O Egito em tempo de revolução: As lutas dos trabalhadores antes e depois das
revoltas de 2011
Se o povo quiser, um dia, vir a ter vida, decerto o destino lhe há de conceder
tal desejo. As suas grilhetas hão de quebrar-se e a sua noite há de decerto
dissipar-se.1
Introdução
Segundo um retrato muito frequentemente ouvido nos debates jornalísticos e
académicos ocidentais sobre a revolta em massa ocorrida no Egito em 2011, o que
se passou foi que jovens utilizadores do Twitter e do Facebook teriam
conseguido, através do uso das redes sociais, mobilizar e organizar com enorme
rapidez milhões de manifestantes. A agitação vivida no Egito tem sido, assim,
muitas vezes interpretada como sendo um fenómeno de natureza sociopolítica,
essencialmente instigado por jovens da classe média com um nível elevado de
instrução e desempregados (Acedo, 2011; Bottazzi e Hamaui, 2011). Nesta visão
dos acontecimentos, o movimento operário e a sua luta de décadas recebem
escassa atenção, sendo relegados, a priori, para um papel irrelevante. Porém os
protestos sem precedentes dos trabalhadores egípcios desde 2006 apontam para o
papel crucial dos movimentos operários nas transformações em curso, tanto no
plano da política como no plano dos valores.
O presente artigo pretende dar alguns contributos essenciais no sentido de se
considerar que a revolta egípcia de 2011 foi um processo histórico complexo, em
que o movimento operário assumiu uma grande importância. A visão proposta
poderá abalar a opinião convencional que no Ocidente se encontra em relação aos
países árabes ' Egito incluído ', segundo a qual se trata de uma realidade
moldada pelo Islão', [ ] com uma forte componente antiocidental e antimoderna
(ou simplesmente do tipo eles odeiam-nos'), e singularmente suscetível ao
radicalismo político irracional, ao autoritarismo e ao terrorismo (Beinin e
Vairel, 2011a: 1). Esta representação grotesca e diabolizadora do Islão já vem
de há muito. Ela assenta numa longa história de conflitos culturais e materiais
entre o mundo cristão' e o mundo islâmico', que importa não discutir de uma
maneira abstrata. Poderia, com efeito, ser de grande utilidade reconstituir na
totalidade a história dessas relações e da sua evolução ao longo dos tempos,
evidenciando assim, para além dos já bem conhecidos conflitos violentos, as
trocas e as influências recíprocas registadas entre a civilização europeia' e
a civilização islâmica'. Mas o presente artigo, como já ficou dito, propõe-se
uma tarefa mais modesta e concreta, que é a de ilustrar e analisar, de forma
breve, o papel e o impacto do movimento operário egípcio na revolta de 2011.
Para tal, debruçar-se-á sobre o processo evolutivo do movimento operário
egípcio no decurso das últimas décadas e sobre as modalidades da sua
participação na revolta. O artigo destaca ainda as contradições percetíveis na
representação que no Ocidente predomina a propósito da revolta egípcia de 2011,
de maneira a melhor compreender os seus reais atores sociais (e virtuais).
Longe de pretenderem resumir o que fica escrito nas secções que as precedem, as
observações finais visam remeter para terrenos teóricos mais amplos, convidando
assim ao aprofundamento do debate.
Da interseção de diferentes disciplinas e abordagens metodológicas resulta,
aqui, o quadro teórico para proceder ao estudo do pano de fundo histórico,
social e político em que o movimento operário egípcio se tem vindo a
desenvolver nestes últimos anos. O presente artigo serve-se, ainda, de 15
entrevistas em profundidade feitas no Egito com informantes-chave no ano de
2012, bem como de informação obtida em diversas reuniões informais com membros
de sindicatos independentes e ativistas políticos.
É igualmente importante salientar que, para efeitos do presente estudo, a
expressão trabalho se refere a trabalho assalariado, categoria que abrange a
maioria dos trabalhadores de colarinho branco e de colarinho azul, uma vez que
ao longo destes últimos 30 anos de orientação económica neoliberal muitas das
divisórias tradicionais (colarinho branco/classe-média versus colarinho azul/
classe-operária, proletariado versus lúmpen-proletariado, setores populares,
etc.) foram apagadas ou, no mínimo, tornaram-se mais complexas (Hall, 1997;
Marshall, 1997; Wright, 1997). No entanto, os exemplos e a análise utilizados
ao longo do artigo dizem sobretudo respeito aos trabalhadores de colarinho azul
egípcios. Ao longo das últimas décadas foram estes quem, efetivamente, viveu as
lutas e ações mais importantes, conduzindo à revolta de 2011 e abrindo caminho
para um processo revolucionário de longo prazo (Achcar, 2013).
Refira-se, finalmente, que o artigo que aqui se apresenta não se propõe
analisar a relação entre os trabalhadores e o movimento islâmico (nomeadamente
a Irmandade Muçulmana, a maior e mais importante organização islâmica do
Egito), nem tampouco a relação entre os trabalhadores e as Forças Armadas. Cada
uma destas organizações tem uma estrutura e um enquadramento histórico
complexos e muito próprios, assim como caraterísticas bastante diferentes das
dos movimentos religiosos e das forças armadas ocidentais. Ambas possuem
vínculos históricos fortes com a população do país (e também, obviamente, com
os seus trabalhadores). Assim, e por exemplo, os membros mais graduados tanto
das Forças Armadas como da Irmandade Muçulmana são detentores de muitos setores
industriais e financeiros, e é profunda a sua penetração na estrutura económica
egípcia (se bem que os números ainda continuem em segredo). Além disso, tirando
Mohamed Morsi (importante membro da Irmandade Muçulmana) e o atual presidente,
Adly Mansour, desde 1952 que o Egito teve sempre dirigentes oriundos das Forças
Armadas. Há, porém, que sublinhar que o movimento operário egípcio nunca
dispôs, enquanto tal, de aliados políticos significativos e duradouros. Sem
dúvida que a ausência de alianças políticas fortes lhe influenciou e limitou a
capacidade organizativa, além de lhe ter travado o potencial de protagonista
das transformações macropolíticas no país (El-Mahdi, 2011b: 399).
Estes temas concretos revestem-se de grande importância, merecendo ser tratados
em toda a sua complexidade e multidimensionalidade. No entanto o presente
trabalho visa apenas mostrar que o que levou ao êxito da revolta de 2011 e para
além dela foram as lutas dos trabalhadores ao longo de várias décadas e o novo
movimento operário atualmente em ascensão no Egito.
Uma orientalização dos levantamentos árabes?
Não obstante este artigo ter por objetivo fazer luz sobre alguns aspetos e
atores específicos do processo revolucionário egípcio (a saber, o movimento dos
trabalhadores e as suas lutas), aquilo a cujo desenrolar temos vindo a assistir
em muitos países árabes ao longo dos últimos três anos impõe uma breve reflexão
sobre o modo como diversos estudiosos e comentaristas ocidentais têm retratado
a primavera árabe'. Uma gigantesca campanha intelectual, recheada de clichés
orientalistas, tem vindo a tentar propagar o estigma de uma alegada
incompatibilidade entre as populações de maioria muçulmana e a democracia. A
própria metáfora das estações do ano (primavera árabe) insere-se numa história
longa de Orientalização de toda a região (Shihade, Flesher Fominaya e Cox,
2012: 1).
Exemplo claro dessa distorção da evidência dos factos são as palavras de Thomas
Friedman, jornalista galardoado com o Prémio Pulitzer, publicadas na edição de
14 de maio de 2011 do New York Times: Nas suas raízes, esta não é uma revolta
política mas sim existencial. É muito mais Albert Camus do que Che Guevara
(Friedman, 2011b).
