2014: 26). Na década de 1960, a França sobressaía como o país que acolhia a
vasta maioria dos emigrantes portugueses, substituindo o Brasil: A partir de
1963, recebeu mais de metade dos emigrantes saídos de Portugal e, depois de
1970, acolheu cerca de 70% do fluxo emigratório português (Pires, 2010: 36). A
maior parte deles foram substituir no mercado de trabalho franceses, espanhóis
e italianos, exercendo tarefas na construção e obras públicas, nos serviços
domésticos, na limpeza, e como porteiros, e na agricultura. Jorge Carvalho
Arroteia constata que, embora fosse reduzida até 1962, a emigração clandestina
para França aumentou bastante até 1971, avançando números que fazem com que
naquele período fosse o que mais portugueses tivessem saído de Portugal
passando de quase 13.000 saídas para o dobro em 1963 e duplicando de novo no
ano seguinte com mais de 65 000 emigrantes Arroteia, 1983: 49). Observa ter
existido alguma estabilidade até 1968 (com uma média de 75.000 saídas anuais),
assistindo-se, entre 1969 e 1971, a um novo aumento (117.760 emigrantes por ano
em média), valor que se reduz para cerca de metade em 1972 e volta a decrescer
a partir de 1974, após as medidas de suspensão da entrada de novos emigrantes
adoptadas por esse país (Arroteia, 1983: 49).
Segundo Rui Pena Pires, os emigrantes portugueses em França cresceram em
número e em representatividade em relação ao total de imigrantes que a França
acolhia, sendo que o fluxo migratório aumentou devido à política activa de
captação de mão-de-obra desenvolvida pelas autoridades francesas e o facto de
não ser exigida qualquer qualificação profissional aos emigrantes portugueses
(Pires, 2010: 36). Isto fez com que se fossem constituindo focos de comunidades
portuguesas, inicialmente com dificuldades de inserção na sociedade francesa,
mas que com o passar do tempo terão conseguido a integração na sociedade de
acolhimento (Pires, 2010: 36). O sociólogo refere que, em 1975, a população
portuguesa em França atingia os 750.000 indivíduos. Um pouco mais tardiamente,
a Alemanha afirmar-se-ia também como um importante destino recebendo cerca de
12% da emigração portuguesa nos anos 70. Apenas com a Constituição de 1976 é
que foi consagrado o direito individual de mobilidade externa.
4.1. Cultura dos imigrados' e culturas de origem'
Denys Cuche refere que nos anos 70 do século XX a expressão cultura dos
imigrados entra em voga, em França, na sequência da descoberta pelos franceses
de que os imigrados e os que os rodeavam tinham intenção de permanecerem no
país de acolhimento. É nessa altura que surgem as questões em torno da sua
integração, nomeadamente sobre as eventuais consequências da sua diferença
cultural, sendo as suas culturas próprias geralmente assimiladas de modo
redutor as suas culturas de origem (Cuche, 2004: 165). O sociólogo contesta,
desde logo, a ideia de cultura de origem, por participar de uma conceção
errónea do que seja uma cultura particular, já que a cultura não é uma bagagem
que alguém possa transportar consigo ao deslocar-se. Não se transporta uma
cultura como se fosse uma mala, sendo que a não ser assim, se cairia na
reificação da cultura (Cuche, 2004: 165). Para Cuche, o que se desloca, na
realidade, são indivíduos que, pelo facto de terem migrado, são levados a
adaptarem-se e a evoluírem e que vão encontrar-se com outros indivíduos que
pertencem a culturas diferentes. É daqui que emanarão novas elaborações
culturais. Nesse sentido, refere que o recurso à noção de cultura de origem
tem tendência a minimizar os contactos em causa e os seus efeitos, porque a
noção pressupõe que uma cultura é um sistema estável e comodamente transponível
para um novo contexto, o que todas as observações empíricas parecem desmentir
(Cuche, 2004: 166-167).
Toda a cultura é evolutiva, mas talvez o seja ainda mais a de uma
sociedade que se confronta com uma emigração forte. As condições
sociais e económicas que conduziram numerosos indivíduos a emigrar
são portadoras elas próprias de transformações culturais na sociedade
de partida (Cuche,2004: 168).
O que quer dizer que os países de emigração são muitas vezes países em
transição, em construção ou em reconstrução, pelo que é precisamente por isso
que os migrantes experimentam muitas vezes um desfasamento' cultural, fonte de
mal-entendidos, quando regressam ao país ( ) tanto no caso de um regresso
provisório ou definitivo (Cuche, 2004: 168). Trata-se de um duplo
desfasamento, uma vez que o país mudou, muito embora os próprios emigrantes
também tivessem mudado:
Os emigrantes já não reconhecem o seu país e são eles próprios
percebidos como diferentes pelos seus compatriotas. Daí, a
dificuldade do regresso, que se assemelha sempre a uma nova migração.
