As culturas de desenvolvimento e o local em Timor-Leste
Introdução
É sempre longo e árduo o caminho para mudar a mentalidade de uma sociedade, de
modo a que as pessoas se transformem em agentes de desenvolvimento e colaborem
para ultrapassar os obstáculos. (Xanana Gusmão, 2012a)
Desde a sua introdução formal, nos meados do século xx, o pensamento e práticas
modernos sobre desenvolvimento passaram por diversas fases, confrontando-se com
diferentes tipos de crítica.1 O paradigma do desenvolvimento neoliberal
prevalecente na atualidade, que surgiu após o declínio do neo-Keynesianismo nos
anos 1980, tem sido criticado pela sua falta de eficácia em termos de
erradicação da pobreza, assim como pela acumulação de consequências
imprevistas. No centro dessas várias limitações encontra-se um imaginário
económico aparentemente desligado das realidades contextuais em que opera.2 Uma
conceção de estratégias feita com base em abstrações e pressupostos sobre o
modo como o desenvolvimento deveria funcionar e o que deveria promover, mais do
que numa sólida análise sociopolítica, histórica e cultural das comunidades
onde se vai intervir, tolhe a capacidade de resposta das operações
internacionais de desenvolvimento à multiplicidade de necessidades e aspirações
da população. Esta produção externa de conhecimento gera relações de poder nas
quais os saberes, as instituições e a identidade locais são subordinados ao
conhecimento científico (Escobar, 1995: 9-10).
O presente artigo incide num aspeto desta produção externa do conhecimento: a
forma como a cultura é perspetivada nas intervenções realizadas em Timor-Leste
no domínio do desenvolvimento. Nos anos 1990, a análise dos modelos de
desenvolvimento internacional revelou o seu desconhecimento e desinteresse
relativamente aos saberes locais (Hobart, 1993). Caracterizadas como um
sistema de intervenções técnicas aplicáveis de forma mais ou menos universal
de cima para baixo, as atuais operações internacionais de desenvolvimento
apresentam-se como um motor de modernização (Escobar, 1995: 44) ' uma
modernização que pressupõe não apenas a reforma das políticas económicas, mas
também a reforma dos enquadramentos legais, políticos e institucionais, para
além da transformação social (Williams and Young, 2013: 109-112). Planos de
desenvolvimento com este tipo de formato não têm em consideração a cultura
local, a não ser que esta constitua um obstáculo ao impulso de modernização. Os
compromissos entre o objetivo do desenvolvimento e a manutenção da cultura
local têm sido, em geral, decididos pelos peritos em desenvolvimento e pelos
líderes locais, no cumprimento do pressuposto essencialista de que é
preferível ser rico e feliz do que pobre e tradicional (Sen, 1999: 31).
Esta aceitação por parte dos líderes locais de sacrificar aspetos da cultura
local em troco de crescimento económico explica-se pela influência das
organizações, dos peritos e doadores internacionais. Em contraste com as
versões mais cruas de imperialismo3 que caracterizavam o colonialismo, os
atuais modelos de desenvolvimento funcionam através da naturalização de
paradigmas neoliberais de crescimento e de autodeterminação individual visando
um progresso definido externamente. Os políticos locais podem ser aliciados
pela máquina antipolítica, que procura apresentar as instituições estatais
como instrumentos imparciais no provimento de serviços sociais e na
implementação do crescimento (Ferguson, 1994). Além disso, os líderes das
populações indígenas sentem dificuldade em libertar-se de um determinada imagem
da economia, imaginando-a como uma esfera autónoma, dotada de uma dinâmica
interna (de processos de produção, consumo e circulação de moeda) e distinta da
sociedade (Mitchell, 1999: 92-94). Este imaginário, que se desenvolveu no
Ocidente na primeira metade do século xx, domina hoje em dia os debates
internacionais no âmbito da macroeconomia, da ajuda e do desenvolvimento. Sob
orientação de líderes externos, os políticos locais podem, assim, optar por
subalternizar aspetos dos saberes e da cultura locais.4
No princípio do século xxi, no entanto, as agências internacionais de
desenvolvimento começaram a demonstrar mais interesse pelas culturas locais e
pelos saberes subalternos (Shaw, 2008: 179-181). No trabalho de campo realizado
em Timor-Leste, em 2011, a autora encontrou de facto agências de
desenvolvimento que, no processo de construção do Estado deste país, procuravam
compreender, preservar e até ajustar os seus programas aos saberes e à cultura
locais. A maioria das agências parecia ciente das limitações dos paradigmas de
crescimento padronizados, das restrições à sua aplicabilidade em Timor-Leste, e
procuravam ajustar os seus programas, tornando-os sensíveis às questões
culturais. As oficinas sobre apropriação' local deram lugar a seminários sobre
saberes locais, manifestando um interesse reforçado na ação, cosmologias e
cultura locais. Contudo, ao invés do mundo perfeito de diversidade e diferença
imaginado por escritores do pós-desenvolvimento, as entidades doadoras mantêm
sob a sua alçada a elaboração de estratégias de desenvolvimento. Assim, este
artigo irá demonstrar que são as agências de desenvolvimento, e não as
comunidades, que decidem até onde podem avançar as concessões à cultura local.
O presente artigo procura apurar como funciona este processo de hibridização.
