Descontentamento na Europa em tempos de austeridade: Da ação coletiva à
participação individual no protesto social
Introdução
O presente artigo visa, em primeiro lugar, e no quadro do debate teórico sobre
o novo ciclo de mobilizações sociais, analisar de forma integrada as
iniciativas de protesto desencadeadas na Europa, quer pelos novos novos ou
novíssimos movimentos sociais, quer pelos sindicatos em resposta à crise
internacional e à vaga de austeridade neoliberal que lhe sucedeu,
designadamente a partir de 2010, procurando identificar as suas agendas,
motivações e modos de ação, linhas de convergência e divergência e explorar o
seu potencial de articulação, bem como analisar os fatores que podem ter
contribuído para o desenvolvimento dos protestos e para a sua incidência
diferenciada nos países europeus.
Em segundo lugar, e complementarmente, procuramos conjugar esta análise com uma
análise micro, isto é, centrada na atividade de protesto ao nível individual,
considerando um conjunto de dimensões com potencial para explicar a variação do
envolvimento dos indivíduos nas atividades de protesto nos diferentes países
europeus. Consideramos para este efeito a participação individual num tipo
particular de protestos, ou seja, a participação nas manifestações públicas,
não só porque estas ganharam relevância e centralidade no repertório da ação
política neste período, mas também porque configuram um tipo de protesto em que
velhos e novíssimos movimentos sociais, separadamente ou em conjunto,
exprimiram o seu descontentamento e exigências. Esta análise baseia-se no
Inquérito Social Europeu (ESS, 2012), o qual considera apenas as manifestações
legais e não inclui informação sobre as suas agendas e organizadores. A análise
visa interrogar em que medida os fatores e motivações de mobilização social
relacionados com os protestos de iniciativa sindical e dos movimentos sociais
identificados na primeira parte influenciaram a variação da participação dos
indivíduos nas manifestações nos diferentes países europeus, admitindo a
possibilidade de diferenciação dos países quanto à constelação de fatores,
motivações e características dos participantes que influenciaram a participação
em manifestações.
1. O novo ciclo de protestos na Europa: debates e desenvolvimentos
No período que se seguiu à eclosão da crise financeira internacional de 2008 e,
em particular, a partir de 2010, os protestos expressando descontentamento e
indignação aumentaram em todo o mundo. Um estudo recente (Ortiz et al., 2013)
analisando os protestos sociais entre 2006 e 2013, em 87 países, abrangendo 90%
da população mundial, constatou a escalada dos protestos sociais neste período
e a sua elevada incidência na Europa. A par da multiplicação das greves gerais,
este estudo sublinhou a prevalência e escalada de outros modos de protesto como
as manifestações de massas, as assembleias de protesto e as ocupações,
destacando que embora a justiça económica per se tenha estado no centro dos
protestos, estes foram potenciados pelo défice democrático e pela exigência de
democracia real. As tendências observadas confirmam, em grande parte, a ideia
prevalecente nas abordagens sobre os novos movimentos sociais, de que as
mobilizações sociais de protesto não podem ser apenas entendidas como uma
expressão do agravamento das condições económicas e sociais, mas acima de tudo
como uma expressão de motivações metapolíticas, relacionadas com o grau de
insatisfação com o funcionamento da democracia e com a ausência de respostas do
sistema político aos problemas económicos e sociais (Della Porta e Diani, 2006;
Della Porta, 2012; Castells, 2012). A estranha sobrevivência do neoliberalismo
e a sua intensificação na Europa associada às políticas austeritárias e ao
défice democrático na tomada de decisão contribuíram certamente para estes
desenvolvimentos (Crouch, 2011; Schömann e Clauwaert, 2012; Pochet e
Degryse,2013; Streeck, 2013).
Os estudos centrados sobre os novos novos movimentos sociais, cuja génese
remonta à reação contra as políticas económicas neoliberais, nos anos 90,
chamaram a atenção para a dimensão metapolítica da agenda das mobilizações de
protesto e para a sua centragem em duas reivindicações principais: a justiça
social contra as desigualdades crescentes e a democracia real na ótica da maior
participação cidadã em contextos deliberativos. Simultaneamente, chamaram a
atenção para a dimensão global/internacional dos protestos e para as suas
dinâmicas e especificidades nacionais e locais; para os modos alternativos de
organização e ação, flexível e horizontal; para a importância das redes sociais
e do uso das tecnologias de informação potenciando a mobilização; e para a
forte participação dos jovens na sua organização, em particular dos jovens com
níveis de educação elevados (Della Porta e Diani, 2006; Della Porta, 2012;
Castells, 2012; Fominaya e Cox, 2013, Toussaint, 2012).
Ao comparar a onda de protestos que emergiu uma década atrás, expressa no
movimento pela Justiça Global, com a nova onda de protestos que varreu a Europa
em reação à crise financeira internacional e às políticas de austeridade, Della
Porta (2012) destaca que a primeira se orientou do nível transnacional para o
nível nacional e local, enquanto a nova onda tomou o caminho inverso. Nesta
última, os protestos acompanharam a geografia da emergência da crise económica
que atingiu com diferente intensidade e em diferentes tempos os países
europeus, iniciando--se em 2008/2009 na Islândia e prosseguindo em 2011 em
Portugal, em Espanha e na Grécia, atingindo de seguida os EUA e vários outros
países. Um dos elementos de continuidade entre as duas ondas de protesto é a
crítica à democracia representativa e a reivindicação de novas formas de
democracia expressa na exigência Democracia real ya! pelo protesto dos
Indignados em Espanha, e também pelos movimentos sociais em Portugal, na Grécia
e na Islândia e pelo movimento Occupy, expressando o descontentamento com a
burocratização da participação política e com a erosão da possibilidade de
qualquer expressão verdadeira da maioria da vontade popular (Crouch, 2011).
No caso da nova onda de protestos, a democracia representativa é criticada por
ter permitido a subordinação da democracia aos ditames dos poderes financeiros
e também aos ditames das organizações internacionais como o FMI e a União
Europeia (Della Porta, 2012). Enquanto a onda de protesto global iniciada na
década de 90 incluiu, por via do seu enfoque na justiça global, para além das
referências identitárias e pós-materialistas dos movimentos dos anos 60 e 70, a
centragem nas preocupações materialistas designadamente quanto à desigualdade
de rendimentos, a nova onda de protesto acentuou claramente tal orientação
conferindo uma maior centralidade às questões do trabalho e do emprego, crucial
no desencadear da indignação que constituiu uma poderosa alavanca na ação
coletiva (Estanque et al., 2013).