Se quiséssemos a todo o preço conservar a expressão "cultura de
origem", não poderíamos, em rigor, utilizá-la a não ser para designar
a cultura do grupo de pertença no momento da partida (Cuche, 2004:
168).
Denys Cuche defende que são as estruturas sociais e familiares do grupo de
origem a que os migrantes pertencem, de uma forma mais realçada do que a
cultura de origem, que permitem explicar as diferenças nos modos de integração
e de aculturação, no interior da sociedade de acolhimento, de imigrados
provenientes de um mesmo país (Cuche, 2004: 169). Dá o exemplo dos imigrantes
portugueses em França, citando as investigações de Maria Beatriz Rocha
Trindade, que defende que a trajetória de inserção será sensivelmente diferente
consoante a proveniência dos imigrantes. Se fossem, por exemplo, oriundos de
comunidades camponesas tradicionais (do Norte ou do Centro de Portugal),
mantinham-se fiéis às tradições; se fossem oriundos do Algarve, teriam um
comportamento mais urbano.
O sociólogo sublinha que os modelos de integração nacional próprios de cada
Estado influenciam consideravelmente o devir social e cultural dos imigrados. O
que quer dizer que, o facto de se recusar o uso generalizado da noção de
cultura de origem nem por isso implica que se abstraia da referência frequente
que às suas origens fazem numerosos migrantes, nem que se desconheça o que essa
referência pode significar para eles (Cuche, 2004: 172). Nesse sentido, evocar
as origens é fundamentalmente declinar uma identidade em que o próprio se
reconhece (Cuche, 2004: 172), sendo que, para os filhos e os netos de
imigrados, definirem-se por referência as origens dos seus pais ou dos seus
avós é inscreverem-se numa história familiar, participarem numa memória
colectiva (Cuche, 2004: 172), que recorda sempre o local de proveniência.
O facto de, em certos imigrados, se verificar uma ligação forte às tradições de
origem é, para Denys Cuche, uma evidência. Ilustra-a com o exemplo já citado
dos camponeses portugueses imigrados na região parisiense que se esforçaram por
conservar o mais fielmente possível os seus costumes alimentares e comerem
como no seu país, comerem os produtos do seu país, e afirmarem que tudo
continua como antes, apesar da expatriação (Cuche, 2004: 173). E, para que
tudo ficasse completo, nada era deixado ao acaso, fazendo vir boa parte da sua
alimentação quotidiana de Portugal, chegando ao ponto de mandarem vir da sua
aldeia as batatas, como se as não houvesse em França: é que não têm sem dúvida
o mesmo gosto e não provêm, sobretudo, da mesma terra (Cuche, 2004: 173). Para
o sociólogo, tais práticas não bastam, no entanto, para que a continuidade
cultural esteja garantida, sublinhando que as práticas tradicionais se veem
cada vez mais descontextualizadas e também por terem perdido o carácter
funcional inicial. Mesmo que mais não sejam do que a expressão do
tradicionalismo do desespero, nem por isso essas práticas são
insignificantes, manifestando a vontade de conservar uma ligação com aqueles
que ficaram na aldeia, no país (Cuche, 2004: 173). E, muito embora nem todos
os migrantes tenham o mesmo apego às tradições, o que está em jogo tem mais a
ver com a salvaguarda do laço comunitário do que com a reprodução da cultura de
origem, que não pode deixar de ser em grande parte ilusória (Cuche, 2004:
174).
4.2. Tradição cultural' e culturas mistas'
As considerações de Cuche levam-nos ao conceito de tradição cultural que,
para este sociólogo, não existe em si mesma, mas em função de uma certa ordem
social, sendo que nem todos os indivíduos têm a mesma posição nestas relações
sociais, nem podem ter todos o mesmo interesse em manter as tradições
(Cuche, 2004: 174). Pode, então, afirmar-se que as culturas dos migrantes são
culturas mistas', que são produzidas através de uma mestiçagem cultural que
apresenta para o observador a vantagem de se realizar praticamente diante dos
seus olhos (Cuche, 174-175).