Quais são os aspetos da cultura local que as agências das Nações Unidas (ONU)
incorporam nos seus programas? Até onde irá a recetividade dos responsáveis
pelo programa de desenvolvimento, e quais os limites da sua capacidade para
adaptar as estratégias delineadas? Será que este processo de ajustamento de
políticas produz um reflexo adequado e fiel da cultura local? Este artigo
sustenta que os esforços das agências de desenvolvimento no sentido de adotar
uma maior sensibilidade cultural nas suas ações em Timor-Leste resultaram, no
terreno, numa narrativa essencialista da diversidade cultural. Além disso, a
disposição por parte destas agências para adaptarem os seus programas não vai
ao ponto de alterar o modus operandi das agências da ONU nos casos em que
existem tensões mais fundamentais entre as culturas de intervencionismo e as
preferências culturais locais.
O ponto de partida é uma abordagem crítica da noção de cultura com o objetivo
de contestar a tendência para a considerar um conceito uniforme e
universalmente reconhecido. Estabelecida a complexidade do conceito, este
artigo ilustra a forma como a cultura local tem sido interpretada, processada e
incorporada em programas de desenvolvimento da ONU em Timor-Leste. Em seguida,
identificam-se e exemplificam-se algumas limitações da postura cultural das
agências da ONU em Timor-Leste.
Impõem-se, contudo, algumas advertências: este texto procura expor as tensões e
as formas de adaptação cultural recorrendo a exemplos, e não de forma
abrangente. Os exemplos foram selecionados a partir de entrevistas realizadas
em trabalho de campo em Timor-Leste em 2011. Deste modo, a análise subsequente
não pode nem pretende tirar conclusões sobre o grau de sensibilidade cultural
dos programas da ONU em Timor-Leste em geral. Para além disso, o processo de
hibridização é analisado no que diz respeito a erros de interpretação, com base
em estudos antropológicos. Sendo assim, este artigo não se inscreve na tradição
da antropologia cultural ou social propriamente dita; recorre a fontes
antropológicas para demonstrar uma desconexão entre diferentes interpretações
da cultura timorense, e não para apresentar as suas próprias interpretações da
diversidade cultural timorense.
Cultura
Não existe, no campo das artes e humanidades, uma única disciplina que se possa
conceber sem ter em consideração a cultura. No entanto, a análise deste
conceito desafia o recurso a qualquer espécie de metodologia experimental na
procura de leis, possibilitando apenas uma análise interpretativa na procura
de significados (Geertz, 2001). O conceito permanece, portanto, evasivo, visto
que não pode ser convincentemente examinado na sua totalidade. Na ciência
política, cultura transformou-se em sinónimo de identidade, um conceito
frequentemente utilizado para denotar distinção social (Benhabib, 2002: 1).
Para alguns, a cultura é um conceito lato, abarcando valores partilhados,
significados, símbolos e costumes de um povo (Sewell, 1999). No entanto, há
fortes discrepâncias entre os diferentes elementos de definições tão
abrangentes como estas. As práticas culturais podem ser observadas como
característica de uma determinada comunidade, enquanto a agregação de práticas
e símbolos num sistema de significados' pressupõe não apenas a interpretação,
mas também a generalização de que essa interpretação é partilhada pelos
indivíduos que constituem esse grupo. A conceção de cultura-como-sistemas
fundamenta-se, portanto, no pressuposto questionável de que os significados
culturais são normalmente partilhados, fixos, interligados e profundamente
sentidos (ibidem: 47).
Parece, pelo contrário, que a cultura atribui significados; é apreendida,
sendo, portanto, arbitrária, e não irrevogável (Inglis e Hudson, 2003: 2-3). As
comunidades são compostas de indivíduos que, de diversas formas, têm
experiências, estabelecem definições, interpretam e dão sentido ao seu meio
cultural (Hall, 1980: 59). Assim, a realidade é negociada em comunidades que
não são consensuais (Bhaba, 1994). A cultura não se revela em ações e sistemas
de crenças individuais, mas sim na partilha de similaridades e padrões que se
observam dentro de um mesmo grupo. Quem estuda uma cultura ' o observador '
procura, portanto, destrinçar padrões comuns nas interações sociais. E é aqui
que mais claramente têm origem os equívocos na interpretação da cultura. Os
observadores, tal como os nacionalistas, forjam a unidade da diversidade, a
coerência da incoerência, e a homogeneidade da dissonância narrativa
(Benhabib, 2002: 8).
Para descodificar uma cultura, o observador identifica o grupo de amostragem,
estuda o comportamento dos seus membros e, com recurso a estatísticas, compara
as observações, para determinar semelhanças e divergências. Enquanto um
exercício académico deste teor se confrontaria com potenciais questões
metodológicas,5 os indivíduos e organizações que operam em contextos
desconhecidos tendem a generalizar a partir das suas observações, de modo a
antever as respostas societais. Contudo, apesar de as previsões baseadas em
generalizações possibilitarem algumas formas de interação social, os
estereótipos resultantes constrangem ou inibem outras formas.6 Mesmo que se
conseguissem evitar todos os potenciais erros metodológicos na observação e
interpretação da cultura, a procura do observador por padrões comuns levaria,
ainda assim, à incapacidade de reconhecer os fatores de desunião no seu objeto
de estudo. Como nos recorda Edward Said (2001), os confrontos de culturas são
mais pronunciados no âmago das civilizações do que entre estas. Na verdade, os
estudos mais convincentes da cultura de Timor-Leste revelam as diferentes
facetas da sua diversidade e dinamismo, retratando a cultura não como um padrão
fixo e demarcado, mas antes a coexistência de diferentes padrões, todos eles
num fluxo constante.7
No que diz respeito às operações da ONU, a procura de unidade cultural pode ter
consequências de monta. Ao intervir noutros países, a ONU altera o meio social,
económico e político em que opera. Na perspetiva da sociologia, é
particularmente fácil desencadear transformações irreversíveis em comunidades
indígenas, dadas as fortes ligações entre as suas estruturas económicas e de
parentesco (Billington et al., 1991: 65-66). Esta falta de diferenciação entre
a esfera económica e a social traduz-se em sistemas políticos complexos. Ao
impor reformas económicas e políticas, mesmo que de pequena dimensão, às
sociedades indígenas, a intervenção externa pode, assim, ter consequências
políticas de grande dimensão. Ou seja, o resultado mais problemático das
intervenções no domínio do desenvolvimento poderá não ser a sua falta de
eficácia, mas antes a sua capacidade para transformar irreversivelmente as
sociedades indígenas.