Deste modo, os movimentos sociais referentes às duas ondas de mobilização
podem-se caracterizar como novos novos movimentos sociais (Della Porta e
Diani, 2006; Tilly e Tarrow, 2007; Feixa et al., 2009), sendo certo que a nova
onda de mobilizações iniciada em 2008 articula de modo explícito as
reivindicações dos velhos movimentos sociais não concretizadas ou entretanto
suprimidas, em particular os direitos laborais, contestando ao mesmo tempo a
concentração de rendimento e de riqueza dos 1% das classes dominantes e o
empobrecimento dos 99%, isto é, da generalidade da população. Pode dizer-se que
é esta nova articulação combinada com a exigência de democracia real que
explica o seu impacto na mobilização popular que atingiu níveis sem precedentes
na história da Europa dos últimos 40 anos, pelas extraordinárias manifestações
de massas que foram capazes de organizar. Em suma, estas características e a
intensificação e a extensão geográfica dos conflitos sugerem um novo ciclo de
protesto (Tarrow, 1995; Tilly e Tarrow, 2007; Della Porta, 2012; Estanque et
al., 2013).
Ainda que nem todos os protestos/ as mobilizações dos novíssimos movimentos
sociais tenham tido uma lógica de ação organização internacional/global, como o
Occupy Wall Street, o seu impacto transcendeu o nível nacional, e o efeito de
ciclo promoveu o contágio e a aprendizagem recíproca quanto às formas de ação e
organização, atuando como catalisador de novas mobilizações sociais (Della
Porta, 2012; Estanque et al., 2013), embora com particularidades atendendo ao
contexto nacional (Baumgarten, 2013; Fominaya e Cox, 2013). Em particular, é de
considerar o potencial catalisador das primeiras e extraordinárias mobilizações
deste novo ciclo, na Islândia em 2009 (Júliússon e Helgason, 2013) e na Tunísia
no início de 2011 (Sergi e Vogiatzoglou, 2013) dado o seu caráter insurrecional
e o extraordinário sucesso nos resultados que alcançaram, ao tempo: no primeiro
caso, da Islândia, derrubando o governo e impondo a realização de eleições,
demitindo o diretor do banco central e impondo o não financiamento dos bancos
em colapso; no segundo caso, da Tunísia, derrubando o regime ditatorial no
poder desde 1987.
Alguns dos movimentos sociais contribuíram também para a difusão internacional
pelo seu papel na projeção/construção de identidades coletivas transnacionais
de novos sujeitos políticos, fenómeno que não é novo no caso dos movimentos dos
precários, o qual teve a sua origem na Itália, lançando o Mayday em 2002 com a
palavra de ordem il precariato se rebela (Scholl, 2013), mas que ganhou uma
nova dinâmica e projeção no ciclo de protesto atual. No mesmo sentido, pode
dizer-se que o Occupy Wall Street projeta um sujeito político global, os 99%
contra os 1%, colocando a tónica na rebelião contra a desigualdade e a
injustiça social, da sociedade contra os mercados, da massa de milhões
empobrecendo contra os lucros descomunais de uma minoria.
No entanto, a incidência das mobilizações dos movimentos sociais foi muito
diversa, atingindo mais uns países do que outros, e nem todos os espaços
envolveram o mesmo potencial de contágio e aprendizagem, como confirmam as
expressões primavera árabe, ou primavera mediterrânica.
A ascensão dos protestos ligados aos novíssimos movimentos sociais é, contudo,
parte de um processo mais vasto em que se inclui também a escalada dos
protestos sindicais e outros, um pouco por toda a parte no mundo (Ortiz et al.,
2013), o que, em nosso entender, terá potenciado uns e outros. No entanto, a
literatura sobre os novos movimentos sociais deste novo ciclo prestou menos
atenção à importância das mobilizações sociais de iniciativa sindical ou do
movimento operário considerado em sentido lato. Pelo contrário, o enfoque
marxista sobre os movimentos sociais em curso chama a atenção, na esteira de
Thompson (1991 [1963]), para a importância de se considerar o papel ativo do
movimento operário na construção das respostas aos constrangimentos económicos
e sociais do período atual, e para ambos os tipos de mobilizações e a sua
interação, considerando o papel das greves, das culturas de resistência e dos
movimentos sociais, os quais constituem a mediação através da qual se exprime a
luta de classes (Barker et al., 2013). Inversamente, as abordagens no campo das
relações industriais têm negligenciado a importância dos novíssimos movimentos
sociais e divergem quanto ao entendimento do sindicalismo como movimento
social. Entre as exceções, destacam-se as perspetivas de inspiração marxista,
considerando que o sindicalismo articula a tensão entre movimento social e
instituição e a tensão entre objetivos económicos e objetivos políticos mais
amplos (Hyman, 2002; Gumbrell-McCormick e Hyman, 2013) e que apontam para a
mobilização relacionada com a perceção e a resposta à injustiça social como o
tema central das relações industriais (Kelly, 1998).
Em termos gerais, das leituras sobre os novíssimos movimentos sociais pode
inferir-se que os protestos de iniciativa sindical e de iniciativa dos novos
movimentos sociais são distintos, no plano das lógicas de ação e de organização
e das principais referências: a lógica estruturada, vertical e relativamente
rígida/burocrática de organização dos primeiros contrasta com a lógica
flexível, horizontal e em rede dos segundos; a centragem prioritária dos
sindicatos nos aspetos económicos e sociais contrasta com a centragem
prioritária dos movimentos sociais no campo metapolítico; as referências e a
ação a nível nacional predominam no campo sindical; enquanto as referências e
ação que articulam o local e o global predominam no campo dos novos movimentos
sociais (Della Porta e Diani, 2006; Della Porta, 2012). Contudo, esta distinção
exige uma análise cuidada, designadamente no que se refere aos objetivos,
agenda e impulso internacionalista das mobilizações desencadeadas pelos
novíssimos movimentos sociais e pelos sindicatos.
Com efeito, os protestos de iniciativa sindical, no mesmo período, incluindo a
escalada de manifestações e greves gerais sem precedentes nas últimas décadas
(Kelly e Hamann, 2010; Campos Lima e Martin Artiles, 2011; 2013; Ortiz et al.,
2013) articulam as reivindicações no campo económico e social com
reivindicações eminentemente políticas. Entre 2010 e 2013, realizaram-se na
Europa 24 greves gerais, das quais 9 na Grécia, 5 em Portugal, 3 em Espanha, 3
na Itália, 2 em França, 1 na Polónia e 1 na Roménia (Ortiz et al., 2013). Por
outro lado, o impulso internacionalista emergiu com a greve geral ibérica de 14
de novembro de 2012, e com as extraordinárias mobilizações sociais por toda a
Europa, no mesmo dia, ao apelo da Confederação Europeia dos Sindicatos. Deste
modo, nos últimos anos, os protestos de iniciativa sindical indiciam um novo
ciclo quanto à intensificação e extensão dos conflitos, quanto à politização da
agenda sindical e emergência do impulso internacionalista.
Neste sentido, pelo menos em parte, a agenda e os objetivos dos novíssimos
movimentos sociais e dos sindicatos coincidiram. É o que explica que, em várias
ocasiões, os novíssimos movimentos sociais tenham sido capazes de articular-se
e participar nos protestos e manifestações sindicais que também se
multiplicaram neste período na Grécia, em Espanha e em Portugal e inclusive
tomar a iniciativa, em primeiro lugar, de apelar à greve geral ou de apoiar
publicamente as greves gerais (Campos Lima e Martin Artiles, 2013) e ainda que,
nalguns casos, os próprios sindicatos tenham feito apelo à participação em
manifestações organizadas por tal tipo de movimentos sociais. Deste modo, é
relevante assinalar que a escalada de mobilizações do novo ciclo definiu também
novas formas quanto às relações entre os protestos dos novíssimos movimentos
sociais e os protestos de iniciativa sindical, potenciando as mobilizações de
uns e de outros e a mobilização conjunta.