Noutro artigo, de 1 de março de 2011, o mesmo colunista defendeu que os
fatores-chave que deram aos povos do mundo árabe a inspiração para iniciar a
primavera árabe' foram os seguintes: Obama, o Google Earth, a democracia
israelita, os Jogos Olímpicos de Pequim e o Fator Fayyad (Salam Fayyad,
primeiro-ministro palestiniano, mais a sua supostamente nova forma de
governar'). A intenção de Friedman é atribuir uma responsabilidade que, de uma
forma ou de outra, remeta para o Ocidente (ou para o eixo euro-atlântico',
conforme a preferência), de forma a não abrir mão do monopólio do conhecimento
especializado (Dixon, 2011: 309) sobre a democracia e as revoluções.
Dentro da mesma lógica situa-se Bernard Lewis, prestigiado estudioso do Islão,
para quem
É claro que as massas árabes querem a mudança. E querem melhorias.
Mas quando se pergunta se querem a democracia, essa é uma questão de
resposta mais difícil. O que significa democracia? A palavra é
usada com sentidos muito diversos, inclusivamente em diferentes
partes do mundo ocidental. E é um conceito político que não tem
história nem qualquer registo no mundo islâmico e árabe. (Horovitz,
2011)
Deste modo, até mesmo no meio de um período intensamente revolucionário como
este o mundo árabe' surge retratado como uma realidade estática, monolítica e
a-histórica, em que as pessoas são vistas como estruturalmente atrasadas e
incompetentes. Como referem Shihade, Flesher Fominaya e Cox,
na grande quantidade de relatórios, conferências, congressos e/ou
documentos produzidos sobre a revolução árabe, velhas e novas
narrativas de cariz orientalista continuam a apresentar o mundo árabe
como sendo, ou perigoso, caótico e violento, ou estagnado, passivo, e
eternamente carecido de ajuda externa (do Ocidente). (2012: 2)
A história e o quotidiano do povo árabe parecem interessar a muito poucas
pessoas. O vigor, as esperanças, as dificuldades e a luta por uma vida melhor
travada ao longo de mais de cem anos contra o colonialismo e as intromissões
ocidentais, bem como contra governos injustos na própria região, permanecem
soterrados debaixo de toneladas de livros e artigos em que é rendida homenagem
à suposta supremacia do Ocidente. O que o novo cenário surgido com os
levantamentos árabes está, hoje, a ensinar ao mundo é que
as revoltas árabes reconduziram-nos ao campo de forças da história.
Estas revoltas vêm provar, até ao limite do absurdo, o falhanço de
todas as teorias da modernização, ocidentalização, eurocentrismo, do
Oeste como medida de todo o Resto, do fim da História, do Choque de
Civilizações. (Dabashi, 2012: 15)
O povo quer a queda do regime! (ash-sha'b yurid isqaat na-nizaam), e
Liberdade, dignidade e justiça social ' duas proclamações omnipresentes nas
recentes insurreições árabes e que ainda se fazem ouvir nas ruas e praças de
toda a região ' sugerem que as causas não se limitam à dimensão existencial'
nem à dimensão estritamente política. Ao contrário do que afirmam muitos
comentaristas ocidentais, o povo egípcio, tal como o povo tunisino, não se
limitou a pedir reformas políticas ou mudança de governo; a sua reivindicação
foi também por justiça social. Se atendermos à realidade dos milhões de pessoas
que vivem no chamado mundo árabe', e cuja larga maioria é constituída por
trabalhadores (palavra aqui utilizada com o sentido que lhe atribui Ricardo
Antunes (2013: 8), de classe-que-vive-do-trabalho'), ser-nos-á bem mais fácil
entender as raízes profundas dessa excecional vaga de protestos: em resumo, as
condições socioeconómicas da população. Nas palavras de Gilbert Achcar,
Para uma faísca atear um incêndio capaz de varrer de ponta a ponta
toda uma região geopolítica e cultural, é forçoso que haja uma
predisposição para a revolução. Dada a diversidade dos regimes
políticos da região, manda a lógica que procuremos fatores
socioeconómicos subjacentes, suscetíveis de terem preparado o terreno
para a onda de choque sofrida pela região. Acresce que o despotismo,
por si só, dificilmente será causa bastante para a eclosão e
subsequente êxito de uma revolução democrática. De outro modo, não
haveria como explicar o facto de esta ter triunfado no momento em que
triunfou: porquê em 2011, após décadas de despotismo em terras
árabes? (2013: 7)
Se no cerne das revoltas árabes estão, efetivamente, fatores socioeconómicos,
daí resulta que ainda estão para vir muitas mudanças, já que, até agora, todos
os governos pós-revolucionários (do Egito à Tunísia, mas não só) se revelaram
incapazes de dar resposta às reivindicações de justiça social que deram origem
às insurreições em toda a zona árabe.
A virtualização da revolta egípcia? Análise breve dos fatores sociais e
virtuais da insurreição
A revolução egípcia' terá sido uma revolução-Facebook' ou uma revolução-
Twitter', como tantas vezes se diz, ou foi antes uma luta coletiva que esteve a
fervilhar durante estes últimos anos? Seria útil dar resposta a esta pergunta,
para evitar que a análise do papel dos trabalhadores egípcios na revolta de
2011 se deixe emaranhar em perspetivas vagas e difusas. Se nos ativermos à
evidência factual, não parece haver uma base científica firme para colocar a
tónica no papel das redes sociais. Veja-se o que escreve, a propósito, Ursula
Lindsey:
Já em 25 de janeiro havia falta de rede na praça Tahrir, para uso dos
telemóveis por parte dos manifestantes que ali haviam acorrido. No
dia seguinte as operadoras de telecomunicações receberam das
autoridades instruções no sentido de baixar os limites da taxa de
transmissão de dados ' o que é uma forma de reduzir a velocidade da
Internet. Na noite de 27 de janeiro a Internet deixou de funcionar. O
serviço de envio de mensagens foi desativado. Na manhã seguinte toda
a rede de cobertura de telemóveis do Egito se encontrava em baixo.
Responsáveis da Vodafone, uma das principais operadoras de
telecomunicações do país, disseram que, em obediência à lei egípcia,
que confere às autoridades amplos poderes em caso de emergência,
foram obrigados a respeitar as ordens do governo para desligar a
rede. (2012: 53)
Daí que, à medida que o dia 28 de janeiro, dia da ira', se aproximava, a única
maneira de comunicar no país fosse através da organização de reuniões
presenciais: não havia Facebook, nem Twitter, nem Youtube, nem tampouco
telemóveis. Isso quer dizer que o papel das redes sociais na ajuda dada aos
ativistas com vista a mobilizar as pessoas e a organizar a insurreição nas ruas
foi verdadeiramente insignificante. Entre os que perfilham esta opinião conta-
se Richard Haass, presidente do Conselho para as Relações Externas e antigo
diretor para o planeamento político do Departamento de Estado dos EUA, que
sublinha:
As redes sociais são um fator significativo, mas tem-se exagerado
quanto ao papel que desempenham. Estão longe de ter sido a primeira
tecnologia desestabilizadora a entrar em cena: cada um em sua época,
a imprensa, o telégrafo, o telefone, a rádio, a televisão e a cassete
colocaram desafios à ordem vigente. E tal como essas tecnologias que
as antecederam, também as redes sociais não são determinantes: podem
ser reprimidas pelos governos, da mesma forma que podem ser por estes
empregadas para motivar os seus apoiantes. (2011: 115)
Esta é também a opinião de Beinin e Varel, segundo os quais, tanto no caso
egípcio como no tunisino,
A análise imediatista de uma boa parte dos meios de comunicação de
massa centrou a atenção nas redes sociais da Web 2.0 ' blogues,
Facebook, Twitter, Flickr, etc. ', vistos como mecanismos
viabilizadores da mobilização dos movimentos insurretos. [ ] Houve
quem referisse o fluxo informativo relativamente livre existente um
pouco por todo o mundo árabe em consequência dos canais de televisão
por satélite, especialmente a Al-Jazeera e a al-Arabiyya. Sem dúvida
que estes aspetos ajudam à explicação. Mas a Al-Jazeera começou a
transmitir em 1996. Teve, na prática, um papel condutor na revolta
tunisina. Mas reagiu com lentidão na cobertura dos acontecimentos de
25 de janeiro no Egito, circunstância que, na opinião de muitos, se
terá devido à pressão exercida pelo Emir do Qatar, patrono do canal.
