As estratégias de resposta a conflitos violentos e de (re)construção da paz:
Uma análise crítica
Introdução
Com o final da Guerra Fria, a prevenção e resolução de conflitos violentos, bem
como a construção da paz em cenários de grande complexidade tornou-se, nas
palavras de Roland Paris (2002), uma espécie de missão civilizadora' nas mãos
da comunidade internacional e em especial no quadro de regiões periféricas do
mundo e requerendo intervenções curativas' a partir do exterior. Na prática,
tal significou que atores externos passaram a definir estratégias comuns e
amplas, assentes nos princípios da paz liberal, de modo a lidar com os vários
países em conflito violento interno. A particularidade destas estratégias
assentava no facto de serem definidas com base no pressuposto de que formas
liberais de governo seriam um elemento chave na promoção da paz e estabilidade
internas nestes contextos (Richmond, 2007: 56). O objetivo do projeto da paz
liberal é então o de transformar países disfuncionais' e afetados por
conflitos violentos situados na periferia do sistema internacional em Estados
cooperantes, representativos e estáveis (Duffield, 2001: 11). Assim, foi
implementada uma visão muito particular de como os Estados se deveriam
organizar internamente, essencialmente baseada nos princípios de democracia
liberal e de economia de mercado. Do ponto de vista político, tal significava
democratização de acordo com uma lógica de democracia liberal. A reconstrução
destes Estados de acordo com esta visão significava essencialmente que os
atores externos tinham efetivamente criado standards de comportamento estatal
apropriado, a partir do núcleo fundamental do Ocidente, para os Estados
falhados da periferia do sistema internacional (Paris, 2002; Duffield, 2001).
Ainda de acordo com Duffield, a preocupação atual com questões de governação
global é a de estabelecer uma paz de tipo liberal nas fronteiras turbulentas do
centro do sistema internacional: resolvendo conflitos, reconstruindo sociedades
e estabelecendo Estados funcionais com economias de mercado e democracias
consolidadas, com vista a evitar o retorno à guerra (Duffield, 2008). Contudo,
e apesar dos esforços na definição de vários instrumentos e políticas para
prevenir e resolver conflitos desta natureza, os resultados nem sempre foram
bem-sucedidos (Nkundabagenzi, 1999: 280), em especial à luz dos objetivos mais
comummente estabelecidos, tais como prevenção e resolução de conflitos ou
reconstrução sustentável da paz. De facto, e olhando para casos específicos
como a Somália, o Ruanda ou a Bósnia, estes objetivos estão longe de ser
alcançados com êxito.
Apesar de terem contribuído para a tomada de consciência sobre a multiplicidade
e complexidade das causas dos conflitos, estes modelos e estratégias
rapidamente se tornam dominantes e cristalizam uma agenda de prioridades
bastante desequilibrada e limitada, favorecendo claramente os direitos e
instituições de natureza civil e política e negligenciando garantias
económicas, sociais e culturais fundamentais. Como resultado, a implementação
destes modelos e estratégias em países em desenvolvimento e ditos falhados', a
passar por conflitos violentos e duradouros, tem-se confrontado com resultados
muito díspares e contrários às expectativas, sujeitando-se a uma crítica
intensa em virtude da sua aparente ineficácia e incapacidade em promover uma
paz sustentável. Na nossa perspetiva, tal acontece, em parte, porque a ideia e
o objetivo de resolver conflitos e construir a paz acarreta um sentimento de
hegemonia por parte das potências dominantes que ditam o que deve ser feito e
de que forma (John, 2005: 1), sem ter em grande consideração quer as
verdadeiras causas do conflito, quer as reais necessidades no pós-conflito.
Contudo, a noção de que uma rápida liberalização política e económica ' em que
se sustenta a ideia de peacebuilding' tem sempre e necessariamente efeitos
pacificadores nos países afetados por conflitos violentos assenta, na sua
essência, em pressupostos errados (Paris, 2001: 766). Na maioria dos contextos,
em vez de eleições e economias de mercado, o imediato pós-conflito requer
estabilidade política e crescimento económico, bem como estruturas
institucionais que guiem um processo de reconstrução equitativo e sustentável
de toda a sociedade (ibidem: 767).
A partir de um posicionamento crítico relativamente a este contexto, o presente
artigo tem como objetivo analisar as mudanças e evoluções teóricas e empíricas
ao nível dos modelos e estratégias de paz dominantes, chamando a atenção para
as suas prioridades limitadas e para a forma como o projeto de paz liberal
subjacente tende a invisibilizar formas de desigualdade e dinâmicas muito mais
complexas que sustêm e reproduzem o conflito e a violência.