No texto Uma vida entre parêntesis. Tempos e ritmos dos emigrantes portugueses
em Paris, da autoria de Albertino Gonçalves (2009: 145-154), que decorre da
observação participante que o sociólogo fez ao longo de mais de seis anos, até
1982, com emigrantes portugueses em Paris, não obstante as advertências feitas
para que o texto seja contextualizado na atualidade20, muitos dos sublinhados
relativos à vivência dos emigrantes portugueses em França servem para
perspetivar a evolução relativa ao fenómeno da emigração. Segundo Gonçalves, o
emigrante português oscilava entre várias dicotomias o coletivo e o
individual; a euforia e a disforia; a introversão e a extroversão; o potlatch e
o aforro; o excesso e a mesura; a inclusão e a exclusão; o próximo e o
distante; o nome e o anonimato; o ser alguém e ninguém (Gonçalves, 2009: 151).
A vida emigrante resumia-se quase sempre a duas partes do ano: o verão,
correspondente às férias (cerca de um mês) e um longo inverno', em que as
férias correspondiam a um tempo que conta muito mais, porque passado no país de
origem, do que o longo inverno', destinado ao trabalho, em França, o que
contrasta, paradoxalmente, com a história contada pelo filme A Gaiola
Dourada, em que os emigrantes portugueses que o protagonizam, não costumam
passar férias em Portugal, não regressando há vários anos ao país de origem.
Para se preencher esse vazio, reinventa-se um pouco do país em França: O tempo
de permanência no estrangeiro é regularmente interrompido por breves, mas
gratificantes, períodos de (con)vivências à portuguesa'. Autênticas recriações
do ambiente lusitano ( ) (Gonçalves, 2009: 152). Trata-se de uma espécie de
transmutação, em que as coordenadas espaço e tempo sofrem uma deslocação,
em que o espírito da terra natal se instala e anima uma comunhão regeneradora.
No coração de Paris, respira-se Portugal e todas as ocasiões são boas para
embarcar na caravela das quinas rumo às origens (Gonçalves, 2009: 152-153).
São momentos consagrados aos seus: parentes, amigos, vizinhos;
lugares, objectos, costumes. A tudo o que lhes é querido e lhes
alicerça a identidade. Sonha-se a casa a construir, eternamente
inacabada. Lê-se A Bola e o jornal regional. Festeja-se, segundo a
tradição, a consoada. Coze-se bacalhau com batatas e couves. Bebe-se
o verdasco. Vai-se ao banco português mandar dinheiro para a terra
e fica-se decepcionado se, porventura, os clientes são poucos e a
espera é pequena. Actos simples, despidos de pompa, mas iluminados
por Portugal. Pitadas de sal numa existência desenxabida (Gonçalves,
2009: 153).
Só que, isso acontece longe da terra de origem. Quando a ela regressam, nem que
seja para passar o mês de férias, o que é nosso' já não será assim tão bom,
cedo se recordando que onde eles vivem, no outro país, é que as coisas são
melhores e funcionam com muito maior eficácia: O emigrante quando recorre aos
serviços portugueses, das nacionais burocracias aos cuidados de saúde, ei-lo
que, insistentemente, invoca, para exasperação dos residentes, os méritos e
créditos alheios e aponta as misérias e vícios caseiros (Gonçalves, 2009:
154).
Urbano Tavares Rodrigues, no livro Redescoberta da França (1973), em que
escreve sobre a vivência dos portugueses em Paris, embora sem generalizar,
deixava clara a forma como o emigrante português era tratado: Para o francês
xenófobo, da burguesia, que continua a proclamar-se não-racista, tomando
entretanto em relação ao emigrante económico atitudes de agressivo
segregacionismo (Rodrigues, 1973: 52). Mais: o português já nem sequer era
tido como branco, palavra, de resto, profundamente odiosa quando envolve
conceito de superioridade, domínio da tecnologia, herança cultural (Rodrigues,
1973: 52). O escritor relatava, ainda, que havia quem lhe tivesse gabado os
portugueses, trabalhadores mais submissos que os espanhóis, num estereótipo que
perdurou, como podemos constatar através do filme A Gaiola Dourada: Esses
trabalhadores diligentes e pertinazes da minha terra vazia. Ils sont gentils,
soumis, pas du tout comme les espangnols' (Rodrigues, 1973: 52). Ora isso
fazia com que muitos portugueses, residentes ou não em Paris, escondessem
prudentemente a sua origem, para evitar vexames, em locais públicos
(Rodrigues, 1973: 52).