Posteriormente, e não obstante os seus repórteres terem sido presos e
as câmaras confiscadas em 30 de janeiro, a Al-Jazeera compensou
largamente o tempo perdido. Quanto aos telefones móveis, muito mais
utilizados na mobilização política do que o Facebook e o Twitter,
desde 1998 que se encontram disponíveis no Egito. (2011b: 248)
Isto só prova que as redes sociais não bastam para fazer a revolução, e também,
como é óbvio, que as revoluções não se fazem a pedido. Não se deve, contudo,
subestimar o papel das redes sociais no Egito. Leia-se o que, em 18 de julho de
2012, se noticiava no Ahram Online:
O Egito conta com um total de 11,3 milhões de utilizadores do
Facebook, sendo 1,6 milhões o número de novas contas criadas entre
janeiro e junho de 2012, segundo dados estatísticos do Relatório
sobre as Redes Sociais Árabes (Arab Social Media ' ASMR). Isso faz
com que o Egito, que é, em população, o maior país do mundo árabe,
seja também o maior utilizador desta popular rede social na região.
De acordo com o referido relatório, em finais de junho de 2012 o
mundo árabe tinha um total de 45,2 milhões de utilizadores do
Facebook, uma subida em relação aos 37,4 milhões que tinha em
janeiro. Em junho de 2011 o número cifrava-se em 29,8 milhões, o que
aponta para um aumento anual de 50%. O relatório mostra ainda que o
número de utilizadores do Facebook no mundo árabe praticamente
triplicou nos últimos dois anos, passando de 16 milhões em meados de
2010 para 45 milhões neste último verão. A juventude árabe ' jovens
com idades entre os 15 e os 29 anos ' constitui cerca de 70% do total
de utilizadores do Facebook, e essa percentagem tem-se mantido
relativamente estável. (2012a)
Não são novidade, na produção bibliográfica, as discussões sociológicas sobre o
potencial dos novos meios de comunicação para moldar a sociedade. Elas tiveram
início com o livro de Manuel Castells The Rise of the Network Society (1996), a
que se seguiu, mais recentemente, Communication Power (2009). Alguns estudiosos
reconhecem o potencial das redes sociais enquanto veículo de difusão da
democracia (Poster, 1995), mas outros há que apontam severas limitações no que
toca ao papel dos novos meios de comunicação na política e na democracia
(Howard, 2011). Assim, é frequente as discussões a propósito deste tema
dividirem-se entre
Aqueles que acentuam a função controladora dos novos meios de
comunicação, vistos, assim, como um novo instrumento repressivo no
arsenal dos ditadores, e aqueles que os encaram como uma ferramenta
de abertura democrática. Alguns autores fazem notar que, mesmo nas
sociedades democráticas, a nova tecnologia representa uma ameaça
grave para a liberdade e privacidade dos cidadãos. Outros, pelo
contrário, deixam-se muitas vezes entusiasmar com o potencial que os
novos meios possuem para moldar a política e abrir espaço a uma nova
esfera pública, especialmente nas sociedades caraterizadas pela
ausência de uma esfera pública autêntica. Há, no entanto, autores a
quem se devem propostas mais equilibradas quanto àquilo que são as
armadilhas e o potencial dos novos média, a sua função de controlo e
a sua função emancipatória. (Khondker, 2011: 676)
Além disso, uma análise global não deverá subestimar o papel dos meios de
comunicação social convencionais e a relação de reciprocidade que mantêm com os
novos meios. Na sua análise do papel da Al-Jazeera (em árabe) e de muitos
outros canais no que concerne à apresentação das notícias sobre as revoltas
árabes, Manuel Castells sublinha os seguintes aspetos:
A Al-Jazeera coligiu a informação divulgada pelas pessoas na
internet, servindo-se destas como fonte, e organizou grupos no
Facebook, retransmitindo de seguida esses dados através da rede de
telemóveis sob a forma de notícias gratuitas. Assim nasceu um novo
sistema de comunicação de massa, uma mistura de televisão interativa,
Internet, rádio e sistemas de comunicações móveis. A comunicação do
futuro já está a ser utilizada pelas revoluções do presente. [ ] É
claro que não foram as tecnologias da comunicação que geraram a
insurreição, a qual teve origem, isso sim, na pobreza e na exclusão
social de que padece uma grande parte da população nesta falsa
democracia. (2011)
Como se pode ver, e é defendido por muitos autores, não há que questionar o
papel dos meios de comunicação social tradicionais e dos mais recentes na
sociedade egípcia, e nomeadamente na agitação vivida em 2011. O que aqui está
em causa, porém, é entender o seu papel concreto. Alguns estudiosos acreditam
que aquilo que se passou teve mais a ver com a criação de novos espaços num
tipo de comunicação alternativa, rápida e não controlada, do que com a
organização da revolução e de confrontos de rua ou com a formação de uma
consciência política. Um desses estudiosos é Abdulla Rasha, que salienta
nitidamente estes aspetos quando escreve:
A Internet foi a ferramenta que veio mostrar a todas as vozes
dissidentes do Egito que não só não estão sozinhas, como de facto têm
a acompanhá-las pelo menos centenas de milhares de pessoas que buscam
a mudança. Não foi o Facebook que acorreu à Praça Tahrir, foi o povo.
Não foi o Twitter que acorreu à praça Al-Ibrahim Qaied, foi o povo.
Mais de um terço da população do Egito, com os seus oitenta milhões
de habitantes, continua analfabeta, e só 25% dos egípcios usam a
Internet. (2011: 41)
Não se deve esquecer, além disso, que a maior parte daqueles que participaram
na revolta de 2011 pertenciam às classes subalternas (El-Mahdi, 2011a), o que
quer dizer que eram pessoas com um acesso limitado à Internet e às redes
sociais.
Tendo em conta tudo isto, é de concluir que não se deve procurar as
subjetividades revolucionárias nos likes do Facebook nem nos tweets, mas sim na
grande quantidade de lutas populares e protestos de rua travados desde há
décadas, e mais especificamente no crescente movimento operário, que desde há
muito vem sendo chamado o maior movimento social registado em mais de meio
século (Beinin, 2009: 77).
Os anos quentes no contexto industrial do Egito pós-revolta: das reivindicações
económicas às reivindicações políticas
Segundo o Centro Egípcio para os Direitos Sociais e Económicos (Egyptian Centre
for Social and Economic Rights ' ECESR),
Em 2013 os trabalhadores egípcios levaram a cabo 2486 ações de
protesto, 2243 das quais durante o reinado do agora deposto
presidente Mohamed Morsi. Durante o governo interino de iniciativa
militar realizaram--se, no total, 243 ações de protesto. Nesse
ano os trabalhadores organizaram protestos à média de 6,1 por dia. O
número ficou abaixo do total atingido em 2012, ano em que as
manifestações chegaram às 3300. O número global de protestos
ocorridos em 2013 superou o de 2011, ano em que se registaram 1300
ações. (Ashraf 2013 ' Daily News Egypt, 31, dezembro de 2013)
Nos últimos três anos a agitação laboral estendeu-se não apenas ao Cairo, a
capital, mas também a muitas outras cidades do país, como Alexandria, Tanta,
Suez, Porto Said, etc. No entanto, como sempre ao longo das últimas décadas, as
mais importantes ações no setor da indústria ocorreram na empresa estatal de
Fiação e Tecelagem Misr, em Mahalla (conhecida como al-Ghazl Mahalla), o maior
complexo industrial do país na área têxtil. Por toda a parte os operários
avançaram com as mesmas reivindicações: salário mínimo, contratação definitiva,
seguro de saúde e saneamento dos gestores corruptos das fábricas do Estado.