A cultura afeta todas as áreas envolvidas no sucesso ou insucesso das políticas
de desenvolvimento: o tecido social, a estrutura económica e o enquadramento
político das comunidades onde decorre a intervenção. Delinear programas de
desenvolvimento adaptados à cultura das comunidades é, portanto, essencial para
selecionar, alcançar e manter resultados, em termos de desenvolvimento, que
beneficiem essas comunidades. Tal implica, no entanto, que as agências de
desenvolvimento analisem constantemente a sua perceção da cultura local, de
modo a assegurar uma resposta adequada aos meios culturais em permanente
transformação em que intervêm. Este artigo propõe-se contribuir para esta
análise, demonstrando que não há nada de inevitável na forma como a ONU
interpreta, processa e incorpora a cultura de Timor-Leste nos seus programas.
Cultura e desenvolvimento
Os Estudos Críticos em Desenvolvimento encaram o desenvolvimento como a própria
negação da cultura indígena. As políticas de desenvolvimento padronizadas
fundamentam-se na crença da linearidade do progresso, sendo a modernização a
chave para lhe abrir a porta (Rose et al., 2006). As culturas, ao invés, podem
assumir qualquer formato, e raramente respeitam os requisitos da modernização.
E para completar a quadratura do círculo, argumentam os especialistas que
adotam esta perspetiva, os processos de desenvolvimento são ajustados de modo a
marginalizar ou eliminar os aspetos culturais no caminho da modernização
(Escobar, 1995: 44).
Considerando a variedade de potenciais significados associados ao conceito de
desenvolvimento, o verdadeiro poder do Ocidente não está na robustez da sua
economia e no seu poderio tecnológico [...], mas no seu poder de definir
(Sardar, 1999: 44). A partir do colapso do socialismo, desenvolvimento' passou
a ser visto, no discurso do Norte, como sinónimo de um crescimento aferido à
escala nacional (Munck, 1999: 197). Em contraste, subdesenvolvimento' pode
traduzir-se por pobreza e atraso tecnológico. As estratégias de desenvolvimento
baseadas na corrente de pensamento dominante têm por objetivo o crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB), a transferência de tecnologia, a integração nos
mercados mundiais, a liberalização económica e aparelhos de Estado reduzidos.
Isto repercute-se num processo unidirecional de aprendizagem para países com
pequenos ou médios rendimentos, nos quais educar e reformar as comunidades
indígenas para que estas possam alcançar o nível de vida ocidental constitui o
Fardo do Homem Branco (Easterly, 2006). Na perspetiva do modernizador, a
cultura local constitui provavelmente um entrave a esta missão e irá retardar o
progresso. Deste ponto de vista, a cultura indígena poderia ser vista como uma
carapaça oca, pré-moderna, feita de superstição e sistemas de crenças
espirituais arcaicos contrários aos requisitos de eficiência de crescimento do
neoliberalismo (Tucker, 1999: 19); e, em consequência, o modernizador iria
tentar subordinar a cultura indígena e as necessidades dos grupos subalternos
aos imperativos do desenvolvimento.
Os estudos sobre governabilidade já realizados demonstram como se desenrola
este processo de subordinação e marginalização (Foucault, 1991). Contudo, se as
sociedades do Norte em geral adotaram subconscientemente as exigências dos
paradigmas neoliberais de crescimento, no Sul global verifica-se uma maior
resistência a este processo de sujeição. Em diversas partes do mundo,
sociedades indígenas opuseram resistência a perspetivas neoliberais de
desenvolvimento na medida em que estas punham em causa os costumes e a moral
locais, e em vez de aceitar a superioridade dos modelos internacionais,
impuseram as suas próprias estratégias de desenvolvimento.8
Os seus líderes políticos, pelo contrário, estão expostos à influência
socializadora das organizações internacionais,9 compostas pelos mecanismos de
controlo da ação política dos doadores. Países saídos de conflitos violentos
dependem frequentemente de ajuda, a qual pode servir para impor reformas
económicas através das condições associadas. No caso de Timor-Leste, verificou-
se que apesar da independência nacional, a independência no tocante à definição
de políticas não existia ainda nos primeiros anos de soberania (Moxham, 2008:
12-13). Em consequência, os programas de desenvolvimento iniciais dos governos
pós-independência de Timor-Leste seguiram rigorosamente o guião neoliberal do
Banco Mundial, das agências da ONU e de doadores individuais.