Em 1992, Eduardo Prado Coelho, na mesa-redonda a que já aludimos coordenada por
Augusto Santos Silva e Vítor Oliveira Jorge, referia-se à eficaz integração dos
portugueses, em França, salientando não corresponder, no entanto, a um modo de
compreensão efectiva, ou mesmo um desejo de compreensão do outro, mas
fundamentalmente uma técnica de defesa, e uma espécie de sageza defensiva
(Silva & Jorge, 1993: 41). Essa marginalização' autoinfligida correspondia
a uma outra dimensão, assente numa necessidade profunda de enraizamento em
torno de um determinado número de significantes, que são difíceis definir de
facto, mas que é isto de nós sermos portugueses, o que se tornava mais visível
nos momentos coincidentes com cerimónias e rituais onde se criam situações em
que as pessoas se reconhecem nisso de serem portugueses (Silva & Jorge,
1993: 41). Evidenciava que não existia praticamente literatura e muito pouco de
arte das comunidades portuguesas no estrangeiro, salientado que esse era um dos
aspetos curiosos, que nos distinguia de outras comunidades capazes de ir
desenvolvendo toda uma capacidade de transversão dessa experiência de
enraizamento em torno de um certo número de significantes para uma expressão
cultural elaborada (Silva & Jorge, 1993: 41). O mundo, entretanto, parece
ter mudado e prova disso é o facto de um lusodescendente ter realizado o filme
A Gaiola Dourada, sobre o qual temos vindo a discorrer. Sobre a eventual
imagem que o estrangeiro tinha de Portugal, refere que, se ela fosse feita a
partir da leitura de um romance português, viria ao de cima o deficit de
identidade que os portugueses tinham, o que refletia uma cultura que passa o
tempo a preocupar-se sobre o que é ser português (Silva & Jorge, 1993: 41-
42). Mas, Eduardo Prado Coelho afirma que, se a identidade for procurada no que
é mais caricaturável dos povos (como os comportamentos passíveis de serem
estereotipados, como no filme), encontrar-se-ão traços que têm a ver com
aquele processo de reforço em circuito fechado do imaginário ( ) que não
consegue aceder ao plano do simbólico, onde se pode encontrar de forma mais
concreta a especificidade dos países: É muito mais fácil ver o que é italiano,
espanhol, francês ou português vendo os maus programas de televisão, do que
lendo hoje os grandes romancistas desses países (Silva & Jorge, 1993: 133-
134). Ou, se se quiser, de uma certa inversão da propalada portugalidade',
conceito que sempre está associado ao lado positivo de uma alegada identidade
dos portugueses21.
5. 2011: O regresso (em força) da emigração portuguesa
De um país de emigrantes, a tendência foi-se invertendo e, ainda há menos de
uma década, Portugal passou a ser um país de imigrantes, o que evidenciava o
desenvolvimento registado, mostrando a sua atratibilidade. Mas essa foi, no
entanto, uma dinâmica que cedo cessou, com a tendência atual a ir no sentido
anterior22 ' um país de emigração -, com os números disponíveis a fazerem
lembrar o boom registado nos anos 60 do século XX. A atestá-lo, está o facto
de, no ano de 2012, se terem contabilizado 121.418 pessoas que saíram do país
(entre emigrantes temporários, 69.460 - pessoas com intenção de permanecer no
estrangeiro por um período inferior a um ano -, e permanentes, 51.958),
enquanto o número de imigrantes permanentes se ficou pelas 14.606 pessoas23. Em
2012, registaram-se em Portugal 89.841 nascimentos, mantendo-se a tendência de
queda da natalidade, já que o número de nascimentos tem baixado
consecutivamente desde 2010. No entanto, os valores relativos a 2012 marcam um
recorde histórico, representando menos 7,2% do que os números verificados em
2011, ao descerem, pela primeira vez, abaixo dos 100 mil nascimentos (96.856).
No mesmo ano, registaram-se 107.612 de óbitos, um aumento de 4,6% em relação a
2011, sendo que o crescimento natural foi negativo, já que se registaram mais
17.771 mortes do que nascimentos, numa diferença três vezes superior da que se
verificara em 2011. São números que contribuíram para que a população
portuguesa descesse pelo terceiro ano consecutivo, com o saldo migratório
negativo a contribuir significativamente para essa quebra, registando-se em
2102 um valor total de -37352, número repartido pelo Continente (-36814) e pela
Região Autónoma da Madeira (-609), verificando-se um saldo positivo, apenas no
que se refere à Região Autónoma dos Açores (71). A tendência vai no sentido de
um contínuo envelhecimento demográfico, consequência do aumento do número de
idosos e da diminuição da população jovem e em idade ativa. Segundo o INE, em
relação à população residente, a proporção de jovens passou de 14,9%, em 2011,
para 14,8%, em 2012; a população em idade ativa de 66% para 65,8%. No que
concerne aos idosos com 65 ou mais anos, a população cresceu de 19% para 19,4%,
o que quer dizer que o índice de envelhecimento, em 2012, foi de 131 idosos por
100 jovens (em 2011 era de 128 idosos por cada 100 jovens.