Ao longo dos últimos três anos o Estado pós-revolucionário respondeu a estas
ações coletivas com a repressão, tendo sido frequentes as investidas brutais da
polícia contra os operários em greve. Esbirros reentraram em cena um pouco por
todo o país (em 22 de julho de 2012, operários da fábrica têxtil Al-Samouli, de
Mahalla, foram baleados quando em ação de protesto, numa emboscada armada por
assaltantes desconhecidos'). Alguns operários foram, inclusivamente, mortos e
vários ficaram feridos em resultado desses ataques organizados. Algumas dessas
greves foram, todavia, (parcialmente) bem--sucedidas. Em diversos casos os
trabalhadores conseguiram concessões da parte dos diferentes governos que
vieram depois da revolta de 2011. Exemplo claro de um desfecho positivo para as
lutas dos operários neste período pós-revolta é o da empresa Mahalla: em 2012,
após uma greve que durou sete dias, os operários conquistaram um prémio de
participação nos lucros referente a seis meses e meio, além de um aumento do
benefício a receber no momento da reforma. Este acordo abrangeu a totalidade
das fábricas têxteis do setor público, que hoje no Egito se calcula que
empreguem cerca de 100 000 operários (Alexander, 2012a).
Mas o que verdadeiramente merece destaque, no que diz respeito às ações
ocorridas no setor industrial do período pós-revolta, é a crescente natureza
política das reivindicações dos trabalhadores. A este propósito, é importante a
informação constante da declaração produzida em 2012 pelos operários de
Mahalla, intitulada Mensagem ao Presidente' (i.e., ao presidente Mohamed
Morsi, membro da Irmandade Muçulmana):
Durante muitas décadas os operários foram vítimas de marginalização,
pobreza e humilhações. Por isso eles devem ser, neste momento, a
grande preocupação do presidente, porque nada lhes interessa mais do
que cumprir os objetivos da revolução: a liberdade e a justiça
social. Queremos lembrar ao presidente que foram os operários quem
derrubou o regime opressor. (Atef, 2012)
A interpenetração entre, por um lado, a luta pela justiça social (materializada
na exigência de melhores salários, melhores condições de trabalho e segurança
no emprego) e, por outro lado, a batalha pela tahrir (liberdade') e pela
tathir ' quer dizer, o saneamento' dos gestores corruptos das fábricas e
instituições do setor público ' não constitui novidade no Egito, antes
caraterizou, invariavelmente, as iniciativas operárias durante as décadas
precedentes (Alexander, 2012b). É importante, a este propósito, recordar que
desde 1952 que as greves, os ajuntamentos públicos não autorizados e os
protestos de rua estiveram proibidos por lei. Por este motivo, as ações e
manifestações dos operários representaram sempre um gesto coletivo corajoso,
com um forte cunho antirregime (que o mesmo é dizer, político).
No entanto, as expressas reivindicações políticas dos operários de Mahalla (ou
seja, a Mensagem ao Presidente') e a imensa vaga de greves ocorrida em todo o
país na fase pós-revolta vieram alterar profundamente o rumo do debate
político, uma vez que até àquele momento a atenção estivera exclusivamente
voltada para questões como a nova constituição, as eleições, as leis islâmicas
e o parlamento. As greves e a referida mensagem' contribuíram para que as
atenções se transferissem do estrito foro político-institucional para os
problemas de natureza socioeconómica respeitantes à ampla base social formada
pelos pobres e marginalizados.
Outro exemplo claro da interpenetração crescente das reivindicações de natureza
económica e política presentes nas lutas dos trabalhadores egípcios foi o
comprometedor relatório elaborado em 2012 pelo Centro Sindical e Operário
(Centre for Trade Unions and Workers ' CTUW), a Conferência Trabalhista
Democrática do Egito (Egyptian Democratic Labour Congress ' EDLC), e o Centro
de Serviços Sindicais e do Operariado (Centre for Trade Unions and Workers'
Services ' CTUWS):
A resposta dada pelo governo às greves dos operários não é a resposta
própria de um governo saído de uma revolução. Pelo contrário, ele
recorreu às mesmas táticas usadas pelo antigo regime. (Ahram Online,
2012b)
No relatório, o presidente Morsi e a Irmandade Muçulmana (de que Morsi já era
membro de longa data) eram também acusados de introduzir alterações
perturbadoras na Lei Sindical n.º 35, de 1976, que regula a atividade
sindical, e de não conferirem aos operários a liberdade e independência que
estes merecem, não obstante existirem hoje em dia no país 1200 sindicatos
independentes (Ahram Online, 2012b).
Muitos destes sindicatos independentes integram atualmente as duas novas
federações sindicais, designadamente a Federação Egípcia dos Sindicatos
Independentes (Egyptian Federation of Independent Trade Unions ' EFITU) e a
Conferência Trabalhista Democrática do Egito (Egyptian Democratic Labour
Congress ' EDLC).
Apesar de os trabalhadores egípcios não parecerem aceitar a desmobilização
política ' e por isso fizeram frente, primeiro ao presidente Morsi e à
Irmandade Muçulmana, e depois ao governo de iniciativa militar ', as novas
federações são bastante débeis no que toca a recursos e a capacidade
organizativa (Beinin, 2013). Como assinalam Andrea Teti e Gennaro Gervasio,
até agora não tem havido coordenação e unidade nas suas ações:
No que diz respeito ao movimento sindical independente, coloca-se o
problema de chegar a um certo nível de coordenação com vista à ação
unitária. A EFITU, que é a nova federação independente, cresceu a um
ritmo muito rápido desde que foi criada em 31 de janeiro de 2011,
compreendendo hoje mais de duzentos sindicatos de dimensão variada.
Conseguir assegurar a democracia interna é algo que lhe vai ser
fundamental se quiser manter o nível de legitimidade e mobilização
alcançado pelos trabalhadores na fase que antecedeu a Revolta de
Janeiro e de então para cá. Também já se fizeram sentir os primeiros
sinais de brechas dentro da EFITU: no passado outono as duas
principais organizações que lhe deram origem ' a RETA, de Kamal Abu
Eita, e o CTUWS, de Kamal Abbas ' desentenderam-se, tendo este último
abandonado a Federação. As divergências tiveram a ver, no plano
imediato, com o financiamento estrangeiro, mas também com os
grandes objetivos estratégicos do movimento sindical, mostrando-se a
RETA favorável a campanhas de sindicalização dirigidas ao ainda
considerável setor público, ao passo que o CTUWS pretende alargar o
esforço de sindicalização ao setor privado e particularmente às Zonas
Económicas Especiais, onde são ainda mais restritos os direitos dos
trabalhadores. (2012: 109)
Como refere Beinin, isto provavelmente só acontece porque entre o início da
década de 1950 e 2011 o Egito não conheceu minimamente o sindicalismo
democrático (2013). Deve, porém, reconhecer-se que hoje em dia as
reivindicações dos trabalhadores egípcios comportam de forma clara (com
diferentes níveis de intensidade, consoante o momento) uma vertente política e
uma vertente económica.
Trabalhadores egípcios, um ator social desconhecido?