O(s) consenso(s) em torno da reconstrução da paz: origens, ganhos e perdas
Desde a sua criação, em 1945, que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem
estado ativamente envolvida, entre muitas outras atividades, em missões de
prevenção e gestão de conflitos de características mais clássicas ou
tradicionais. Contudo, o final da Guerra Fria trouxe consigo um aumento do
número de conflitos essencialmente internos e particularmente duradouros e
complexos. De acordo com Wallensteen e Sollenberg,
Entre 1989 e 2000 registou-se um total de 111 conflitos armados.
Destes, 33 estavam ainda ativos em 2000. Para todo este período
registaram-se sete conflitos interestatais, dos quais dois ainda
estavam ativos em 2000. A redução do número de conflitos armados não
é suficiente para concluir que este decréscimo será ainda maior. Os
conflitos têm-se tornado cada vez mais complexos no que se refere ao
número dos atores envolvidos e às ligações regionais entre eles.
Existe uma maior proporção de conflitos armados novos e mais pequenos
a serem resolvidos do que de conflitos longos e de larga escala.
(2001)1
Com esta crescente visibilidade e complexidade de conflitos armados internos
tem vindo também a aumentar, nos círculos políticos e académicos, o
reconhecimento da importância fundamental de definir uma resposta mais proativa
a estes conflitos, em vez de uma mais reativa (John, 2005: 1) e
tradicionalmente usada como resposta às crises. Progressivamente, emerge um
novo tipo de preocupação no seio da comunidade internacional em geral, e na ONU
em particular, relacionada com a necessidade e/ou obrigação de participar em e
contribuir para a gestão de conflitos, bem como para a reabilitação pós-
conflito violento neste contextos. Em resposta a uma reinterpretação das
dinâmicas de conflito e à sua natureza cada vez mais complexa e diversificada,
foi sendo posta em prática uma resposta mais multidimensional, essencialmente
caracterizada por prioridades e instrumentos direcionados para cenários de
conflito e pós-conflito violento e com vista a alcançar a paz.
Neste sentido, as ideias de paz liberal, intimamente ligadas à (re)construção
de Estados territoriais soberanos e democráticos, tornaram-se a base através da
qual seriam identificadas as ameaças à paz e se definiriam respostas mais
eficazes (Richmond, 2007: 13). Incluídos nestes novos conceitos e práticas de
envolvimento externo em cenários de conflito e pós-conflito interno, os
objetivos de prevenção e gestão de conflitos tornaram-se uma assumida
prioridade internacional. No seu sentido mais tradicional e comum, estes
objetivos visavam essencialmente prevenir uma escalada dos conflitos sociais já
existentes e que estes se tornassem violentos. Neste contexto, o conceito de
prevenção é normalmente dividido em duas categorias: operacional e estrutural.
De acordo com a Comissão Carnegie para a Prevenção de Conflitos, a prevenção
operacional tem lugar através da ajuda externa quando os atores internos não
conseguem assegurá-la por si mesmos, sustentando que nestas situações deve
haver um país ou organização a liderar uma abordagem política, militar ou
humanitária coerente e uma adequação dos recursos considerados necessários para
os objetivos a alcançar (Carnegie Commission, 1997: xxi). Relativamente à
prevenção estrutural, esta coloca a ênfase nas questões de segurança, bem-estar
e justiça, bem como na implementação e/ou criação de sistemas e estruturas
políticas e económicas capazes de promover e satisfazer as necessidades
económicas e sociais da população (ibidem: xxviii). A prevenção estrutural
procura então responder às causas mais profundas da violência, estimulando um
processo de paz sustentável a longo prazo e contribuindo para a (re)construção
de sociedades particularmente afetadas por conflitos duradouros e violentos.