Perante este quadro, Maria João Valente Rosa, demógrafa e diretora da Pordata,
citada pelo jornal Público (Albuquerque, 2013), avisa que o futuro do país
pode estar em causa, tratando-se de valores que nos atiram para os anos 60,
referindo que a saída massiva de pessoas e a fraca atratividade de Portugal
atuam em conjunto, sendo uma situação que nos obriga a pensar seriamente e tem
a ver com o posicionamento do país face ao exterior. Está a perder pessoas
porque muitas estão a sair e muitas já não estão a entrar (Albuquerque, 2013).
Já a demógrafa Ana Fernandes, citada pelo mesmo jornal, faz a ligação do
aumento das saídas de pessoas do país e a diminuição das entradas à natalidade:
Quem é que emigra? A população jovem. Não só perdemos os nossos jovens, como
não temos os imigrantes jovens. Isso acentua o envelhecimento e a descida da
natalidade (Albuquerque, 2013)
Figura_2
Num artigo intitulado O êxodo português, no jornal francês Libération,
datado de 3/2/2014, Cristina Semblano, economista e professora de economia
portuguesa na Universidade de Paris IV-Sorbonne, escrevia que se estava longe
de imaginar que um sangramento equivalente à década de 60 do século XX, que viu
o grande êxodo de portugueses para a Europa, podia acontecer de novo. Recorda
que, antes, o português fugia da pobreza, da ditadura e da guerra colonial,
embora hoje, tantas décadas mais tarde, trata-se de uma revolução em marcha,
em que os portugueses fogem do desemprego, da falta de oportunidades, da
pobreza e de um país sujeito à ditadura de uma troika (Semblano, 2014: S/P).
Tudo acontecendo, com o Governo do país a convidar os jovens a emigrar, o que
não deixa de ser inédito (Semblano, 2014: S/P). E, muito embora a emigração
portuguesa não seja um fenómeno novo, tornou-se mais importante depois da
crise, em resultado de uma taxa de desemprego que tem vindo a aumentar e que se
cifra em cerca de 40% em relação aos jovens (Semblano, 2014: S/P). Além do
drama humano, pessoal e familiar, sublinhava que esta emigração em massa tem
efeitos devastadores para o país, acentuando o envelhecimento da população
portuguesa. A atestá-lo, está a taxa de natalidade, que continua em declínio. A
emigração aumenta, mas alterou-se o seu recorte, com o aumento das
qualificações daqueles que deixam Portugal para trás, em relação ao que
acontecia antes. Em França, exemplos não faltam: muitos professores tornaram-se
zeladores em bairros parisienses, há diplomados do ensino superior a
trabalharem como operários na construção civil, arquitetos e engenheiros a
exercerem o seu ofício sob o disfarce de outras qualificações com salários 20%
a 30% mais baixos do que os seus colegas cidadãos franceses. E o de
trabalhadores não qualificados, que constituem a grande massa de trabalhadores
exportados por Portugal, que têm salários e condições de miséria (Semblano,
2014).
Houve vários média portugueses que, a propósito do filme A Gaiola Dourada,
pegaram no fenómeno da emigração portuguesa, nomeadamente para França. O jornal
Público, por exemplo, entrevistou o sociólogo José Carlos Marques,
especialista em emigração, que destacou, desde logo, que os portugueses que
partiram para França nos anos 1960 não são os mesmos que partem agora, já que
têm outras ambições, procuram outros desafios e por isso quando partem já não é
com a ideia de um dia regressarem (Carvalho, 2013). No mesmo jornal, Hermano
Sanches Ruivo, filho de pais portugueses emigrantes em França, conselheiro na
câmara de Paris, realça que o filme mostra o Portugal dos portugueses em França
que ainda não tinha sido mostrado, pelo que não há que ter vergonha disso,
salientando ser necessário desmistificar a forma como em Portugal os emigrantes
são tratados, nomeadamente quando lá regressam de férias, pelo que A Gaiola
Dourada ajudou nessa tarefa. Sublinha que os portugueses mostraram que são
bons trabalhadores, que são pessoas de respeito e não há ninguém em França que
não goste deles, que podem não ter estudos mas são bons no que fazem. E defende
que Portugal só tinha a ganhar se conseguisse seduzir as gerações mais
distantes, num momento em que se fala que há cada vez mais pessoas interessadas
em aprender o português, pelo que diz não entender como não existe ainda um
programa pensado nesse sentido (Carvalho, 2013).