De acordo com dados oficiais fornecidos pela Agência Central para a Mobilização
Pública e a Estatística (Central Agency for Public Mobilisation and Statistics
' CAPMAS), o setor manufatureiro é o segundo maior da economia egípcia, depois
da agricultura. Numa população de 82,3 milhões, a força de trabalho é composta
por mais de 26,1 milhões de habitantes. Até ao final de 2010 o número de
empregados era de cerca de 23,8 milhões (sendo 19,1 milhões homens e 4,6
milhões mulheres). As estatísticas oficiais referem cerca de 2,3 milhões de
desempregados, o que, em 2011, correspondia a uma taxa de desemprego de 9%
aproximadamente (CAPMAS, 2011). Segundo o Relatório do Centro para a
Solidariedade egípcio, no entanto, quase 60% dos trabalhadores estão
empregados na economia informal (Egyptian Solidarity Centre, 2010: 5). A
julgar pelo abrandamento do crescimento económico associado à crise económica
global que rebentou em 2008, e que teve um forte impacto sobre a estrutura
económica do Egito, muitos outros observadores creem igualmente que, nos
últimos cinco anos, a taxa de desemprego real é muito superior àquilo que
mostram os números oficiais. Daí que haja muitas opiniões que consideram que a
crescente taxa de desemprego constitui uma das causas principais das recentes
vagas de greves e protestos no país.
No entanto, não se pode considerar que as últimas vagas de greve no Egito sejam
um acontecimento excecional. Com efeito, pode dizer-se que há no Egito uma
velha tradição' de lutas e greves por salários mais altos e melhores condições
de trabalho. Como é largamente consabido, a primeira greve de que existe
registo no mundo ocorreu no Egito há milhares de anos: tratou-se de uma
ocupação que durou três dias, levada a cabo pelos trabalhadores das pirâmides
por causa de queixas relacionadas com a paga do trabalho (Trumka, 2010: 3). O
movimento operário egípcio da era moderna começou no Cairo com uma greve de
trabalhadores gregos, os enroladores de cigarros, em 1899. Data de então a
criação do primeiro sindicato no país. Algumas décadas volvidas, foram criados
no Cairo e em Alexandria diversos sindicatos, a maioria dos quais para
enquadramento dos trabalhadores dos comboios e elétricos. Desde as suas
origens, estas organizações tiveram uma feição política e fortemente
anticolonial (Egyptian Solidarity Centre, 2010: 8). Em março de 1938 os
representantes de 32 sindicatos, a maioria deles com sede no Cairo, criaram a
primeira federação sindical independente, a Federação Geral de Sindicatos
Operários do Reino do Egito (GFLUKE).
Durante a Segunda Guerra Mundial os sindicatos egípcios foram, finalmente,
legalizados, mas simultaneamente o Estado alargou o controlo que tinha sobre
eles. Assim, só eram permitidos sindicatos segmentados, ou seja, ligados a um
local de trabalho específico. No entanto o movimento sindical alastrou a todo o
país de forma impressionante: em maio de 1944 estavam inscritos oficialmente
350 sindicatos, com um total de cerca de 120 000 membros (Egyptian Solidarity
Centre, 2010: 13). Durante os anos da guerra a classe trabalhadora do setor da
indústria cresceu substancialmente (até cerca de 623 000 operários fabris), e
de forma crescente se fez também sentir, entre outubro de 1945 e janeiro de
1952, o caráter anticolonial do movimento operário egípcio.
Quando, em 23 de julho de 1952, Gamal Abdel Nasser e os Oficiais Livres
derrubaram a monarquia, criando um Conselho de Comando da Revolução (RCC),
muitos trabalhadores apoiaram com entusiasmo o regime militar. Os Oficiais
Livres prometeram independência nacional e justiça social plenas. De facto, com
Nasser a presidente uma vaga de reformas empreendidas de cima para baixo
começou a transformar o país, em sintonia com o movimento anticolonial popular
e com o nacionalismo anti-imperialista'. Entre as reformas empreendidas
destacam-se a da legislação laboral, a da reforma agrária (deixada, em grande
parte, por concluir), a eletrificação do país, o acesso generalizado à
educação, e a criação de um sistema de saúde moderno. Em 1954 foram
nacionalizados todos os bancos, assim como todas as empresas com mais de 200
empregados e os latifúndios. Os trabalhadores das empresas nacionalizadas
passaram a ser funcionários do Estado, e com isso melhorou o seu nível de vida.
Entre 1960 e 1964 os salários reais aumentaram um terço, enquanto o número de
horas de trabalho semanais diminuía 10%. O governo assegurava a todos os
licenciados um emprego de colarinho branco, e um emprego de colarinho azul a
quem terminasse o ensino secundário (Egyptian Solidarity Centre, 2010: 17). O
preço dessas reformas foi a suspensão da participação dos trabalhadores na vida
política e a dura repressão das suas lutas ou greves independentes: não houve
no Egito greves legais desde que, em março de 1954, Nasser consolidou o poder
(Beinin, 2009: 69). Com Nasser o Egito criou um sistema coerente, o qual,
contudo, deve ser sujeito à crítica, uma vez que reprimiu, entre muitas outras
coisas, a autonomia do movimento operário:
Nasser apostou na industrialização para escapar à especialização
internacional e colonial, que confinava o país ao papel de exportador
de algodão. O sistema que criou manteve uma divisão de rendimentos
que favorecia as classes médias em expansão, sem empobrecer as massas
populares. (Amin, 2011: 11)
Não obstante a política económica de Nasser, o índice dos salários reais caiu
várias vezes entre 1964 e 1976, o que teve como resultado o deflagrar de ações
coletivas de trabalhadores por todo o país (Beinin, 1993). A ação mais
importante teve lugar na Fiação e Tecelagem Misr, em Mahalla al-Kubra: Uma
greve com ocupação de instalações, durante três dias do mês de março de 1975,
levou a um aumento salarial de 9 para 15 EGP diários para todos os operários da
área da produção no setor público egípcio (ibidem: 70).
Em 1970, com a chegada ao poder de Saddat ' que lançou o programa infitah'
(porta aberta'), destinado a reintroduzir o setor privado e atrair capital
estrangeiro, reduzindo, ao mesmo tempo, o papel do Estado na área económica e
industrial ', deu-se no país uma mudança radical, tanto a nível político como a
nível económico. A abertura da economia egípcia trouxe rápidas transformações,
gerando um surto imobiliário e criando uma nova burguesia parasitária'
(Hinnebusch, 1985: 69-70). As condições de vida das massas populares pioraram
em poucos anos, e em 1977 rebentaram por toda a parte as revoltas do pão'. Os
trabalhadores consideraram as novas reformas governamentais um ataque direto ao
seu nível de vida. Mais de 100 pessoas foram mortas nestas revoltas, em que os
trabalhadores da indústria tiveram um papel significativo. As suas ações
constituíram uma resposta imediata às reformas inspiradas pelo FMI, mas foram,
também, resposta a queixas mais antigas (Beinin, 2009: 70). Os tumultos foram
espontâneos e tiveram um caráter nacional, contudo faltou unidade e organização
ao movimento. No entanto, ele acabou por ser importante para as classes
populares do país, na medida em que obrigou o governo a recuar parcialmente nos
seus planos neoliberais (Posusney, 1993: 222).
Após a morte de Sadat (1981), Hosni Mubarak assumiu a continuidade do processo.
Desde o início que prosseguiu e aperfeiçoou a mesma estratégia de abertura', a
que chamou infitah produtiva'. Sob a sua orientação assistiu-se, também, ao
reforço da economia de mercado livre e voltada para a exportação. Em
conformidade com o Programa de Ajustamento Estrutural assinado em 1991 com o
Fundo Monetário Internacional, o governo egípcio privatizou segmentos do setor
público e liberalizou os preços e as rendas.