Nesse sentido, estratégias eficazes de prevenção ficariam dependentes de uma
identificação e análise corretas dos conflitos e das suas causas. No caso de
conflitos internos, estas causas estão normalmente relacionadas com a cultura e
estrutura política do Estado ' défice democrático, abusos dos direitos humanos,
apropriação privada pelo Estado ', bem como com a estrutura da comunidade '
diversidade étnica ou religiosa, assimetrias e desigualdades de grupo ou
culturas de violência. As tentativas de melhor responder a estas causas
complexas foram progressivamente contribuindo para a definição e disseminação
de um projeto de democracia liberal, mercado livre e economia globalizados,
desenvolvimento e garantias de direitos humanos (Richmond, 2004: 132).2
É possível traçar as raízes teóricas e práticas do projeto de paz liberal nos
trabalhos de filósofos como John Locke3 ou Immanuel Kant (Paris, 2004: 41). De
acordo Locke (Two Treatises of Government, 1968), por exemplo, apenas um tipo
de governo seria compatível com uma paz justa e segura: um regime baseado na
lei, regido por regras constitucionais e estabelecido com consentimento
popular. A criação de um governo que não correspondesse a estas características
e estes imperativos e que, pelo contrário, violasse as liberdades e os direitos
fundamentais contribuiria para o retorno ao estado de natureza e à lógica de
violência e insegurança a ele associada (ibidem). Na mesma linha, o pensamento
de Kant fornece uma representação de um projeto de paz liberal e de como este
poderia ser promovido nos Estados modernos (Richmond, 2007: 25). O seu trabalho
Projeto de paz perpétua(1975)4 previa as condições para uma união permanente a
favor da paz e segurança (Kant, 1989). Estas condições estabeleciam que todos
os Estados deveriam ser republicanos (democráticos), que a ordem internacional
deveria assentar numa federação de Estados e que aos não cidadãos deveria
aplicar-se o princípio da hospitalidade universal'. Já em 1965, ao afirmar que
a paz mundial deveria assentar nas fundações da liberdade política e que a
precondição para a paz internacional era a estabilidade política entre Estados,
garantindo os direitos das pessoas e a autodeterminação democrática, Woodrow
Wilson tornou-se um dos primeiros chefes de Estado a articular o que hoje se
conhece por tese de paz liberal. Esta tese foi progressivamente formulada,
reformulada e abraçada por vários outros teóricos políticos, políticos e
analistas internacionais. Neste sentido associava-se a paz à autodeterminação e
democracia liberal (Richmond, 2007: 39) e estabeleciam-se claramente as bases
para o entendimento e a implementação das ideias de paz liberal que hoje, em
grande medida, sustentam o modelo contemporâneo desta. Neste contexto, e uma
vez que a conceção liberal reconhece que a paz pode não ser uma condição
natural, mas sim dependente do cumprimento de um conjunto de precondições
políticas, económicas, sociais e culturais, ela tornou-se o core de várias
formas de intervenção e envolvimento político, económico e social por parte de
atores externos (ibidem: 52).
O conceito de peacebuilding,por exemplo, foi referido pela primeira vez em Uma
agenda para a paz, apresentada em 1992 pelo ex-Secretário-Geral das Nações
Unidas, Boutros Boutros-Ghali e definido como
[ ] uma ação para identificar e apoiar as estruturas que tenderão a
reforçar e consolidar a paz de modo a evitar o retorno ao conflito,
reconstruindo as instituições e infraestruturas dos países
dilacerados pela guerra civil e atacando as suas causas mais
profundas: desespero económico, injustiça social e opressão política.
(1992)
Mais tarde, em 1995, o Suplemento de Uma agenda para a paz clarificava e
alargava esta definição a
[ ] esforços alargados para identificar e apoiar as estruturas que
contribuirão para a consolidação da paz e para a criação de um
sentimento de confiança e bem-estar entre a população. Através de
acordos que põem fim a guerras civis, tais esforços incluem o
desarmamento das partes beligerantes e a restauração da ordem, a
destruição de armas, o repatriamento de refugiados, a monitorização
de eleições, a proteção de direitos humanos, a reforma ou o reforço
de instituições governamentais e a promoção de processos formais ou
informais de participação política. (Boutros-Ghali, 1995)
A preocupação subjacente a estes dois documentos remetia para a necessidade de
incluir uma abordagem mais alargada e multidimensional nos esforços de
prevenção e/ou gestão de conflitos, a partir da identificação das causas mais
profundas dos conflitos violentos e do apoio a estruturas que pudessem
contribuir para a consolidação da paz de forma realmente eficaz. Na tradição do
projeto de paz liberal, o peacebuilding passa então a referir-se cada vez mais
a um abrangente conjunto de intervenções e atividades definidas para facilitar
o estabelecimento de uma paz duradoura e prevenir o retorno à violência. Tais
intervenções incluem missões de paz, operações de apoio à paz, desarmamento,
desmobilização, reabilitação e reintegração. Mas para além da garantia de uma
dimensão de paz mais negativa (aproveitando a proposta de Galtung) deveriam
ainda incluir uma componente de paz positiva, o que significa a ausência de
formas de violência física mas também estrutural, procurando responder às
causas e efeitos mais profundos do conflito, a partir do restabelecimento das
relações destruídas, da promoção da reconciliação, da criação de instituições e
da reforma política, bem como da facilitação de dinâmicas de transformação
económica (Karbo, 2008: 115).