À revista 2, do jornal Público, a socióloga Maria Engrácia Leandro, que se
dedicou ao estudo da emigração portuguesa sobretudo nos anos 1980 e 1990,
observa que as ideias iniciais dos emigrantes portugueses em França sofreram
uma alteração: depois de construída a casa em Portugal, comprado o carro e
concretizada uma razoável conta bancária, começaram a olhar para a
escolarização dos filhos, o que acontece a partir de meados dos anos 1980
(Cordeiro, 2013: 22). A inversão da tendência acentuou-se, com os
lusodescendentes a não quererem deixar a França em direção à terra dos pais. Em
França criaram o seu próprio universo à imagem de uma comunidade silenciosa,
fechada, muito embora a comunidade portuguesa em França nunca funcionasse
verdadeiramente como uma comunidade. Carlos Pereira, diretor do Lusojornal,
observa que as famílias são como as do cartaz do filme. Muitos casais são
mistos. A nossa família portuguesa tornou-se numa família franco-portuguesa
(Cordeiro, 2013: 24).
5.1. A remigração
Muitos dos portugueses que decidiram emigrar não o fazem já pela primeira vez.
Depois de terem saído anteriormente do país, na tentativa de fazerem o seu pé-
de-meia, o curso da vida não terá corrido bem, tendo a crise financeira
determinado que tivessem que voltar a ir embora de Portugal. Esta é uma das
situações que uma reportagem da revista Visão mostra e que, a propósito do
filme A Gaiola Dourada, aproveitou para sublinhar o regresso em força da
emigração portuguesa. Trata-se de um fenómeno, denominado de remigração
(Fillol, 2013a: S/P), designação que a publicação atribui ao sociólogo José
Madureira Pinto, mas que Isabel Tiago de Oliveira (2007) diz ter sido utilizada
pela primeira vez em 1994 por Jorge Fernandes Alves. O termo serve para
designar a situação em que o mesmo emigrante efectua mais do que uma
emigração, e que também se designa por migrações repetidas (Oliveira, 2007:
849).
Isabel Tiago de Oliveira observa que as migrações têm um papel essencial na
demografia assumindo, no caso português (sécs. XIX e XX), uma dimensão
expressiva, quer no que respeita à emigração, retorno e reemigração (Oliveira,
2007: 837). Sublinha, no entanto, que, de todos estes movimentos, só a
emigração legal apresenta uma série continuada de registos anuais desde finais
do século XIX, sendo que a emigração clandestina não consta dos registos
oficiais, muito embora se aponte para um quantitativo em torno de um terço de
emigrantes clandestinos no total de emigrantes até aos anos 60 (Oliveira,
2007: 849). Sustenta, ainda, que se houver uma aproximação nos números do saldo
migratório e do número de emigrantes, é possível pensar que não aconteceram
movimentos significativos de retorno, reemigração, nem saídas clandestinas
(Oliveira, 2007: 843). Ao contrário, se o saldo migratório e da emigração
apresentarem diferenças, é possível esboçar uma ideia sobre a importância
comparativa dos movimentos de retorno e de reemigração, por um lado, e de
emigração clandestina e outras saídas, por outro (Oliveira, 2007: 844). O que
não quer dizer que se trate de uma medida rigorosa de cada um destes
movimentos, uma vez que apenas permite avaliar o sentido e a importância
destes dois grupos de movimentos migratórios sem, no entanto, permitir o
conhecimento de cada um deles por si mesmo (Oliveira, 2007: 844). Aplicando
esta perspetiva ao caso português, e utilizando os últimos indicadores
disponibilizados pelo INE (2012) ' um saldo migratório de -37352 e o número de
emigrantes total de 121.418 (51.958 permanentes e 69.460 temporários) -, pode
concluir-se que houve uma forte possibilidade de se ter verificado a existência
de reemigração.
A revista Visão evidencia esse fenómeno, mesmo que este esteja ausente do
filme A Gaiola Dourada, não obstante seja o próprio realizador que diz
conhecer a nova vaga de emigração, que está a levar ex-emigrantes, e filhos
destes, de volta ao país para onde partiram nos anos 60/70, depois de,
entretanto, terem regressado a Portugal. Trata-se, afinal, de um verdadeiro
regresso à Gaiola Dourada que tem, contudo, agora recortes diferentes. O
próprio realizador relata à revista que tinha conhecimento que uma sua amiga de
infância, que tinha ido viver para Portugal, regressara a França para
substituir a mãe, que entretanto se reformara de porteira de um prédio de
Paris. Para Ruben Alves, o fenómeno da reemigração é ilustrativo do caráter
típico português, do desenrasca, do fazer-se à vida (Fillol, 2013a). Na mesma
edição da revista, uma outra reportagem dá conta da história de um casal que
reemigrou, 26 anos depois de ter voltado de França, onde ambos tinham sido
emigrantes: Amável e Isolete Pinheiro, 58 anos, encerram o café que abriram
com francos amealhados a custo e voltam a fazer as malas (Fillol, 2013b). A
vida deste casal reemigrante', segundo a revista, daria um filme, mas não
necessariamente uma comédia, como no caso de A Gaiola Dourada.