Contudo, o recente influxo de rendimentos do petróleo aumentou a margem de
manobra de Timor-Leste, dando-lhe a possibilidade de explorar variantes de
desenvolvimento de conceção própria. O papel de Timor-Leste no g7+ e no Acordo
de Busan aponta para um desvio das estratégias de desenvolvimento delineadas no
Norte. O g7+ e o Novo Acordo sobre Desenvolvimento demonstram que as lideranças
políticas de Estados frágeis põem em causa a aplicabilidade de modelos de
desenvolvimento do Norte em contexto de pós-conflito violento. Confrontados com
um conjunto de problemas idênticos, os líderes de Estados frágeis aperceberam-
se de que a sua própria experiência acumulada em conflitos violentos e
respetivas consequências sociais constituía um recurso tão valioso como o
conhecimento externo (Foreign Policy, 2012). Em Timor-Leste, o empenho na
capacidade de encontrar soluções a nível local para problemas de governação,
partindo de noções locais de autoridade, legitimidade e comunidade, bem como
dos próprios costumes, métodos de resolução de conflitos e tradições
socioeconómicas, teve como resultado a timorização' da liderança política
nacional10 ' demonstrando a transmissão de poder de formas de intervenção
internacional para formas de autoridade legítimas a nível local. Ao nível micro
das operações de desenvolvimento, isto reflete-se na resistência e rejeição por
parte dos grupos-alvo' locais, o que retira poder aos agentes de
desenvolvimento no terreno, obrigados a relatar o fracasso das suas diligências
aos doadores.
Na terminologia de Foucault, constata-se que a indústria do desenvolvimento se
confronta com o reaparecimento de saberes subjugados' que emanam de sociedades
anteriormente marginalizadas (Foucault, 2005: 6-8). Tal como algumas sociedades
indígenas resistem ao processo de sujeição a racionalidades desenvolvimentistas
internacionais a nível local, também organizações como o g7+ refletem a
resistência política por parte de países marginalizados a nível internacional.
Em vez de, em concessões sucessivas, competirem uns com os outros pelos parcos
recursos para o desenvolvimento, a aliança g7+ está a tentar construir um
baluarte contra o imperialismo da ortodoxia do desenvolvimento padronizado.11
Na realidade, a pressão de competir por recursos limitados passou dos países
beneficiários para as agências de desenvolvimento. Estas competem entre si,
obrigadas a mediar entre as expectativas dos seus doadores e os seus grupos-
alvo'. Dado o insucesso do desenvolvimento quando confrontado com resistência a
nível local, as iniciativas para o desenvolvimento têm de ser incorporadas na
cultura local, para alcançar a sustentabilidade e eficácia que contribuem para
a boa imagem das agências de desenvolvimento perante os doadores. Ou seja, a
tendência para a resistência assumida dos marginalizados coloca a indústria do
desenvolvimento sob pressão para lhe dar resposta.
Ignorar ou suprimir os saberes indígenas não é uma opção viável, como se
constatou com a recente onda de (violenta) resistência contra modelos de
desenvolvimento neoliberais, da Primavera Árabe ao Brasil. Em não menor grau, o
reacender dos conflitos em Timor-Leste em 2006 e 2007 constitui um duro alerta
para os perigos de polarizar e marginalizar estratégias de desenvolvimento
(Moxham, 2008). Para mitigar o descontentamento e evitar a escalada de
conflitos violentos, as agências de desenvolvimento têm de ajustar os seus
programas a noções locais de justiça social, costumes, tradições e crenças.
Idealmente, a necessidade de manter a sua relevância e uma aparência de sucesso
por parte das agências de desenvolvimento implicaria a transferência das
culturas locais para o centro das políticas de desenvolvimento. No entanto, a
realidade poderá ser bem mais cínica, no respeitante ao reconhecimento das
culturas indígenas por essas políticas de desenvolvimento. A cultura abrange um
conjunto de tecnologias para governar os sujeitos, envolvendo hábitos, códigos
morais e ética (Rose et al., 2006: 97) ' pelo que, se devidamente manipulada,
poderá ser utilizada como um portal para cimentar o domínio externo sobre os
beneficiários das ajudas. Em vez de marginalizar a cultura indígena, promover a
sua transformação numa versão híbrida moderno-indígena poderá mais facilmente
assegurar a influência do Ocidente no resto do mundo (Duffield, 2013).
A interpretação e o processamento da cultura local em operações de
desenvolvimento
Seja o que for que tentemos fazer, a cultura local vai eventualmente pôr-lhe
fim.12 É palpável a frustração ' dos dois lados ' pelo fracasso das
estratégias de desenvolvimento em Timor-Leste. Os entrevistados das agências da
ONU declararam ter sido coagidos por tabus da cultura timorense na aplicação
das estratégias de desenvolvimento. Muitos timorenses, por seu lado, sentiram-
se mais como alvos' do que participantes, por terem sido excluídos da
elaboração da agenda e programas de desenvolvimento (Carroll-Bell, 2012: 39-
40), e muitos sentem, além disso, que não obtiveram quaisquer benefícios
palpáveis da presença da ONU no seu país.13
Em Timor-Leste, o intercâmbio entre a comunidade local e a internacional é
limitado. Na experiência dos responsáveis pelos programas de desenvolvimento, a
interação com os habitantes locais reduz-se, em geral, a timorenses com três
tipos de funções: o político local, os prestadores de serviços (empregada de
limpeza, jardineiro, segurança, empregado de balcão) e o funcionário local
designado para integrar a equipa. Qualquer que seja a transferência de
conhecimentos nestas interações, será sempre fortemente unilateral.