Mubarak adotou uma liberalização mais agressiva da economia. Em 1991
o Egito deu início a um programa de ajustamento estrutural maciço. O
esquecimento a que o governo votou o setor agrícola durante as
décadas de 1980 e 1990 conduziu ao empobrecimento e à marginalização
dos pequenos camponeses. Ao mesmo tempo, as políticas neoliberais
geravam tensões no interior da classe dominante. (Munif, 2013: 206)
O aprofundamento das políticas neoliberais nos anos 80 e 90 apagou em
definitivo o que restava do Estado Nasser. O único aspeto que sobreviveu foi o
aparelho de coerção autoritário. Este de pouco serviu, no entanto, para impedir
os trabalhadores egípcios de voltarem de novo às ruas: de 1984 a 1989 e em
meados da década de 1990 verificaram-se entre 25 e 80 ações coletivas por ano
(El Shafei, 1995).
Depois de 2004 teve início uma imensa vaga de privatizações de empresas
públicas. Foi a maior venda de sempre do setor público egípcio, em resultado da
qual o Banco Mundial classificou o Egito como sendo, no plano económico, um dos
dez países mais reformadores' do mundo (World Bank, 2007: 1). Enquanto isso,
no entanto, o Egito tornou-se um dos países em que os preços dos alimentos
subiam a pique, ao passo que os salários permaneciam estagnados. Tal situação
levou mais uma vez os trabalhadores para as ruas: de 1998 a 2009 mais de dois
milhões de operários participaram em mais de 3300 ocupações de fábricas,
greves, manifestações ou ações coletivas afins (Beinin, 2011: 181).
Como se pode ver pela Figura_1, o ponto de viragem na ação coletiva dos
trabalhadores deu-se em dezembro de 2006, quando os operários de Mahalla
fizeram uma greve de vários dias:
Após uma semana marcada por reivindicações e pela organização de
pequenas ações de protesto, 24 000 trabalhadores entraram em greve no
dia 7 de dezembro de 2006, quando milhares de operárias da fábrica
abandonaram os seus postos de trabalho e se dirigiram até ao setor
onde trabalhavam os homens, entoando: Onde é que estão os homens? As
mulheres estão aqui!. Juntando fileiras, mulheres e homens marcharam
em direção ao centro da fábrica, situado na Praça Tala't Harb. Nos
três dias que se seguiram, mais de 10 000 operários em greve ocuparam
a fábrica vinte e quatro horas por dia, formando um comité de greve
para organizar os aspetos logísticos, falar à comunicação social e
negociar com os representantes da entidade empregadora no local. (El-
Mahdi, 2011b: 388)
A ação foi vitoriosa, mas mais significativo foi o facto de ela ter assinalado,
no Egito, um salto qualitativo em relação a anteriores iniciativas no âmbito
laboral. E isso não só porque serviu de inspiração a outros trabalhadores da
indústria (dos setores público e privado) e aos trabalhadores de colarinho
branco (cobradores de impostos, funcionários dos correios, administradores
escolares, trabalhadores dos transportes, funcionários dos centros de
informação do Estado, médicos e farmacêuticos), que desencadearam importantes
ações de afirmação laboral em todo o país, mas também, e principalmente, porque
representou uma viragem relevante na forma de organizar as greves. Foram
criadas novas comissões de greve, totalmente autónomas em relação aos
tradicionais sindicatos estatais, o que por sua vez veio proporcionar a
formação e experiência necessárias ao aparecimento de sindicatos independentes.
O dia 6 de abril de 2008, dia da fundação do Movimento da Juventude 6 de
Abril', é outra data importante para o movimento operário egípcio. Houve um
esforço imenso para organizar uma greve geral em todo o país, de apoio à greve
empreendida pelos operários de Mahalla contra a alta dos preços dos alimentos.
Foi a primeira tentativa do género na história do movimento operário do Egito.
A greve geral não chegou a realizar-se, mas houve ações de massa por parte,
quer dos operários, quer dos habitantes de Mahalla. O governo precisou de dois
dias para pôr fim às manifestações de rua, também chamadas Intifada de
Mahalla'. Foram mortas três pessoas e centenas de trabalhadores sofreram a
prisão e a tortura. No entanto, as greves, as ocupações e os protestos
continuaram durante meses noutros locais, levando à formação, em 2009, dos
primeiros sindicatos independentes dos cobradores de impostos do país.
Papel, organização e participação dos trabalhadores na revolta de 2011
Para muitos estudiosos e ativistas, os primeiros sinais da crescente oposição
política vivida no Egito foram dados pelos protestos de setembro de 2000,
quando dezenas de milhares de egípcios saíram à rua em solidariedade com a
intifada palestiniana. Mas a fúria contra o regime só pôde explodir abertamente
em todo o país com o deflagrar da guerra do Iraque, em 21 de março de 2003.
Nessa altura,
os egípcios ocuparam a Praça Tahrir num protesto que começou por ser
sobre a invasão do Iraque pelos EUA e logo se transformou numa ação
contra o presidente Hosni Mubarak e o seu regime. (Schemm, 2012: 85)
Numa tentativa de unificar os partidos políticos e os movimentos sociais (ONGs,
associações, etc.) que exigiam a alternância do poder, foi lançado em 2004 o
movimento Kefaya'. Inicialmente o Kefaya (palavra árabe para basta) conseguiu
mobilizar amplos setores da sociedade egípcia que criticavam Mubarak e se
opunham à sua sucessão hereditária pelo filho, contudo o movimento acabaria por
se revelar incapaz de ultrapassar muitos dos obstáculos aos esforços realizados
no sentido das reformas e da participação política (Al-Sayyid, 2009; Al-Din
Arafat, 2009). Apesar deste fracasso, o movimento Kefaya serviu de inspiração a
importantes (ainda que só parciais) reformas no plano social e jurídico. Além
disso, ajudou a criar uma comunidade online, congregando, pela primeira vez,
meios de comunicação social e movimentos oposicionistas (Levinson, 2005).
Em abril de 2008, como já foi referido na secção anterior, nasceu outro
movimento importante: o Movimento da Juventude 6 de abril', formado ' de
maneira (mais ou menos) espontânea ' a partir dos esforços para organizar a
greve geral nacional contra a alta dos preços dos alimentos, em apoio à greve
dos operários da cidade de Mahalla:
Desde a Segunda Intifada, ocorrida no ano 2000, diversos grupos
constituíram coligações para apoiar a luta dos palestinianos e opor-
se à guerra no Iraque. Dessas lutas emergiram dois grupos
importantes: (1) o Kifaya, uma coligação de grupos liberais, de
esquerda, e islâmicos que organizavam protestos e ações simbólicas
para fazer frente ao poder autoritário de Mubarak; e (2) o Movimento
da Juventude 6 de Abril, formado sobretudo por jovens da classe média
que começaram a apoiar as lutas dos trabalhadores em abril de 2008.
Estes movimentos sociais contribuíram para fazer frente à hegemonia
política da elite. (Munif, 2013: 208)
Neste crescente movimento oposicionista de cerca de uma década, o papel dos
trabalhadores foi significativo tanto quantitativa como qualitativamente.
Estima-se que, entre os anos de 2006 e 2009, mais de 1,7 milhões de
trabalhadores tenham participado em ações diversas (El-Mahdi, 2011b: 388), ao
mesmo tempo que eram introduzidas novas variantes organizativas em resultado do
desenvolvimento de processos de democratização interna e da adoção de novas
táticas de confronto. Em muitos casos, operários e trabalhadores em geral
criaram os seus próprios comités de greve, nomearam e elegeram novos dirigentes
à margem dos sindicatos oficiais do Estado, organizaram e encetaram negociações
independentes com as autoridades, criaram um novo arsenal de instrumentos de
luta, desde motins de rua a várias outras formas de protesto, e por último, mas
não menos importante, aprenderam a gerir a forma de comunicar com os média.