Há, neste momento, quatro grupos diferentes de emigrantes portugueses que
subsistem em França: o dos emigrantes que foram retratados no filme A Gaiola
Dourada; o de alguns cérebros recrutados em Portugal por grandes empresas e
instituições francesas; o dos trabalhadores desqualificados que emigram por
vezes com toda a família e são apoiados por amigos e familiares à chegada a
França; e o grupo dos jovens com estudos superiores que, por não terem emprego
em Portugal, vão para França à procura da sua oportunidade (Ribeiro, 2013)24.
No entanto, viver na cidade-luz não é uma festa permanente, uma vez que Paris é
uma cidade cara. A palavra de ordem é sobreviver, como é o caso dos
emigrantes portugueses com altas qualificações que encaram a presença em Paris
como uma passagem e não uma estadia para toda a vida, ao contrário dos
emigrantes mais antigos: Em Paris, hoje, a Gaiola é Dourada e... Doutorada!,
como escreve Daniel Ribeiro, numa reportagem que escreveu para a revista do
jornal Expresso (Ribeiro, 2013: 52). Sublinha que muitos portugueses da nova
vaga de emigrantes para Paris são doutores, aceitando trabalhos
desqualificados para sobreviver: Há concierges com blogues e que leem ensaios
em francês, rececionistas com mestrado, contínuas e empregados de mesa
especialistas em educação ou biologia (Ribeiro, 2013: 46).
A emigração tem, também, outras facetas, afetando muito mais pessoas para além
dos jovens. A revista 2 do jornal Público, por exemplo, fez uma reportagem
sobre Emigrar depois dos 50, em que retrata o fluxo para fora do país daquela
faixa etária e em que se evidencia a procura de uma oportunidade negada por
Portugal, à procura do direito ao último terço da vida (Moura, 2014: 8-9).
6. Conclusão
A Gaiola Dourada ficará na história do cinema português por ter sido o filme
mais visto de sempre, epíteto que não lhe dá, no entanto, um lastro qualitativo
diretamente proporcional. Decerto que também não foi essa a ideia que o
realizador tinha em mente quando decidiu avançar com as filmagens, apresentando
uma história muito ligada à sua própria realidade ' a dos emigrantes
portugueses em França -, que muito embora esteja associada ao drama, direcionou
para a comédia, utilizando vários clichés e caricaturas dos emigrantes
portugueses e dos franceses que com eles convivem, no sentido de fazer rir.
Para além de aproveitar o regresso em força da emigração portuguesa para
colocar o assunto ' pelo menos no que respeita à realidade existente em França
-, na ordem do dia, com os media, portugueses e franceses a fazerem reportagens
sobre o assunto, de forma indireta (mas sempre presente ao longo do filme)
promove-se uma reflexão sobre o significado de identidade, no decurso de um
enredo que mistura alegadas atitudes atribuídas aos portugueses nos anos 1960
mas que, na atualidade, parecem já estar desfasadas da realidade, ao mesmo
tempo que incorpora uma lógica francesa nas observações dos próprios
portugueses e sobre eles através dos franceses.
E não podia ser de outra forma, já que o conceito de identidade não é
monolítico, nem está reificado, já que, tal como a própria sociedade, está
imbuído de uma grande dinâmica. De resto, o olhar do realizador resulta da sua
própria vivência, com referências a um Portugal atrasado, onde os pais
nasceram, e que tiveram que emigrar devido à miséria e à pobreza existentes nos
anos 1960, na sequência da ditadura do Estado Novo, aliado ao facto de ter
nascido e crescido e estudado em França, integrado na sociedade parisiense, com
uma mentalidade que resulta desse convívio. Um país que, embora na Europa,
estava longe de França e da realidade lá existente em que, muitas vezes, os
portugueses lá chegaram clandestinamente.