O caso português é particularmente elucidativo a este respeito, como
documentamos no quadro seguinte:
Finalmente, há que destacar a capacidade de atração dos novíssimos movimentos
sociais em relação a grupos que os sindicatos têm dificuldade de organizar: os
desempregados, os trabalhadores precários e os jovens em geral. A dificuldade
de organização sindical dos jovens e dos trabalhadores precários está associada
a fatores estruturais ligados à desregulação do mercado de trabalho e ao facto
de o emprego destes grupos se situar predominantemente em setores de baixa
densidade sindical, mas está também ligada à relativa inércia dos sindicatos em
renovar estratégias e modos de atuação na perspetiva da sua integração
(Gumbrell-McCormick e Hyman, 2013). Contudo, não é de excluir a adesão destes
grupos às iniciativas de mobilização dos sindicatos, sobretudo no Sul da
Europa, em que o seu poder de mobilização supera o seu poder de associação/
organização. Mas, comparativamente, os novíssimos movimentos sociais com um
elevado protagonismo dos jovens (Castells, 2012; Estanque, 2013) e afirmando os
precários como sujeito político, tiveram um papel crucial nos protestos destes
grupos. De facto, várias abordagens e estudos têm destacado o papel dos jovens
com níveis de educação elevados na organização dos movimentos sociais deste
novo ciclo (ibidem), o que também tem sido relacionado com a sua inserção em
redes sociais densas (García e Martín, 2010; Sánchez, 2011).
É de admitir que em relação aos desempregados, sobretudo os mais jovens, algo
semelhante tenha acontecido, uma vez que de modo geral os sindicatos não têm
desenvolvido estratégias para organizar estes grupos, cuja fragilidade quanto
às identidades coletivas e redes sociais tem sido assinalada (Torcal e
Magalhães, 2010; Della Porta, 2011). Com efeito, é de admitir ainda que os
movimentos sociais tenham atraído os jovens desempregados, potenciando a sua
participação nos protestos, uma vez que esta está relacionada com as
oportunidades institucionais (grau de acesso ao sistema político) e
oportunidades discursivas (visibilidade, ressonância e legitimidade de
identidades e reivindicações no domínio público) (Giugni, 2006; Della Porta,
2011; Baglioni et al., 2011).
Contudo, os novíssimos movimentos sociais foram capazes, não só de exprimir a
voz e mobilizar os jovens, precários ou desempregados, mas também os
trabalhadores e cidadãos menos jovens. Com efeito, na primavera de 2011 a
emergência das mobilizações de massas em Espanha como o Movimento dos
Indignados, em Portugal com o movimento da Geração à Rasca e 15-M', e na
Grécia com o movimento Aganaktismeni, embora podendo sugerir a focalização na
geração jovem e precária, incluíram uma larga participação de outros grupos
geracionais e desencadearam uma dinâmica em que os movimentos se transformaram
em movimentos das gerações precárias', no plural (Campos Lima e Martin
Artiles, 2013; Estanque, 2013, Baumgarten, 2013).
Na Europa, é também provável que um entendimento específico sobre democracia
baseado no conceito de compromisso igualitário' (Schwartz, 2007) expressando
valores normativos, tais como a igualdade, a justiça social, o bem-estar dos
outros e a tolerância tenha desempenhado um papel no descontentamento em
relação às políticas neoliberais lançadas durante a crise, as quais minaram tal
compromisso. Embora na generalidade dos países europeus se tenha assistido ao
aumento dos protestos (Ortiz et al. 2013) em ligação com a política de
austeridade e orientações neoliberais das instâncias políticas da UE (Schömann
e Clauwaert, 2012; Degryse, 2012; Pochet e Degryse, 2013) a sua expressão e o
seu impacto foram diferenciados, não só no plano internacional como no plano
intranacional (considerando setores e grupos envolvidos), tendo em conta o
impacto também diferenciado da crise internacional e a diferente intensidade
das políticas de austeridade (Schömann e Clauwaert, 2012; Degryse, 2012; Welz
et al., 2014). Com efeito, os protestos mais intensos e de maior amplitude
observaram-se nos países mais profundamente afetados pela crise económica e
pelas políticas de austeridade neoliberais como a Espanha, a Grécia, a Irlanda
e Portugal. Acresce que nestes países (em Espanha indiretamente) a imposição da
austeridade neoliberal através da aliança de instituições não eleitas, isto é
da Troika (Banco Central Europeu/ Comissão Europeia/ Fundo Monetário
Internacional), agudizou o potencial de conflito na medida em que atacou
profundamente os princípios mais elementares da democracia, favorecendo um
lógica autoritária de exceção (Ferreira, 2011; Schömann e Clauwaert, 2012;
Degryse, 2012; Pochet e Degryse, 2013; Reis et al., 2013; Welz et al., 2014).
No plano do agravamento das condições objetivas, os protestos durante a atual
crise económica seriam uma reação dos grupos mais afetados pela crise e pelas
políticas de austeridade neoliberais, os quais expressariam o descontentamento
com o agravamento das suas condições económicas e sociais, tal como os grupos
mais frágeis como os desempregados e os trabalhadores precários, em particular
os jovens confrontados com níveis de desemprego sem precedentes (Chung et al.,
2013; Dietrich, 2013). Mas seriam também uma reação de outros grupos, como os
trabalhadores do setor público e do setor privado, contra a redução de emprego,
declínio do nível salarial e desregulação das relações laborais; dos reformados
contra o congelamento ou redução das pensões de reforma; e dos estudantes e
professores contra os cortes na educação.
Por outro lado, as diferenças institucionais, as diferentes tradições de
participação política e social e o grau de confiança nas instituições políticas
podem também contribuir para explicar algumas das diferenças marcantes dos
protestos nos países europeus, em particular quanto à sua relação com os canais
convencionais, tais como partidos políticos e sindicatos. Embora exista
evidência empírica de que a tendência geral de declínio da filiação nos
partidos políticos e nos sindicatos e diminuição da participação eleitoral
constitui um desenvolvimento observável num largo número de países (García e
Martín, 2010; Sánchez, 2011; Schåfer e Streeck, 2013; Campos Lima e Martin
Artiles, 2013), as tradições dos países são claramente contrastantes a este
respeito. Como é sabido, os países do Norte da Europa apresentam altas taxas de
participação nas eleições e as mais altas taxas sindicalização, em claro
contraste com os países do Sul da Europa; diferenças e contrastes que são ainda
mais salientes no caso da juventude (Peetz, 2010; Campos Lima e Martin Artiles,
2013). Tem sido sugerido que os países em que é menor a expressão do
descontentamento através dos canais convencionais são também aqueles em que
prevalece a ação autónoma dos novíssimos movimentos sociais, operando na
periferia das organizações políticas tradicionais e dos sindicatos (Bordogna e
Cella, 2002; García e Martín, 2010; Sánchez, 2011; Crouch, 2012; Campos Lima e
Martin Artiles, 2013). Simultaneamente, no que se refere aos países do Sul da
Europa, a prevalência de estratégias sindicais revelando um entendimento do
sindicalismo como movimento social (Gumbrell-McCormick e Hyman, 2013) e
centragem no poder de mobilização (Visser, 1995; 1996; Ortiz e Cebolla, 2010;
Gumbrell-McCormick e Hyman, 2013) sugerem a sua capacidade de desencadear
protestos e mobilizações, muito para além da sua capacidade associativa e de
organização.