Capacitação' foi a expressão adotada para designar o ensino de procedimentos
da ONU a funcionários locais e a explicação de conceitos internacionais de
desenvolvimento, segurança e construção do Estado a parceiros locais ' tendo
sido elevada a prioridade política no plano de retirada da Missão Integrada das
Nações Unidas em Timor-Leste (UNMIT).14 Uma exceção de monta na regra da
transferência unilateral do conhecimento advém da posição dos funcionários
políticos no sistema da ONU. O seu trabalho exige que eles viagem pelo país,
socializando com as diferentes comunidades e recolhendo informações sobre
reclamações, exigências e aspirações que serão incorporadas na elaboração da
estratégia política da ONU. Mas até este elo entre o local e o internacional é
ténue, porque o trabalho dos funcionários políticos exige que eles passem mais
tempo no quartel-general local da ONU do que entre as comunidades.15
Timor-Leste possui grande riqueza de saberes locais, que vão de noções
espirituais do mundo físico, reunidas no sistema de crença tara bandu,16 a
técnicas tradicionais de resolução de conflitos17 e métodos tradicionais de
governação.18 Recorrendo a um conjunto de exemplos, apresenta-se em seguida uma
análise da capacidade e da disposição da ONU para incorporar nos seus programas
saberes subjugados, assim como outros aspetos da cultura local.
Um evidente foco de tensão entre o saber local e os paradigmas
desenvolvimentistas é o conflito entre sustentabilidade ecológica e eficiência
económica.19 Timor-Leste tem o seu próprio saber ecológico, associando
conservação e gestão dos recursos naturais a crenças espirituais: o tara bandu
(de Carvalho and Coreia, 2011: 55-60), baseado na ideia de um equilíbrio entre
as necessidades humanas e as do meio ambiente. Os paradigmas
desenvolvimentistas do Norte, pelo contrário, tendem a dar prioridade ao
crescimento macroeconómico, tanto à custa das necessidades humanas como das do
meio ambiente. No entanto, e para não se cair numa versão idealizada dos
costumes locais, é de notar que em Timor-Leste os métodos agrícolas
tradicionais condicionam o grosso da exploração agrícola da ilha a uma
agricultura de subsistência, perpetuando uma recorrente situação de insegurança
alimentar.20 Como três quartos da população trabalham em agricultura de
subsistência (Moxham, 2008: 12), os esforços internacionais de desenvolvimento
no setor agrícola são particularmente relevantes, não apenas para assegurar a
segurança alimentar, mas também para criar oportunidades de emprego viáveis. As
agências da ONU estão, portanto, empenhadas numa variedade de projetos nas
áreas de desenvolvimento rural, reforma agrícola e segurança alimentar. O
primeiro exemplo selecionado neste artigo centra-se no que, na perspetiva do
responsável pelo programa de desenvolvimento, é o aspeto mais provocador do
saber local: a inclusão de crenças espirituais e cosmologias animistas.
Apoiadas em paradigmas científicos, as perspetivas sobre desenvolvimento do
Norte tendem a descartar as cosmologias indígenas, encarando-as como mito,
irracionalidade ou superstição (Hobart, 1993). Logo, um sistema de crenças como
o tara bandu, com as suas várias dimensões espirituais, representa um desafio
para os próprios alicerces da ortodoxia do desenvolvimento prevalecente a nível
internacional. Com o passar do tempo, no entanto, as agências da ONU
interiorizaram a necessidade de adaptar as suas iniciativas aos sistemas de
crenças locais, tornando-os, assim, aceitáveis à população indígena. Em Timor-
Leste, isto significa que os programas de desenvolvimento têm de saber lidar
com uma cosmologia envolvendo animais sagrados, antepassados místicos,
fazedores de chuva e curandeiros mágicos.
Um estudo sobre a insegurança alimentar de Timor-Leste realizado no âmbito do
Programa Alimentar Mundial em 2005 demonstrou que, para além dos métodos
agrícolas ineficazes e da falta de equipamento e força de trabalho, os roedores
constituíam um problema de monta no ciclo de produção alimentar (United Nations
World Food Programme, 2005: 39). Estima-se que a infestação de roedores e de
gorgulho é responsável pela destruição de cerca de 30 por cento das
colheitas.21 Sendo assim, na perspetiva das agências de desenvolvimento, uma
solução eficaz do problema passaria pela eliminação das populações de roedores
especificamente perniciosos. No entanto, na modalidade Na'i-Raiklaran (Deus da
Terra) (Brandao, 2011: 13) do tara bandu de Timor-Leste, os ratos são animais
sagrados. Segundo uma lenda, Tartehi-Lekitehi, um antepassado, foi transformado
em roedor e encontrou uma nascente ao escavar, salvando assim a população da
ilha (de Carvalho, 2011: 80). Perante esta crença local, a ONU procurou
encontrar formas de limitar os prejuízos causados pelos roedores sem matar os
animais.22 Assim, várias agências da ONU juntaram os seus recursos para
patrocinar a construção de silos para 400 famílias em Ermera e Oecusse, dois
dos distritos mais pobres de Timor-Leste.23 Por exemplo, em 2012 o Fundo
Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA) patrocinou um Projeto de
Armazenamento de Milho no valor de 5,6 milhões de dólares.24
À primeira vista, patrocinar a construção de silos pode considerar-se uma forma
de melhorar a segurança alimentar em Timor-Leste que demonstra alguma
sensibilidade cultural, já que a eliminação da população roedora local
constituía um tabu cultural. Contudo, uma análise mais aprofundada da difusão
da crença Na'i-Raiklaran dá a entender que a resposta institucional terá
resultado de uma generalização excessiva, com consequências adversas na
segurança alimentar e na saúde da população. De facto, verificou-se que no
distrito de Maliana algumas comunidades locais adotaram a caça aos ratos em
resposta à infestação (de Carvalho, 2011: 57), enquanto outras, nomeadamente as
populações de Bobonaro, Ainaro e Covalima, se alimentavam de ratos em períodos
de grave escassez alimentar (United Nations World Food Program, 2005: 52). Ou
seja, é evidente que a crença na santidade dos roedores não se estende a toda a
ilha, demonstrando que o patrocínio de sistemas de armazenamento pela ONU
decorre de uma generalização cultural, mais do que de uma análise ponderada da
diversidade de culturas a nível local.