De A Gaiola Dourada pode dizer-se que se trata-se, afinal, de um filme
francês, com um olhar francês sobre as minorias e que, mesmo que o realizador
afiance que mostra a realidade, evidenciando que, com o tempo, se esbateram os
complexos em assumir uma portugalidade', interpretada como uma pertença a
Portugal (Cordeiro, 2013: 21), isso não passa de um equívoco. Desde logo pela
ideia de portugalidade' e pela ideia muito vaga de pertença a Portugal que,
como vimos, Denys Cuche (2004 [1999]) coloca em causa, quando aborda as
culturas de origem'. Também Stuart Hall (1997) defende ser necessário deixar
para trás as verdades absolutas no que respeita ao conceito de centralidade
cultural. Bastará verificar a falta de consenso, por exemplo, em relação à
ideia da existência de uma cultura portuguesa, que assume contornos
doutrinários, analíticos, cúmplices, distanciadas ou desconstrutivos sobre a
nossa própria realidade (presente ou histórica), tenham eles que ver com
criações estéticas, filosóficas, eruditas ou de senso comum (Santos &
Jorge, 1993). E, mesmo que se invertam os clichés, como refere Ruben Alves, o
filme não promove a redescoberta do português em França, pelo menos nos termos
em que é retratado pelo filme, muito embora levante a questão da crise
portuguesa no contexto global. O português é apresentado como se o tempo
tivesse parado nos anos 1970, e os relatos de Urbano Tavares Rodrigues que
referimos neste artigo estivessem atuais: obediente, trabalhador, que não cria
problemas. Essa é muito mais a visão dos franceses em relação aos portugueses
do que estes sobre si próprios. Este desfasamento da realidade tem que ver com
a forma de como o emigrante português é retratado no filme, reportando-se
àquele que foi para França nas circunstâncias descritas atrás, vivendo em
condições precárias, com o fito de amealhar o maior dinheiro possível, para um
futuro regresso a Portugal, onde tinha o sonho de construir uma casa na aldeia
de origem e passar o resto dos seus dias. No filme mostra-se que a decisão do
regresso, nos dias de hoje, não é fácil, nem simples. Até porque estão
radicados em França (a sua pátria'), muito embora a ficção do filme, ao
contrário do que acontece, retrate uma situação que está a deixar de existir, e
opte por uma história que se afasta totalmente da realidade e que até pode ser
encarada como uma ironia: os filhos dos emigrantes portugueses que foram para
França nos anos 60 do século XX a rumarem para Portugal, já casados com
franceses, enquanto os pais ficam em França; porque a vida já não faz sentido
sem ser lá, porque de certa forma se tornaram imprescindíveis para os franceses
com quem trabalham.
O filme teve a virtude de promover o debate em relação ao fenómeno da
emigração, refletindo a realidade existente assente no novo perfil dos
emigrantes: retratando o fenómeno da reemigração, e dos jovens altamente
qualificados que emigram, na expectativa de conseguirem nem que seja os mesmos
empregos que dos portugueses sem qualificações que rumavam a França nos anos 60
do século XX (Ribeiro, 2013).
Apesar de ter sido retratado como mau por alguma crítica, sublinhando o seu
lado francês', por ser sobranceiro em relação aos portugueses, a grande
maioria que foi ver o filme parece ter passado momentos agradáveis, rindo com
as várias situações hilariantes e estereotipadas em que muitos portugueses
(direta ou indiretamente ligados à emigração) se revêm: seja através de
familiares, ou no contacto existente durante o período de férias (no verão ou
na quadra natalícia, especialmente).
O filme põe a nu, também, as incongruências entre a realidade e aquilo que
alguns gostavam que acontecesse, sublinhado, nomeadamente, no que ao discurso
político diz respeito. O Presidente da República, Cavaco Silva, por exemplo, e
como já se referiu, tem apelado por diversas vezes aos emigrantes para que
estes sejam os veículos da portugalidade' na diáspora. Seja o que for que isso
quer dizer, parece ser claro tratar-se de mera retórica, uma vez que, como
vimos, a portugalidade' é equívoca e pouco dada ao interculturalismo, uma vez
que é centrada em Portugal, com pouca disponibilidade para integrar o outro'.
Num mundo globalizado, em que as distâncias estão esbatidas, trata-se de uma
ideia com pouca sustentação e que, recorrendo a Eduardo Lourenço, pode ter que
ver com a portuguesa hiperidentidade, que reflete um deficit de identidade
real, compensada no plano imaginário (Silva & Jorge, 1993). Por isso, o
reavivar da alegada chama lusitana, como refere Albertino Gonçalves (2009), a
propósito dos emigrantes dos anos 60 do século XX, tem hoje recortes bem
diferentes, à semelhança da própria emigração portuguesa que, em França, se vai
mantendo nos mesmos trabalhos, muito embora com qualificações superiores, mas
que já não sonha em voltar a Portugal, mas em sobreviver, vivendo o dia-a-dia.
Seja em França ou noutro qualquer país do mundo. Talvez por isso, A Gaiola
Dourada termine com o fado Prece'25, de Amália Rodrigues, numa interpretação
de Catarina Wallenstein (mais uma cantora da nova geração a representar um
corte com o passado e que está sempre presente no filme), numa ironia que
invoca o desejo de morrer em Portugal. Mesmo que se viva longe do país.