2. A participação individual nas manifestações no contexto europeu: explorando
o Inquérito Social Europeu
2.1. Metodologia
Neste ponto exploramos a participação dos cidadãos europeus em manifestações de
protesto, com base nos dados do Inquérito Social Europeu (European Social
Survey, ESS), tendo em conta que, como se observou anteriormente, este tipo de
protesto/participação política (Barnes e Kaase, 1979) ocupou um lugar
proeminente no novo ciclo de mobilizações. O Inquérito Social Europeu, nas suas
sucessivas séries de 2002 a 2012, fornece uma informação substancial sobre a
participação individual nas manifestações de protesto, embora se circunscreva à
participação em manifestações legais. A análise a que procedemos tem
limitações, uma vez que não permite ter em conta as diferentes disposições
legais quanto à convocatória de manifestações nos países europeus facilitando
mais ou menos a participação dos indivíduos neste tipo de iniciativas. Por
outro lado, dado que a ESS não fornece informação sobre a agenda das
manifestações, nem indica se estas resultaram da iniciativa dos movimentos
sociais ou dos sindicatos, a análise considera a participação individual nas
manifestações legais, independentemente dos seus objetivos e das organizações/
dos movimentos que as convocaram.
Em primeiro lugar, comparamos as tendências de evolução da participação
individual nas manifestações nos países europeus, considerando os dados da ESS
desde 2002. Em segundo lugar, centramo-nos na análise detalhada da ESS 2012
incluindo, neste caso, um conjunto diverso de variáveis independentes com
potencial explicativo na variação da participação individual definida como
variável dependente. A opção pelo foco na ESS 2012 permite refletir, pelo menos
parcialmente, a participação individual no novo ciclo de protestos que se
afirmou na Europa em 2011, uma vez que os inquiridos são questionados sobre a
sua participação em manifestações nos últimos doze meses. A base de dados da
ESS 2012 que aqui examinamos resulta do inquérito a uma amostra representativa
da população de quinze países europeus, incluindo no total 39 081 pessoas
residentes com idade acima dos 15 anos, com uma dimensão amostral por país
participante superior a 1500 pessoas. Como a amostra de países varia de série
para série, a ESS 2012 não inclui a França e a Grécia, países que na ESS 2010
apareciam respetivamente na segunda e terceira posição na lista dos países com
maior participação nas manifestações, o que constitui também uma limitação,
dada a importância do protesto social nestes países no período mais recente, em
particular no caso da Grécia.
Consideraram-se nesta análise vários grupos de variáveis independentes, no
sentido de identificar os níveis e os perfis de participação segundo fatores
específicos e o seu potencial explicativo quanto à participação individual em
manifestações. A seleção das variáveis independentes toma em consideração
vários fatores, que passamos a descrever.
Fatores sociodemográficos e socioeconómicos
O primeiro grupo de variáveis compreende a influência dos fatores
sociodemográficos (sexo, idade e nível educacional); dos fatores
socioeconómicos relacionados com o mercado de trabalho, tais como o setor de
atividade (público e privado), o tipo de contrato de trabalho e a situação de
desemprego; e ainda o autoposicionamento subjetivo na estratificação social,
medido numa escala de 0 a 10, onde 0 representa uma posição social mais baixa e
10 representa uma posição social elevada.
A importância deste grupo de variáveis decorre da análise do ponto anterior.
Como vimos, os fatores sociodemográficos diferenciaram, até certo ponto, as
iniciativas de protesto dos novíssimos movimentos sociais pela participação dos
grupos mais jovens e mais escolarizados. Também a inserção no mercado de
trabalho, incluindo o estatuto no emprego e face ao emprego, constitui um
aspeto relevante no sentido de avaliar o seu impacto na participação
individual. Não só porque as iniciativas de protesto dos novíssimos movimentos
sociais tiveram um maior potencial de atração de trabalhadores precários e
desempregados e porque os protestos de iniciativa sindical tiveram maior
capacidade de mobilizar trabalhadores do setor público e privado, mas também
porque importa apreciar a participação dos indivíduos mais atingidos pela crise
económica.
Participação institucional
Outro grupo de variáveis refere-se à participação institucional medida através
da participação nas eleições nacionais e através da filiação sindical, no
sentido de avaliar se o défice de participação aos dois níveis influenciou a
participação individual nas manifestações. Procura-se avaliar em que medida a
crítica e o afastamento dos novíssimos movimentos sociais em relação a estes
canais convencionais se traduz na variação da participação individual em
manifestações; e em que medida a sindicalização referente aos velhos movimentos
sociais pode ter tido influência na variação dessa mesma participação
individual.
Satisfação em relação ao estado da economia e ao funcionamento da democracia e
confiança nas instituições democráticas
Neste grupo de fatores considera-se a influência do grau de satisfação com a
economia e a democracia, medidos numa escala de 0 a 10, onde 0 representa
grande insatisfação e 10 representa grande satisfação; e a influência da
confiança em relação às instituições políticas democráticas, visando também
captar a emergência de objetivos metapolíticos dos que participam nos
protestos, considerando a confiança nos parlamentos nacionais e no parlamento
europeu, medidas numa escala de 0 a 10, onde 0 representa muita desconfiança e
10 muita confiança nas instituições. Paralelamente, considera-se a fraca
participação nas eleições nacionais também como um indicador de desconfiança
nas instituições democráticas e de descontentamento com o funcionamento da
democracia. A seleção destas variáveis enquadra-se nas preocupações com o
défice de democracia real que constitui um tema central no estudo dos
movimentos sociais, sugerindo a influência do descontentamento e falta de
confiança naqueles domínios na variação nível de participação individual em
manifestações.
Ideologia e valores de justiça social
Considera-se a influência da ideologia política na participação individual em
manifestações de protesto (escala de 0 a 10 em que 0 representa a esquerda e 10
a direita). Esta é uma variável muito importante porque permite identificar o
sentido das motivações ideológicas e a sua influência na participação
individual nas manifestações. Considera-se também a influência dos valores
coletivos de solidariedade e justiça social, incluindo a opinião quanto ao
dever do governo reduzir a pobreza, avaliada numa escala de 0 a 10, em que 0
representa os valores individualistas e 10 os valores coletivos/solidariedade;
e também a opinião quanto ao dever do governo reduzir as desigualdades de
rendimento, avaliada numa escala de 1 a 5 (1 representa concordância e 5
representa discordância). Tendo sido a justiça social uma dimensão transversal
às iniciativas de protesto dos novíssimos movimentos sociais e dos sindicatos,
é de esperar que tenha uma elevada influência na participação individual em
manifestações.