De facto, esta falta de uniformidade aponta para uma heterogeneidade cultural
muito mais acentuada. Em primeiro lugar, enquanto sistema de crenças, o tara
bandu tem diversas tradições (lisan), englobando o Na'i-Tasi, a crença no mar e
nos seus habitantes (crocodilos, tartarugas, polvos, tubarões), o Na'i-
Raiklaran, a crença na terra e em alguns recursos naturais, como as pedras, as
montanhas, o solo, os poços, as árvores e o bambu, e o Na'i-Lalehan, a crença
no céu e nos seus componentes (o Sol, a Lua e as estrelas) (Brandao, 2011: 13).
Dadas as divergências do culto praticado pelos diferentes grupos sociais dentro
deste sistema de crenças, compreende-se o facto de certas comunidades caçarem
ratos, enquanto outras os consideram sagrados. Em segundo lugar, tara bandu foi
posto de lado durante as duas décadas de ocupação indonésia (1979-1999), tendo
apenas sido restaurado pelo governo e por organizações não governamentais após
a independência, com o objetivo de banir práticas agrícolas prejudiciais
(Shepherd, 2009: 332) ' uma recuperação estratégica que serviu para renovar o
sistema tradicional de crenças, colocando de lado certos elementos, e inserindo
outros. As narrativas que sancionavam relações de género baseadas na exploração
ou no trabalho infantil foram postas de lado, e substituídas por uma narrativa
mais abrangente de poder estatal, responsabilidade comunitária e construção
nacional (ibidem: 333). Reformulado como veículo dos interesses do Estado, o
tara bandu era agora utilizado como um contrato social para a comunidade.25 Não
admira, assim, que esta cosmologia modernizada tenha dado origem a diversos
conjuntos de regras comunitárias ao longo do território de Timor-Leste. O seu
caráter prescritivo dividiu algumas comunidades no tocante à restauração da
proibição de determinadas técnicas agrícolas. Noutras comunidades o tara bandu
já não pôde ser restaurado, na medida em que as filiações religiosas da
população se tinham alterado e eram agora incompatíveis com esse tipo de
espiritualidade.26
Ignorar esta heterogeneidade cultural teve sérias desvantagens para a população
afetada. Dado o predomínio da agricultura de subsistência, a aquisição e
distribuição de silos à prova de roedores estendeu-se por bastantes anos e
continua por completar; e entretanto, as infestações de ratos perpetuam a
insegurança alimentar. Não menos preocupante é o facto de os roedores serem
portadores de doenças que se espalham pelas comunidades, muitas das quais não
possuem ainda acesso ao saneamento básico. Ou seja, apesar de as soluções
compatíveis com o tara bandu continuarem a ser essenciais para certas
comunidades, é possível que o facto de se ter partido do pressuposto de que
esta cosmologia era aplicável à generalidade da população tenha prejudicado
outras comunidades. A investigação realizada nas aldeias sobre a importância e
particularidades das regras tara bandu teria provavelmente constituído um
melhor indicador na conceção das políticas.
A questão da autoridade tradicional dá também origem a tensões entre as
ortodoxias da ONU e as culturas locais. Uma perspetiva do desenvolvimento que
demonstre abertura à cultura local pode pretender um reforço das autoridades
tradicionais. Em certos casos, no entanto, verificou-se que esta abordagem
perpetuava as desigualdades a nível local, com consequências adversas no tecido
social das comunidades, ou em valores como a igualdade distributiva. Com
frequência, os projetos de desenvolvimento atribuem benefícios aos
participantes, passando ao lado dos não-participantes, o que altera as relações
sociais na comunidade, uma vez que novos interesses instalados dão origem a
novos padrões de cooperação e, desse modo, a sentimentos de exclusão entre os
não-participantes (Shepherd, 2009: 334). Se, como aconteceu num projeto
agrícola com financiamento internacional em Timor-Leste, as autoridades
tradicionais (chefes ou anciões da aldeia) obtêm o poder de decidir quem
participa, os projetos de desenvolvimento poderão contribuir para aumentar as
desigualdades locais. Se, por outro lado, a participação é decidida com base
nas necessidades, as autoridades tradicionais podem estar a ser postas em
causa. Apesar de considerada progressista pela bibliografia pós-
desenvolvimentista, a sensibilidade cultural pode também cimentar as estruturas
tradicionais de poder, bem como os padrões tradicionais de exclusão.
Os limites da sensibilidade cultural da ONU
Existem diversos focos de tensão entre as exigências da cultura local e a
cultura institucional das agências da ONU, e os responsáveis pelos programas de
desenvolvimento tendem geralmente a tomar o partido da ONU. O mais evidente
destes conflitos é o que resulta das diferentes culturas de planeamento. Em
tétum, não existe um conceito para a semana seguinte', e o planeamento tem
aparentemente um papel muito menos relevante do que aquele que possui na
indústria do desenvolvimento, revelando uma discrepância entre o tempo local'
e o tempo do desenvolvimento'.27 Já a cultura institucional das agências da
ONU, por seu lado, é dominada por prazos que determinam as operações das
agências. Frequentemente os contributos dos doadores são adstritos apenas a
determinados períodos de tempo. Num plano mais vasto, existe uma pressão
temporal na indústria de desenvolvimento porque as agendas dos doadores podem
mudar e as missões têm um fim. Sendo assim, é necessário despender a ajuda
financeira em períodos de curto a médio prazo, segundo processos rigorosamente
estabelecidos: os convites à apresentação de projetos têm de ser confirmados, a
subcontratação tem de ser feita, os planos de implementação têm de ser
apresentados, executados e monitorizados. Assim que as agências de
desenvolvimento dão início aos trabalhos, todos estes processos exigem o
envolvimento a todos os níveis dos atores locais. O pessoal de algumas das
organizações internacionais deparou-se com uma certa resistência por parte do
governo timorense relativamente à aceitação das restrições temporais da
indústria do desenvolvimento.28 Os decisores timorenses estabeleceram a sua
própria agenda política, centrando-se numa coisa de cada vez. Se o governo
determina que este ano nos vamos concentrar na construção de estradas, então
esqueçam os projetos de saúde, imigração ou agricultura.29 Os avisos de que a
ajuda para outros projetos poderia não estar disponível em anos subsequentes
foram frequentemente ignorados na tomada de decisões das autoridades locais.