Aquilo que levou os trabalhadores a criar novos comités locais e a eleger novos
dirigentes foi a necessidade não só de fugir ao controlo dos sindicatos
estatais (na sua maioria considerados corruptos ou cúmplices dos gestores
públicos e privados), mas também de convocar uma série de greves de muitos
dias, de maneira a resistir à repressão estatal e ao contra-ataque do
patronato. Este tipo de greve exige um nível de organização mais elevado, uma
vez que obriga os trabalhadores a criar mecanismos para pernoitar e
providenciar refeições diárias nos locais de trabalho, bem como para os
proteger, e exige também uma direção capaz de manter os trabalhadores motivados
e unidos durante períodos mais longos.
Embora as reivindicações dos trabalhadores fossem essencialmente de natureza
económica, não foi incomum a apresentação de reivindicações de caráter
político, e menos incomum ainda as denúncias contra o regime de Mubarak e a
repressão do Estado. Há ainda outros aspetos importantes a sublinhar: o
movimento operário egípcio era ' e continua a ser ' demasiado fragmentado e
desorganizado. A verdade é que ele se revelou incapaz de moldar ou encabeçar o
movimento de oposição política no período anterior a 2011, tendo a sua
intervenção em toda a agitação vivida nesse ano sido importante do ponto de
vista quantitativo, ou seja, em função do grande número de trabalhadores
presentes nos protestos de rua. Atente-se no que, a este propósito, afirma Joel
Beinin:
O movimento operário independente não estava preparado para assumir
um papel de direção quando, em janeiro de 2011, a agitação alastrou
pelo mundo árabe. Não possuía uma direção reconhecida a nível
nacional, dispunha de escassos recursos organizativos e financeiros,
contava com um apoio internacional limitado, não tinha um programa
político, e o programa económico que tinha era mínimo. (2012: 1)
No entanto, e como já ficou dito atrás, os operários constituíram uma parte
significativa dos 18 dias da revolta egípcia. Isso mesmo resulta das afirmações
contidas na entrevista pela autora a Fatma Ramadan, dirigente da Federação
Egípcia de Sindicatos Independentes:
Havia operários de quase todas as siderurgias na Praça Tahrir ou nos
protestos de Gizé, tal como estavam presentes trabalhadores das
empresas de açúcar em al-Fayyum ou nas ruas de Ismailia e de Kafr
Sheikh. Como é possível pensar que não havia operários a participar
nos protestos numa cidade de operariado como é Mahalla al-Kubra, por
exemplo, onde mais de 500 000 pessoas desceram à rua todos os dias
durante a revolução? Se aqueles dois milhões de pessoas a protestar e
a lutar todos os dias em Alexandria não eram operários, então eram
quem?
Outros trabalhadores entrevistados no verão de 2012 descreveram uma situação
idêntica. Um deles, AA, um dirigente sindical local que trabalha para a
Autoridade do Canal do Suez, afirmou:
Durante esse gloriosos 18 dias da revolução estávamos todos nas ruas.
Nenhum de nós ficou em casa ou foi trabalhar. Estávamos todos juntos,
ainda que, ao princípio, não estivéssemos muito bem organizados. E
não descemos à rua como membros do sindicato, mas como pessoas. [ ]
Claro que andámos com bandeiras, mas eram bandeiras do Egito, não
eram bandeiras do sindicato.
RK, jovem operária de uma fábrica têxtil de Alexandria, expressou esta ideia
ainda com mais clareza:
Eu e os meus amigos andámos quase todos os dias nos protestos de rua.
Bem, diga-se que, no início, nem todos lá andaram, mas quando ficou
claro que as manifestações se estavam a aguentar e que qualquer coisa
de inesperado estava a acontecer nesses dias por todo o Egito, nessa
altura eu vi os meus amigos e colegas todos nas ruas.
Estima-se que entre os dias 25 de janeiro, data do início das manifestações, e
11 de fevereiro, que foi quando Hosni Mubarak se demitiu oficialmente, pelo
menos 15 milhões de pessoas, de uma população de cerca de 83 milhões ' ou seja,
mais de 20% da população ' participaram nas manifestações de massas (Amin,
2011: 13).
Todos os ativistas e sindicalistas entrevistados confirmam a ideia de que a
revolta egípcia teve, inequivocamente, um cunho nacional e popular. A Praça
Tahrir, na cidade do Cairo, tornou-se o símbolo da revolução, sobre ela
recaindo o foco principal da cobertura mediática ocidental, sem no entanto ter
sido o local privilegiado, visto que todo o país esteve envolvido, desde as
cidades e províncias até aos lugares mais remotos. Segundo os entrevistados, os
manifestantes de outras cidades, como Suez, Porto Said e Alexandria, deram
mostras de uma ousadia ainda maior. Em Alexandria, por exemplo, e ao invés do
que, de um modo geral, aconteceu no Cairo, os manifestantes não se limitaram a
ocupar uma praça; foram aparecendo todos os dias, de cada bairro e de cada rua,
às dezenas e centenas de milhares, enfrentando a polícia e o gás lacrimogéneo,
até derrotarem a polícia de Mubarak, expulsando-a da cidade. Tal significa que
as estratégias de participação e de confrontação nas ruas foram diferentes
consoante o local. O mesmo se pode dizer das caraterísticas organizativas dos
diversos atores sociais egípcios, incluindo os trabalhadores e os seus novos
sindicatos e comités.
É difícil, porém, negar a participação dos trabalhadores na revolta egípcia,
principalmente se se considerar que quase 15 milhões de pessoas vieram para a
rua reivindicar Liberdade, dignidade e justiça social'.
Com efeito, os trabalhadores não só participaram nos protestos de rua, quer a
título individual, quer em pequenos grupos, como também ' e isso foi o mais
importante ' lograram dar a última machadada no governo de Mubarak, já que as
greves que empreenderam no início de fevereiro de 2011, durante a semana final
de Mubarak, contribuíram para desequilibrar a balança (quando reinava a
incerteza quanto ao desfecho dos protestos em massa) no confronto entre as
forças revolucionárias e contrarrevolucionárias no terreno. Estas greves
estratégicas acabariam por se revelar cruciais para o êxito da revolta.
Acresce que, durante os dias de revolta popular, os trabalhadores foram capazes
de juntar forças e criar a Federação Egípcia de Sindicatos Independentes
(EFITU). A primeira iniciativa revolucionária concreta foi, assim, a federação
dos sindicatos independentes, ou seja, uma organização dos trabalhadores. Foi
muito significativo o anúncio da sua criação em 30 de janeiro de 2011, numa
conferência de imprensa realizada na Praça Tahrir, no Cairo, com milhares de
manifestantes a servir de moldura.
Conclusões: e agora?