Modelo de Análise
O estudo considera três tipos de análise:
a) Análise descritiva (ponto 2.2) ' Incidindo sobre as tendências de evolução
de participação nas manifestações desde 2002 nos países europeus considerados
individualmente; e sobre os níveis de participação segundo os fatores
anteriormente mencionados em 2012 nos países considerados individualmente.
b) Análise de Clusters(ponto 2.3) ' Considera a diferenciação/ o agrupamento de
países segundo constelações específicas de fatores associados à participação.
Esta análise considera apenas os que participaram nas manifestações e visa
identificar uma tipologia de participação
c) Análise de Regressão logística binomial (ponto 2.4) ' Visando examinar as
probabilidades explicativas de variáveis independentes sobre a dependente. A
variável dependente é a participação em manifestações, onde 0 representa a não
participação e 1 a participação. Neste caso, a análise considera o nível
europeu (conjunto agregado das observações dos países da amostra), uma vez que
o número de observações em cada país não permite que a análise seja
estatisticamente significativa considerando os países individualmente.
2.2. Análise descritiva: tendências de evolução e diferenças nacionais quanto
ao nível de participação nas manifestações, considerando as variáveis
independentes
Tendências de evolução da participação em manifestações em países europeus
2002-2012
Entre 2008 e 2012, os únicos países em que a participação nas manifestações de
protesto baixou foram a Bélgica e a Dinamarca; e os países em que a
participação não aumentou ou manteve valores próximos foram a Alemanha, a
Finlândia, a Holanda, o Reino Unido e a Polónia. A percentagem de participantes
nas manifestações de protesto subiu significativamente, entre 2008-2010, na
Grécia e na França e entre 2008 e 2012 nos restantes países. O crescimento mais
significativo registou-se em Espanha (de 15,9% para 25,9%), na Irlanda (de 6,5%
para 10,5%) e em Portugal (de 3.7% para 7,4%). Contudo, também os países
ricos' como a Suécia (7,3%), a Noruega (9,8%) e a Alemanha (9,1%), menos
afetados pela crise económica, se posicionaram acima da média europeia.
Diferenças nacionais quanto ao nível de participação nas manifestações, segundo
perfis socioeconómicos e demográficos
Neste ponto consideramos a análise da participação de grupos específicos nas
manifestações de protesto: trabalhadores do setor privado, que estarão
potencialmente mais ligados aos protestos relacionados com a austeridade e as
reformas laborais e seu impacto no setor; trabalhadores do setor público
(administração, educação e saúde) que estarão potencialmente mais ligados aos
protestos relacionados com a austeridade, redução de emprego, reformas laborais
e cortes salariais no setor público; grupos particularmente vulneráveis como os
desempregados e os trabalhadores precários; grupos como os reformados
potencialmente afetados pela redução da proteção social e cortes nas pensões de
reforma; e finalmente os estudantes potencialmente ligados a protestos
estudantis ou a protestos contra a precariedade e o desemprego juvenil. Embora
seja de admitir que uns e outros possam ter participado de forma conjunta em
manifestações de protesto antiausteridade articulando os diferentes motivos de
protesto, é também expectável que se tenham envolvido em protestos específicos
relacionados com a sua situação concreta e agendas específicas (ver Quadro_2).
Os trabalhadores do setor público e do setor privado
Em termos europeus (incluindo o conjunto dos países inquiridos), as médias de
participação nas manifestações nos grupos dos funcionários públicos da
administração (8,0%) e dos funcionários públicos do setor da saúde e da
educação (9,1%) são superiores à média geral de participação (7,0%) e à média
da participação no grupo dos trabalhadores do setor privado (5,2%). Na
generalidade dos países observa-se este fenómeno, com algumas exceções: a
Bulgária, em que a participação se situa abaixo da média europeia no setor
público e acima da média europeia no setor privado; e a Polónia, com níveis de
participação muito baixos e semelhantes nos setores público e privado
(inferiores a 3%). A Espanha destaca-se com os níveis de participação
extraordinariamente elevados no setor público, com 42% no grupo da
administração pública e com 50,9% no grupo da saúde e educação ' em ambos os
casos o valor é cinco vezes a média europeia ', sendo também o país com a
percentagem mais elevada de participação no setor privado, com 19,9%, quase
quatro vezes a média europeia neste grupo. A Alemanha, a Irlanda, a Noruega,
Portugal e a Suécia apresentam também valores de participação dos trabalhadores
do setor público (entre 10,0% a 15,0%) acima da média europeia neste grupo. Não
deixa de ser surpreendente que os países nórdicos e a Alemanha tenham
resultados de participação proporcionalmente semelhantes a alguns dos países
mais afetados pela crise, como Portugal e a Irlanda. Estes países destacam-se
igualmente por serem também aqueles em que o nível de participação dos
trabalhadores do setor privado ultrapassa a média europeia (5,2%): Espanha
(19,9%), Irlanda (9,7%), Alemanha (8,2%), Noruega (8,0%) e Portugal (7,8%).
Desempregados, trabalhadores temporários e reformados
Comparativamente com a média geral de participação nas manifestações de
protesto ao nível europeu (7,0%), a participação no grupo dos desempregados é
apenas ligeiramente inferior (cerca de 6,8%). Os países em que a participação
dos desempregados é superior à média europeia neste grupo são, em primeiro
lugar, a Espanha, com um nível elevadíssimo de participação, seguida da
Irlanda, Noruega, Alemanha, Portugal e Suécia Há que considerar a hipótese de
que a subida muito rápida e contínua do desemprego tenha favorecido a ação
coletiva dos desempregados, mesmo nos países com taxas de desemprego menos
elevadas.
Quanto ao grupo dos trabalhadores com contratos temporários, o seu nível de
participação em manifestações (9,1%) situa-se acima da média europeia de
participação geral (7,0%). A participação das pessoas com emprego temporário é
particularmente relevante em Espanha (31%) e em menor grau na Irlanda (12,9%),
na Noruega (12,3%), em Portugal (11,6%) e na Alemanha (11,1%).
Também no que se refere aos reformados, o nível de participação nas
manifestações (8,0%) está acima da média de participação geral a nível europeu,
fenómeno que se apresenta também na generalidade dos países presente, o que
significa que a média de participação no grupo de reformados é superior à média
de participação geral em cada país. Mais uma vez, são os países com maior
participação geral nos protestos os que também apresentam maior participação no
grupo dos reformados: Espanha, Irlanda, Noruega, Alemanha e Portugal.
Estudantes
Em 2012, o nível médio de participação para o grupo dos estudantes (6,4%) é
inferior à média geral europeia. Contudo, embora a Espanha apresente uma
participação muito elevada (23,4%), a Irlanda, a Noruega, a Alemanha, a Suécia
e Portugal superam o nível médio de participação neste grupo.