A resposta da ONU a esta tensão entre a sua própria cultura de planeamento e o
ritmo local de tomada de decisões tem o nome de capacitação' ' e está presente
em todo o território de Timor-Leste.30 A capacitação envolve ensinar os
timorenses a planear, a aplicar os protocolos institucionais e a adquirir as
competências para assumir a direção de projetos após a retirada das agências de
desenvolvimento.31 Na perspetiva desenvolvimentista do Norte, este processo é
visto como benéfico, como uma formação de capital humano'. Verificou-se, no
entanto, que os projetos de desenvolvimento baseados numa capacitação
unilateral são menos viáveis e, portanto, menos eficazes (Carroll-Bell, 2012:
40-42). Além disso, promove-se uma certa cegueira institucional. Familiarizar a
população local com os paradigmas do desenvolvimento contribui para a sua perda
de imaginação, visto que, com este novo tipo de raciocínio, criam-se menos
alternativas (Tucker, 1999: 10).
Ainda pior é o facto de este processo de socialização institucional afetar
diretamente a própria bolsa de saberes indígenas. As sociedades indígenas, tal
como as industriais, possuem conhecimento especializado, que é transmitido
dentro de cada profissão, mas os indivíduos que trabalham em organizações
internacionais não estão incluídos nesta cadeia de transferência de saberes
locais.32 A migração para os centros urbanos,33 induzida pela procura de
emprego, pode também ser um fator de perturbação dos canais tradicionais de
disseminação do conhecimento. Se as famílias são separadas, torna-se cada vez
mais difícil para as gerações mais velhas transmitirem as suas experiências,
crenças e tradições. Sendo assim, os próprios funcionários a nível local têm
cada vez menos acesso a determinados aspetos dos saberes locais, prejudicando
ainda mais a transferência de conhecimento do plano local para as agências da
ONU.
Sem surpresa, este conceito unidirecional de capacitação gerou resistências no
terreno. Muitos dos entrevistados da ONU afirmaram que os seus colegas ou
parceiros de projeto timorenses bloquearam a cooperação com o pessoal
internacional, dado que a unilateralidade destas transferências de conhecimento
provocava nos timorenses a sensação de que o pessoal da ONU34 lhes estava a
fazer uma preleção. (Não obstante, apenas um dos inquiridos comentou que
consideravam ofensiva a própria expressão capacitação').
Igualmente perturbadora para o trabalho de desenvolvimento em Timor-Leste é a
tensão entre a cultura institucional de rotações curtas da ONU e a preferência
cultural das comunidades locais pelo estabelecimento de um clima de confiança
como base para a cooperação. Como reconheceu um entrevistado da ONU, os seus
colegas timorenses não parecem trabalhar com o pessoal recém-chegado da mesma
maneira que com as pessoas que eles conheciam e em quem tinham confiança.35 Em
todo o caso, esta questão não motivou as agências da ONU a passar de um sistema
de contratação a curto prazo para um de longo prazo, de modo a criar um
ambiente de trabalho mais adaptado a esta preferência cultural local.
No setor da segurança, as tensões entre a cultura institucional e alguns
aspetos da cultura local revelaram-se no campo da formação das forças
policiais. Depois do treino com a UNMIT, os agentes da polícia timorense
mostravam uma tendência para agir de forma mais agressiva.36 Criou-se, entre a
população local, o sentimento de que o comportamento violento da polícia fora
instigado pelo treino da UNMIT.37 Na realidade, a CIVPOL,38 a instituição da
ONU encarregada de constituir e treinar a polícia timorense, foi criticada por
organizações para os direitos humanos, sendo-lhe apontadas várias limitações
nos seus programas de formação (Hood, 2006). Uma investigação da ONU ao
fracasso da resposta dada pela polícia local aos motins de 2006 e 2007
confirmou, além disso, as denúncias por parte da população da extrema
brutalidade policial e da falta de competências de gestão de conflito por parte
da polícia local (Office of the High Commissioner for Human Rights & United
Nations Integrated Mission in Timor-Leste, 2009). Os agentes da UNMIT tinham
conhecimento das críticas relativamente ao baixo padrão dos métodos de treino e
reconheceram a inexistência de um manual de treino que garantisse a qualidade
da instrução da polícia orientada pela ONU.39 Este manual não existe
essencialmente por motivos políticos. Na sua falta, qualquer país membro da ONU
pode, na situação presente, selecionar e enviar instrutores de polícia, os
quais estão autorizados a orientar o treino segundo os seus próprios padrões.