O que este artigo, ainda que sem versar propriamente todas as questões
importantes suscitadas a este propósito, pretendeu demonstrar é que a revolta
egípcia de 2011 não surgiu num vácuo. Aproximou-se mais de uma reação em cadeia
na sequência da revolta do pão, da luta pelos direitos cívicos e políticos, dos
protestos em solidariedade com a intifada palestiniana, das manifestações
contra a repressão estatal e a guerra no Iraque, e ' mais importante ' das
muitas lutas dos trabalhadores. Como bem salientou o jornalista egípcio Hossam
El-Hamalawy (2011), A revolta iniciada em 25 de janeiro de 2011 foi o
resultado de um longo processo em que o muro dos medos se foi esboroando,
pedaço a pedaço (The Guardian, 02.02.2011). Tal não quer dizer, no entanto,
que a revolta egípcia não representa uma rutura na continuidade histórica; pelo
contrário, trata-se claramente de uma rutura, mas que não se deve confundir com
as condições para que a sua ocorrência se tornasse possível. Savas colocou
corretamente a questão ao escrever:
Se o Acontecimento revolucionário é arrancado às circunstâncias que o
tornaram possível, quer dizer, à sua base material ou lugar do
acontecer [ ] com todos os seus elementos e mobilização, então
assemelhar-se-á a um milagre metafísico caído do céu. (2011: 422)
Apesar disso, o termo revolução', largamente utilizado para referir os
recentes levantamentos árabes (e também egípcios), suscitou muita discussão
entre estudiosos e comentaristas. O conceito de revolução' assume, como se
sabe, diferentes sentidos consoante o contexto histórico e sociopolítico:
existe revolução só quando um governo é derrubado a partir de baixo, ou tem a
revolução mais a ver com transformações profundas nas instituições políticas e
nas estruturas sociais? A questão é bastante complexa, mas o presente artigo
irá atalhar dizendo que concorda com Gilbert Achcar quando este afirma que,
independentemente daquilo que chamamos à agitação árabe e egípcia, há que vê-la
como o ato inicial de um processo revolucionário de longo prazo na região,
porquanto
[A] revolta imensa iniciada no dia 25 de janeiro de 2011 representa
um irromper das massas na cena política que não tem precedente na
longuíssima história da terra das pirâmides. Daí não subsistir a
mínima dúvida de que ela pôs em movimento toda uma dinâmica
revolucionária. É ainda demasiado cedo para nos pronunciarmos sobre
as consequências. Os resultados mais radicais do golpe de 1952 só
foram visíveis passados muitos anos. Seria bom ter isto em mente.
(2013: 15)
Desde o seu início que o movimento dos trabalhadores egípcios constituiu, como
constitui ainda, uma das mais importantes subjetividades deste processo
revolucionário. Não obstante os trabalhadores não terem figurado nos títulos de
capa dedicados às manifestações de massa de janeiro e fevereiro de 2011, o
combate por eles travado nos locais de trabalho e nas ruas ao longo da última
década foi o que tornou possível o Acontecimento revolucionário, quer dizer, a
queda do governo de Mubarak. Dia após dia, as greves e os combates travados
pelos trabalhadores ao longo de muitos anos conseguiram deslegitimar o regime
ditatorial, fomentando uma cultura de protesto entre as classes subalternas e
nos movimentos de juventude e feminista. Atente-se nas palavras de Khaled Ali,
o destacado ativista dos direitos laborais, em entrevista ao Democracy Now!:
De 2004 a 2011, os trabalhadores lançaram e mantiveram com êxito a
maior vaga de mobilizações de cariz laboral a que este país já
assistiu. Foram os trabalhadores quem, ao longo dos últimos anos, fez
cair as estruturas deste regime. São eles quem vem lutando, no
terreno, por uma organização independente, a eles se devendo a
criação do primeiro sindicato egípcio efetivamente independente. E
foram eles quem insistiu no direito a ter sindicatos pluralistas, em
vez de sindicatos onde apenas se amontoam apoiantes do governo. Foram
eles quem trouxe as suas queixas para a rua. (Democracy Now!, 2011)
As greves e demais ações coletivas não pararam depois da demissão de Mubarak e
do subsequente afastamento de Morsi, nem depois do golpe militar de 2013.
Durante a escrita deste texto, e não obstante a dura repressão por parte do
exército e da polícia a seguir ao golpe militar ' ainda que seja de referir que
a repressão estatal parece agora principalmente dirigida contra os membros e
simpatizantes da Irmandade Muçulmana ', milhares de trabalhadores egípcios
encontram-se em greve, exigindo melhores condições de trabalho, o aumento do
salário mínimo e, facto que não constitui surpresa, o cumprimento das promessas
da revolução. Eis o que saiu no Daily News Egypt há apenas alguns dias:
No passado domingo um número de operários da Companhia de Fiação e
Tecelagem de Algodão de Mahalla calculado em 20 000 prosseguiu com a
sua greve de oito dias, exigindo salários em atraso, a demissão do
presidente da empresa, Abdel-Alim Hassan, e a substituição do
comissário Abdel Fattah al-Zoghby. [ ] Aos operários da Companhia de
Fiação e Tecelagem de Algodão juntaram-se, no domingo, milhares de
trabalhadores da cidade de Kafr Al-Dawar, que se manifestaram em
solidariedade com os operários de Mahalla. Segundo o Centro Egípcio
para os Direitos Sociais e Económicos (ECESR), os trabalhadores de
Kafr Al-Dawar reivindicam também a aplicação, aos trabalhadores das
empresas do Estado, do salário mínimo já aprovado pelo novo governo.
[ ] Esperamos que todos os meios de comunicação social ajam com
honestidade, mostrando-se capazes de transmitir a nossa mensagem ao
povo egípcio', lia-se num comunicado à imprensa da autoria dos
trabalhadores de Mahalla, que acrescentava que os trabalhadores
exigem justiça não apenas para si, mas para todos os trabalhadores
egípcios'. (Omar, 2014 ' Daily News Egypt, 17.02.2014)
É sobejamente sabido que o Egito é um país fulcral na zona do Mediterrâneo e
Médio Oriente. Como salientam El-Mahdi e Marfleet, a sua influência económica,
política e social está para toda esta região como a do Brasil está para a
América do Sul ou a da Índia para o Sul da Ásia (2009: 151). O Egito é o país
com a maior população e a economia mais produtiva da região, tendo, além disso,
uma importantíssima influência político-militar (Hashim, 2011) no chamado
mundo árabe'. Por isso, o que acontece no Egito tem um impacto profundo no
Médio Oriente e, mais genericamente, no Sul Global, especialmente a partir do
momento em que uma nova crise mundial veio conferir nova atualidade às
discussões sobre os impactos do neoliberalismo e sobre a eficácia da
resistência e alternativas ao modelo do mercado global (El-Mahdi e Marfleet,
2009: 151).
Com as lutas que vêm travando, os trabalhadores egípcios estão a mostrar ao
mundo que a revolta ocorrida no seu país não foi só contra indivíduos
corruptos que impedem o capitalismo de funcionar devidamente (Maher, 2011:
41). Não há dúvida de que as massas de manifestantes que em 2011 saíram à rua
desejavam liberdade e reformas democráticas, mas os trabalhadores e os pobres
também vieram pedir justiça social e a redistribuição da riqueza do país, após
30 anos de privatizações, depauperamento e políticas neoliberais.2 Deste ponto
de vista, a participação dos trabalhadores egípcios na revolta de 2011 também
deve ser considerada uma resposta de classe à reestruturação económica
neoliberal. Ignorar estes aspetos seria não compreender as raízes da revolta em
massa vivida no Egito e aquilo que verdadeiramente a desencadeou. Além disso,
não deve haver equívocos sobre a natureza socialmente informe da revolta, pois
ela não é resultante de
um amálgama de elementos díspares, modernos e tradicionais, numa
qualquer relação de equilíbrio. Ela é, antes, a expressão do
desenvolvimento paralelo e desigual de um conjunto de contradições
contemporâneas e não contemporâneas (para empregar a própria
noção dialética de Ernst Bloch), em que o moderno ' e não o
tradicional ', ou seja, em que a contradição contemporânea entre
capital e trabalho, a nível global e local ' e não as contradições
não contemporâneas entre elementos anacrónicos ' constitui, em última
análise, o eixo determinante desse tecido complexo que são as
relações sociais. (Savas, 2011: 423)
A primavera' do povo egípcio (e árabe) parece representar, assim, um novo
despertar' (al-nahda) a Sul. Mas serão os movimentos em curso no Egito, e em
especial o movimento dos trabalhadores, capazes de atingir os seus objetivos,
de maneira a resistir à dura repressão militar e ao atual sistema económico
globalizado e financeirizado, tornando-se, simultaneamente, um modelo de
resistência ao mercado global e à injustiça social?
Talvez ninguém o consiga prever neste momento. Mas o Egito continua vibrante, e
tudo indica que há ainda muito para ver e esperar no futuro próximo.