Diferenças geracionais
Em relação à idade (Quadro_4), a média de participação do conjunto dos países é
claramente superior à média geral de participação no que se refere ao grupo dos
16 aos 24 anos, o grupo mais jovem, seguido do grupo dos 25 aos 34; os grupos
dos 35 aos 49 e dos 50 aos 64 situam-se próximos da média; enquanto no grupo
mais idoso, isto é, com mais de 65 anos, a média de participação é bastante
inferior. Esta tendência é também observável considerando os países
individualmente, com exceção dos casos de Portugal, Reino Unido e Suécia, em
que a participação no grupo dos 25 aos 34 é mais elevada do que no grupo mais
jovem. Em Espanha os grupos mais jovens, dos 16 aos 24 e dos 25 aos 34, têm uma
elevadíssima percentagem de participação, de respetivamente 36,3% e 32,9%.
Diferenças nacionais quanto à filiação sindical
É conhecida a diversidade dos países europeus quanto à densidade sindical, em
particular o contraste entre os países escandinavos com elevadas taxas de
sindicalização e os países do Sul da Europa com taxas de sindicalização muito
baixas. Entre outras razões, a elevada sindicalização nos países escandinavos
tem a ver com o papel que os sindicatos desempenham na gestão das instituições
de proteção social e com o papel da negociação coletiva na regulação das
condições de trabalho. Por outro lado, também são relevantes as diferenças
entre países quanto às formas de ação sindical, com destaque para o maior
recurso às greves e manifestações nos países do Sul, recurso que, como se
observou, aumentou significativamente entre 2008 e 2012. Neste sentido, é
expectável que se observem diferenças entre os países em análise quanto à
relação entre a filiação sindical e a participação nas manifestações de
protesto.
A análise do Quadro_5 evidencia que no conjunto dos países europeus a
percentagem de participantes sindicalizados (30,4%) em termos médios é bastante
inferior à participação de não sindicalizados (49,4%). Como seria de esperar,
os países em que é mais elevada a participação de sindicalizados nas
manifestações de protesto são os países escandinavos, a Dinamarca (61,4%), a
Suécia (58,1%) e a Noruega (57,1%). Dois casos merecem uma atenção particular:
o caso de Portugal, com uma das mais fracas percentagens de participação de
sindicalizados nas manifestações de protesto (9,5%), e que regista a
percentagem mais elevada de participação de não sindicalizados (74,7%); e o
caso inverso do Reino Unido, em que a percentagem de participação de
sindicalizados nos protestos (40,2%) é elevada, enquanto a de não
sindicalizados (34,6%) se situa muito abaixo da média. Os países com a mais
baixa participação de sindicalizados são: Portugal, Bulgária e República Checa.
A informação sobre esta variável no que se refere a Espanha foi omitida da base
de dados integrada da ESS 2012, pelo que não pode ser considerada nesta
análise.1
Outro aspeto de interesse é o envolvimento dos ex-sindicalizados, a maioria dos
quais é constituída por trabalhadores reformados e pessoas mais idosas. Os
cortes nas pensões de reforma e as políticas de austeridade parecem também
contribuir para aumentar a inquietação e a incerteza entre os reformados.
A análise da participação dos membros dos sindicatos dos setores público e
privado nas manifestações permite uma comparação mais detalhada, embora os
dados não sejam significativos para alguns países (Quadro_6). Em primeiro
lugar, a participação no grupo setor público/administração está bem acima da
média na Bulgária, na Polónia, em Portugal, no Reino Unido, na Alemanha e na
República Checa. Em segundo lugar, na educação e saúde públicas, a participação
de membros dos sindicatos nas manifestações está acima da média em Portugal, na
Irlanda, Alemanha e Holanda. Em terceiro lugar, a participação nas
manifestações dos membros de sindicatos das empresas privadas é especialmente
relevante no caso da Polónia, Alemanha, Irlanda e Bulgária.
Em Portugal, em Espanha e na Irlanda observa-se uma forte e significativa
correlação (r.615) entre a filiação sindical de funcionários públicos e a
participação em manifestações, bem como entre filiação sindical e participação
dos trabalhadores dos setores públicos da saúde e da educação (r.771). Em
contraste, no conjunto dos países europeus ambas as correlações são muito
fracas e não são significativas (respetivamente r.056 e r.070).
Diferenças nacionais quanto às motivações metapolíticas e justiça social
Em geral, os participantes nas manifestações, comparados com aqueles que não
participam, confiam menos nos parlamentos nacionais e no parlamento europeu,
estão mais insatisfeitos com o estado da economia e com o funcionamento da
democracia e consideram mais pertinente a obrigação do governo quanto à redução
da pobreza e da desigualdade do rendimento.
Considerando apenas os participantes nas manifestações (Quadro_7) há que
sublinhar que se manifesta em média (conjunto dos países) uma desconfiança
moderada nos parlamentos nacionais. Os países nórdicos e a Bélgica são aqueles
em que os manifestantes apresentam maior confiança nos parlamentos nacionais,
embora não muito forte, contrastando com a desconfiança observada em todos os
outros países, em particular com a elevada desconfiança na Bulgária, em
Espanha, na Polónia e em Portugal. As causas podem ser muito diferentes,
atendendo à intensidade das políticas de austeridade, ao nível de desigualdade
social, ao nível de corrupção, e também ao acesso recente à democracia, no caso
dos países de Leste.
O conjunto dos países regista, em média, menor desconfiança no parlamento
europeu do que nos parlamentos nacionais. O mais interessante é a posição
relativa dos países: os países nórdicos, a Alemanha e o Reino Unido confiam
menos no parlamento europeu do que nos parlamentos nacionais; enquanto os
países do Sul, países de Leste e a Irlanda desconfiam menos do parlamento
europeu do que dos parlamentos nacionais. Os países com mais elevada
desconfiança no parlamento europeu são Portugal, a Polónia, a Espanha, a
Irlanda, a República Checa e o Reino Unido.
No conjunto dos países, observa-se que os manifestantes estão mais descontentes
com o estado da economia do que com o funcionamento da democracia. Como seria
expectável, os manifestantes dos países nórdicos e da Alemanha estão
moderadamente satisfeitos com o estado da economia, com destaque para a
Noruega, com o nível de satisfação mais elevado; e contrastando com a elevada
insatisfação em Portugal, na Espanha, na Bulgária e na Irlanda. Os países em
que os manifestantes estão mais insatisfeitos com a democracia são a Bulgária,
a Espanha e Portugal.
No campo da justiça social é notável a concordância quanto ao dever por parte
do governo de reduzir a pobreza e as desigualdades do rendimento, quer para os
que participam nas manifestações, quer para os que não participam, embora no
caso dos primeiros esta concordância seja mais vincada.Em todos os países é
surpreendente a homogeneidade de atitudes relativamente à redução da pobreza,
enquanto no que se refere à redução das desigualdades de rendimento a posição
dos países é um pouco mais diferenciada, sendo de admitir que o empobrecimento
da população resultante das políticas de austeridade tenha suscitado maior
convergência.