Apesar de esta prática poder dar azo a táticas policiais violentas no âmbito
dos esquemas de treino policial da ONU, também assegura a igualdade de todos os
Estados-Membros enquanto contribuintes para este tipo de missões.40 O facto de
a ONU colocar em primeiro lugar a sua cultura interna de igualdade, em
detrimento das preocupações locais relativamente ao que falhou na formação da
polícia, é, assim, mais um exemplo de que a predisposição desta organização
para se adaptar ao contexto local é limitada.
Conclusão
Este artigo debruçou-se sobre a forma como as agências da ONU têm lidado com os
desafios colocados pelas discrepâncias entre a sua cultura institucional e a
cultura local em Timor-Leste. As ortodoxias desenvolvimentistas internacionais
não só já não constituem uma forma homogénea de imperialismo do Norte como
estão aparentemente a dar sinais de desgaste nas margens. A resistência das
comunidades locais à imposição de perspetivas desenvolvimentistas pouco
adequadas obrigou as agências da ONU a incorporar alguns elementos das
cosmologias, dos costumes e das tradições locais. Ou seja, o facto de a
indústria do desenvolvimento responder perante os seus doadores fez já
transitar algum poder das agências de desenvolvimento para as comunidades
locais. No respeitante a intervenções externas na área do desenvolvimento, a
recente descoberta de reservas naturais em Timor-Leste poderá temporariamente
proporcionar ao país alguma independência que outros países que se encontram a
receber ajuda não possuem. Em todo o caso, até neste país se revela ainda, de
forma subjacente a este processo de hibridização das políticas de
desenvolvimento, uma forte assimetria de poder em favor das agências de
desenvolvimento: mesmo que estas tornem os seus programas mais flexíveis, de
modo a incluir aspetos da cultura local, cabe às agências definir quais os
aspetos e os limites desta sensibilidade cultural. O próprio ato de interpretar
a cultura é uma afirmação de poder.
Este artigo procurou examinar as tensões resultantes de um confronto de
culturas ' a cultura de desenvolvimento da ONU e variados aspetos da cultura
timorense ', ilustrando alguns dos limites da capacidade e disponibilidade das
agências da ONU para se adaptarem às características socioculturais dos meios
em que ocorre a intervenção. A pesquisa debruçou-se sobre a forma como a
indústria do desenvolvimento lidou com as tensões culturais detetadas entre a
cultura institucional e os costumes, tradições e sistemas de crenças locais.
Examinando as práticas de desenvolvimento da ONU em Timor-Leste, este estudo
procurou mostrar como certos aspetos da cultura local foram interpretados e
incorporados nas políticas de desenvolvimento da ONU. Obtém-se uma imagem de
uma complexa interação entre uma ortodoxia de base científica um pouco
enfraquecida, concessões entre objetivos de ação política e uma crescente, mas
limitada, flexibilidade por parte das agências da ONU.
A espiritualidade e as cosmologias indígenas, por exemplo, já não representam
um tabu para as políticas de desenvolvimento. Como se constata no caso das
práticas de desenvolvimento adotadas no campo da segurança alimentar, as
agências da ONU demonstraram uma certa disponibilidade para adaptar os seus
programas às crenças espirituais contrárias ao conhecimento científico do
Norte; continua no entanto a faltar o reconhecimento da diversidade cultural
existente nas comunidades locais. Na tentativa de compreender melhor a cultura
local através da identificação de padrões culturais comuns nas comunidades, a
observação continua a sofrer de generalizações e imprecisões que tendem a
sobrepor-se a uma compreensão mais diferenciada da cultura local na sua
diversidade. A presente análise ilustra a forma como iniciativas para o
desenvolvimento podem refletir e, assim, reforçar um certo tipo de cultura
local que não é necessariamente consensual nas comunidades e que claramente não
o é na totalidade do território de Timor-Leste. Um processo de ajustamento das
estratégias políticas que inclua certas variações da cultura local, excluindo
outras, poderá, até certo ponto, alterar o equilíbrio de poder no interior das
comunidades ou entre elas. A criação de um espartilho cultural' deste género,
no qual seriam comprimidas as avaliações externas da diversidade cultural de
Timor-Leste, poderia também ter repercussões na elaboração de políticas futuras
' tal como acontece com as metanarrativas na análise de conflitos, que são
perpetuadas nos círculos políticos e académicos, apesar de se basearem em
análises incorretas (Gilley, 2004).
Existem, além do mais, limites claros à flexibilidade das práticas de
desenvolvimento no que diz respeito à cultura institucional da ONU.
Desconstruída nos seus diversos aspetos ' ortodoxia subjacente, operações
externas e processos internos ' verifica-se que esta cultura institucional
demonstra alguma flexibilidade para com os dois primeiros aspetos e nenhuma
para com o último. Apesar da sua rigidez, admite ajustamentos às suas linhas de
orientação, e as operações externas conseguem contornar obstáculos, mas
continua a faltar a disponibilidade para alterar estruturas, princípios e
processos internos da ONU, de forma a incorporar aspetos da cultura local.
De acordo com os exemplos apresentados, os ajustamentos na prática de
desenvolvimento parecem ser concessões unilaterais, mais do que alterações de
políticas negociadas mutuamente, que conferem poder aos parceiros locais. O
conceito de um mundo perfeito formulado pelos especialistas em estudos críticos
do desenvolvimento, composto de diversidade e diferença, no qual as comunidades
locais determinam as estratégias de desenvolvimento a partir do seu contexto
cultural, parece muito distante. No momento atual, ainda é preciso que a
resistência das comunidades locais rejeite a instrumentalização das culturas
locais pelos interesses externos empenhados na reforma das sociedades. Isto é
tanto mais preocupante quanto este interesse na modernização não domina apenas
as agências para o desenvolvimento; domina igualmente os governos nacionais.