2.3. Análise de Clusters: uma tipologia de perfis de protesto na Europa
Neste ponto a análise compreende o conjunto das variáveis considerando o
conjunto dos países da amostra da ESS (em que o país é também uma variável),
visando identificar perfis de participação nas manifestações e recorrendo à
análise multivariada de clusters. Esta análise aponta para quatro perfis/
grupos, de acordo com as semelhanças e diferenças entre os perfis dos
participantes, suas opiniões e atitudes, permitindo também identificar os
países mais associados a cada perfil (Gráfico_1, Quadro_8). Neste caso a
análise considera apenas os indivíduos que participaram em manifestações.
GRUPO 1 ' O primeiro grupo é o que compreende mais manifestantes (34,6%). O
perfil deste grupo caracteriza-se por incluir principalmente trabalhadores
qualificados. É composto quase igualmente por homens e mulheres e a idade média
é de 44 anos de idade. A maioria deles são trabalhadores do setor privado,
seguidos por empregados dos serviços públicos de saúde e de educação e
funcionários da administração pública. Este é o grupo com o nível mais elevado
de filiação sindical (79%). Estas características sugerem que os manifestantes
aqui incluídos estarão mais ligados às manifestações de iniciativa sindical
relacionadas com as reestruturações e redução do emprego e impacto dos cortes
no setor público, na educação e na saúde.
Este é o grupo que se autoposiciona no plano mais elevado da estratificação
social (médio-alto) relativamente aos outros grupos. A orientação política
predominante neste grupo é moderada à esquerda. A satisfação com o estado da
economia é médio-baixa, mas a satisfação com a democracia no seu país é um
pouco mais elevada. Têm confiança média nas instituições sociais, como o
parlamento nacional, um pouco menos confiança no parlamento europeu, e a
maioria deles votaram nas últimas eleições nacionais (87%). Este grupo
evidencia uma elevada concordância em relação ao dever dos governos quanto à
redução da pobreza e bastante concordância em relação ao dever dos governos
quanto à redução da desigualdade de rendimentos. Este primeiro grupo compreende
predominantemente os manifestantes dos países escandinavos, da Irlanda, da
República Checa e do Reino Unido.
GRUPO 2 ' No segundo grupo (31,5%) incluem-se predominantemente trabalhadores,
os quais são menos qualificados do que os do Grupo 1. Tal como o Grupo 1, este
grupo composto quase igualmente por homens e mulheres e a idade média é de 44
anos de idade. A maioria são trabalhadores de empresas privadas e, em menor
parte, do setor da saúde e da educação. A filiação sindical deste grupo é
extremamente baixa (7,0%).
Este grupo posiciona-se num estrato social médio. Comparativamente com os
outros grupos, este posiciona-se mais à esquerda. Também é o grupo que revela
maior descontentamento com a democracia e menor confiança no parlamento
nacional e no parlamento europeu, revelando uma atitude muito crítica em
relação às instituições sociais. No entanto, este grupo não se distingue do
Grupo 1 quanto à participação nas eleições nacionais, que também é elevada
(80%). Este é igualmente o grupo que expressa a concordância mais vincada com o
dever de os governos contribuírem para a redução da pobreza e para a redução
das desigualdades sociais.
Outra distinção muito relevante neste grupo refere-se aos países que
compreende, incluindo em particular os mais afetados pela crise económica e
pelas políticas de austeridade: Bulgária, Irlanda, Espanha e Portugal.
GRUPO 3 ' O terceiro grupo representa 17,5% das pessoas que participaram em
manifestações de protesto e tem um perfil sociológico diferente no que toca à
sua composição, visto ser maioritariamente constituído por jovens, na sua
maioria estudantes e alguns desempregados. A idade média é de 23 anos.
Tal como no grupo anterior o autoposicionamento refere-se à inclusão num
estrato médio da estratificação social. A sua orientação política predominante
é de esquerda moderada. Este é o grupo com menor participação nas eleições
(44%), mas curiosamente manifesta satisfação com a democracia (moderada) e
confiança (moderada) nos parlamentos nacionais. Em contraste, embora
moderadamente, manifesta insatisfação com a evolução da economia e desconfiança
em relação ao parlamento europeu. Tal como os outros grupos, também o Grupo 3
reivindica o papel dos governos na redução da desigualdade de rendimentos e em
maior grau na redução da pobreza. O conjunto de países com maior participação
neste grupo inclui os mais afetados pela crise económica e pela austeridade,
isto é, a Irlanda, a Espanha, e Portugal mas também a Alemanha, a Noruega e a
Polónia.
GRUPO 4 ' Finalmente, o quarto grupo é o que tem menor representação (16,5%). É
composto, na sua maioria, por reformados (66%) e desempregados (25%); é o grupo
mais idoso, sendo a idade média os 62 anos; e é o grupo com um nível inferior
de habilitação escolar. O grupo distingue-se também pela elevada percentagem de
ex-sindicalizados (66,0%).
Posiciona-se num plano médio da estratificação social e politicamente na
esquerda moderada. Este é o grupo com maior participação nas eleições nacionais
(90%), embora expresse desconfiança (moderada) nos parlamentos nacionais e no
parlamento europeu e uma insatisfação moderada com a democracia. O grupo
distingue-se por ser aquele que apresenta maior grau de insatisfação com a
economia. Simultaneamente, apresenta um elevado grau de concordância com o
papel dos governos na redução da pobreza sendo, tal como o Grupo 2, o grupo que
reivindica mais ativamente o papel do governo na redução da desigualdade
social.
Os países mais representados neste quarto grupo são também os mais afetados
pela crise económica, pela austeridade, pelo desemprego e cortes nas pensões e
benefícios sociais como a Bulgária, a Espanha, a Irlanda e Portugal, mas também
a Alemanha e a Suécia.
2.4. Análise de regressão binomial: fatores determinantes das mobilizações ao
nível europeu
Como explicado no ponto 2.1, esta análise considera o nível europeu (conjunto
agregado de observações dos países da amostra).
Em primeiro lugar, em relação às variáveis sociodemográficas observa-se que é
maior a probabilidade de participação dos homens do que das mulheres nas
manifestações. Por faixa etária, a relação é linear: os jovens (16-24 e 25-34)
são mais propensos a participar em manifestações do que os menos jovens, o que
também é confirmado pelo facto de que os estudantes têm mais probabilidades de
participação do que os não estudantes. O nível de estudos também é relevante
quanto à probabilidade de participar nas manifestações, mas a sua relação não é
linear.
Em segundo lugar, de acordo com o estatuto socioeconómico, os indivíduos
empregados são mais propensos a participar nas mobilizações do que os não
empregados; a probabilidade de participação dos desempregados não é
significativa; e no caso dos reformados a probabilidade de participação é muito
baixa. A regressão não mostra nenhuma evidência significativa quanto às
diferenças e probabilidades no setor público e no setor privado. O
autoposicionamento na estratificação social influencia de forma moderada a
probabilidade de participar nas manifestações.
Em terceiro lugar, dentro da participação institucional os resultados são
distintos no que se refere à participação nas eleições nacionais ou à filiação
sindical. Não há correlação significativa entre a participação nas eleições
nacionais e a participação nas manifestações. Mas a filiação sindical já
apresenta uma correlação significativa, destacando-se que os filiados nos
sindicatos têm mais probabilidade de participar em manifestações (72%) do que
os não filiados; mesmo os ex-sindicalizados têm mais probabilidade de
participar em manifestações (10%) do que os não filiados em sindicatos.
Em quarto lugar, e surpreendentemente, o grau de satisfação com a evolução da
economia e da democracia não têm uma correlação significativa com a
participação nas manifestações, tal como o grau de confiança no Parlamento
Europeu e nos parlamentos nacionais não são variáveis significativas para
explicar a probabilidade de envolvimento nas manifestações. Em contraste, é
significativamente mais provável (29%) a participação nas manifestações
daqueles que afirmam uma ideia de justiça social, como é a ideia de que o
governo deve reduzir a pobreza. Mas a influência da opinião quanto ao papel do
Estado na redução da desigualdade de rendimento não é estatisticamente
significativa. Por último, a regressão também demonstra que os indivíduos que
estão ideologicamente posicionados à esquerda têm maior probabilidade de
participar nas manifestações do que aqueles que se posicionam à direita.
Conclusão
Na primeira parte deste artigo, abordámos em simultâneo as iniciativas de
protesto desencadeadas pelos novos movimentos sociais e pelos sindicatos,
considerando que ambas fazem parte do novo ciclo de protesto na Europa e em
outras partes do mundo, de resposta à crise internacional e à vaga de
austeridade neoliberal que lhe sucedeu. Ao identificar pontos de convergência e
diferenças de perspetiva e de ação entre os dois tipos de protestos procurou-se
dar um passo no sentido de contribuir para ultrapassar o divórcio entre as
abordagens do sindicalismo e dos novíssimos movimentos sociais, atendendo a que
o novo ciclo de mobilizações cria também novas oportunidades políticas no
sentido de aprendizagens recíprocas e de explorar sinergias, construindo a
unidade na diferença e maximizando a capacidade de resistência anticapitalista,
na era da austeridade. De facto, o sindicalismo só pode ganhar se, contra a
deriva burocrática, integrar a experiência recente dos novos movimentos sociais
quanto à flexibilidade e abertura organizativa, capacidade de articular
múltiplas agendas unificando-as, abrir espaço para a auto-organização popular,
capacidade de articular o local com o global e de mobilizar jovens e
trabalhadores precários.
Na segunda parte deste artigo, centrámo-nos na análise da participação
individual em manifestações, no contexto europeu, independentemente das suas
agendas e organizadores. A análise descritiva e a análise de clusters são as
mais ricas do ponto de vista das comparações nacionais, enquanto a análise de
regressão anula as diferenças nacionais e considera os cidadãos europeus no seu
conjunto. As ilações são, por isso, distintas.
Um dos aspetos principais a destacar refere-se ao papel na mobilização
individual da insatisfação com a economia e com a democracia e da desconfiança
em relação às instituições democráticas e fraca participação em eleições.
Atendendo à importância da exigência de democracia real no reportório dos
novíssimos movimentos sociais, seria de esperar a sua influência na
participação individual nas manifestações. A análise de regressão mostra,
contudo, que aquelas variáveis não têm influência significativa. Deste modo, as
motivações pós-materialistas e metapolíticas não explicam a probabilidade de
mobilização individual. Pelo contrário, no que se refere à filiação sindical, a
análise de regressão mostra que é significativa a maior probabilidade de os
sindicalizados participarem em manifestações do que os não sindicalizados,
apontando assim para a relevância dos velhos movimentos sociais na mobilização
dos indivíduos. Finalmente, no que se refere à justiça social, aspeto que
considerámos transversal à agenda dos novíssimos movimentos sociais e à agenda
sindical, enquanto a opinião quanto ao papel do governo na redução das
desigualdades não tem influência significativa, já a opinião quanto ao papel
deste na redução da pobreza tem influência significativa. Tal sugere que a
abordagem de justiça social que influenciou a mobilização individual se centrou
nas preocupações materialistas justificadas pelo crescente empobrecimento das
populações, via políticas de austeridade. O perfil europeu que emerge da
análise de regressão não deixa de ser revelador, quer quanto a este denominador
comum, indicativo da defesa do papel social do Estado, quer quanto à maior
probabilidade de participação nas manifestações dos que se posicionam na
esquerda política. Finalmente, a análise de regressão mostrou a influência da
variável idade nos protestos sociais, apontando para a maior probabilidade de
os grupos dos 16-24 e dos 25-34 anos participarem nas mobilizações de protesto.
A análise descritiva, embora não defina probabilidades, permitiu apreciar
algumas diferenças nacionais (anuladas na análise de regressão), designadamente
quanto à maior participação dos sindicalizados e dos votantes em eleições
nacionais e à participação em manifestações nos países nórdicos, em contraste
com os países do Sul da Europa. A análise de clusters revela-se a mais
interessante, uma vez que coloca em evidência configurações de perfis e
motivações de protesto e a sua incidência em grupos de países, mostrando que
nos países mais penalizados pela austeridade, em particular no Sul da Europa, a
configuração a que se associam inclui a mais elevada insatisfação com a
democracia e a mais elevada desconfiança nas instituições democráticas, além de
que exprimem maior concordância quanto ao dever dos governos de reduzir a
pobreza e a desigualdade de rendimentos. Esta análise é também particularmente
rica na medida em que permite distinguir grupos de trabalhadores tendo em conta
a sua qualificação e sindicalização, apontando para trabalhadores mais
qualificados e com um nível de sindicalização mais elevado no Norte da Europa
do que no Sul, tendo em comum um nível elevado de participação nas eleições,
mas divergindo no sentido em que no Sul a crítica às instituições democráticas
e ao funcionamento da economia e a ênfase na justiça social é muito mais
vincada. Finalmente, um dos aspetos surpreendentes da análise de clusters
refere-se ao grupo dos jovens visto que este, embora revele menor participação
nas eleições nacionais, manifesta menor insatisfação com a democracia e menor
desconfiança nos parlamentos nacionais do que os outros grupos, o que contraria
a hipótese da exigência da democracia real ter sido, para os mais jovens, um
catalizador da mobilização individual. A este resultado contrapõe-se outro que
revela a abordagem prioritária dos jovens em termos de justiça social,
reivindicando principalmente o papel dos governos na redução da desigualdade de
rendimentos e em maior grau na redução da pobreza.
Por último, importa salientar que a descoincidência parcial entre os fatores de
mobilização individual e a lógica dos novíssimos movimentos sociais,
designadamente quanto à confiança nas instituições democráticas e ao
descontentamento com o funcionamento da democracia, exige uma leitura cuidada.
Com efeito, as dinâmicas coletivas do protesto destes movimentos e do movimento
sindical não podem ser entendidas como somatório de comportamentos a atitudes
individuais. Por outro lado, a ESS só muito limitadamente dá conta do nível
real de participação dos indivíduos nos protestos coletivos. Embora as amostras
nacionais sejam representativas da população, a sua dimensão não reflete a
amplitude das manifestações envolvendo 300 000 indivíduos ou muito mais, como
foi o caso em Espanha e em Portugal, as quais incluíram como reivindicações
centrais a democracia real e a rutura com a austeridade.