Apesar de este conceito ter sido expandido, desde então, para cobrir objetivos
mais alargados com vista ao alívio dos efeitos mais negativos nas populações e
à promoção de um desenvolvimento mais sustentável e a longo prazo,5 a prática e
o envolvimento da ONU neste contexto acabaram por consolidar o que foi
progressivamente ficando conhecido como o modelo estandardizado de reconstrução
da paz (Ramsbotham et al., 1999).6 Neste processo, o trabalho crucial de
desmobilização de ex-combatentes, reconstrução do tecido social,
estabelecimento de instituições políticas e criação de formas de
desenvolvimento económico e social capazes de gerir e, em última instância,
prevenir conflitos violentos, tornaram-se o foco de trabalho de uma grande
variedade de atores nacionais e internacionais de diferentes áreas (Krause e
Jütersonke, 2005: 447). Roland Paris vai mais além e divide os mecanismos
usados para promover estes modelos políticos e económicos liberais em quatro
grandes áreas de ação: definição do conteúdo dos acordos de paz (de modo a
incluir os objetivos de liberalização política);7 garantia de aconselhamento
especializado aos atores locais durante a implementação dos acordos (guiando um
processo de liberalização política e económica); imposição de condicionalidade
económica e política nas reformas em troca de ajuda económica; apoio ao
desempenho de funções de gestão e governação por parte de atores externos
(Paris, 2002: 642-645). Neste contexto, as ideias de peacebuilding passaram a
estar associadas a todo o tipo de iniciativas ao nível do ciclo do conflito,
tornando-se um termo suficientemente abrangente para justificar o envolvimento
de atores ' académicos e decisores políticos ', que tradicionalmente nada
tinham a ver com o campo da prevenção e/ou gestão de conflitos (John, 2005: 3).
De acordo com Richmond, este tipo de consenso' em torno dos objetivos de
peacebuilding representa novos discursos e práticas tanto relativamente aos
meios de intervenção como aos seus fins, incluindo mediação, missões de paz,
prevenção e transformação de conflitos, bem como estratégias de desenvolvimento
num processo (supostamente) multidimensional com vista à anulação do potencial
de conflito (Richmond, 2004: 131). Pressupõe-se, aqui, a existência de uma base
normativa e cultural universalmente partilhada em torno da ideia de paz liberal
e que as práticas sejam apoiadas por todos os atores envolvidos (Richmond,
2007: 112). Ao mesmo tempo, este consenso' parece indicar que, se o objetivo é
prevenir o retorno ao conflito, certas formas de governo devem estar
devidamente implementadas através de múltiplas intervenções (ibidem: 154),
incluindo as de natureza mais humanitária ou militar. Tal consenso', contudo,
é por nós visto como sendo altamente contestado e questionado, além de baseado
numa interpretação e avaliação limitada tanto das causas dos conflitos, como
das medidas necessárias para os prevenir e/ou resolver. Prova destas limitações
e natureza contestada é o facto de, apesar do sucesso relativo de muitas
missões de peacebuilding das Nações Unidas, terem existido importantes e
repetidos falhanços relacionados com o modelo em si (dos pressupostos e
prioridades por ele previstos) e com a sua implementação, nomeadamente no que
diz respeito à capacidade desenvolvida pelos atores internacionais para
compreender os conflitos e apoiar o desenvolvimento de estruturas políticas,
económicas e sociais sustentáveis em muitos países afetados por dinâmicas de
conflito violento. Apesar de estes esforços de transformação de países
destruídos pelos conflitos em democracias de mercado liberais terem vindo a ser
desenvolvidos e implementados em vários cenários,8 na maior parte dos casos não
foram bem-sucedidos. As perspetivas de paz e estabilidade, na grande maioria,
tornaram-se, assim, ilusórias e vazias. Além disso, e embora pelo menos
teoricamente, as Nações Unidas reconheçam o carácter único e específico de cada
situação de conflito e pós-conflito, negando o tipo de one size fits all do
modelo de peacebuilding, a prática tende a mostrar a imposição de um modelo
neoliberal específico, traduzido nas exigências de cumprimento e respeito por
um conjunto de direitos e princípios fundamentais do Estado democrático. Mais
importante ' e, a nosso ver, preocupante ', é o facto de que tal é feito à
custa de um desinvestimento deliberado nos direitos de natureza económica e
social e de um ignorar das causas mais complexas e estruturais dos conflitos.
De facto, uma análise mais cuidada da maior parte dos processos de gestão de
conflitos e peacebuilding em que o modelo tem sido, ou está a ser, aplicado
revela que existe uma tendência preocupante por parte dos principais atores
envolvidos, incluindo as Nações Unidas, em adotar uma abordagem estadocêntrica
e impositiva em matéria de reconstrução pós-conflito (Ramsbotham et al., 1999:
198). Ao mesmo tempo, estas respostas e estratégias são frequentemente baseadas
em pressupostos limitados e erróneos. Por exemplo, é assumido de forma
praticamente natural que as ideias de paz liberal, obedecendo aos standards das
instituições e dos Estados liberais, são garantidas de forma multilateral e
democrática, incorporando mecanismos de prevenção e gestão de conflitos,
implementação de direitos humanos e governação democrática (Richmond, 2007:
54). Em algumas circunstâncias, contudo, os esforços de prevenção e
peacebuilding assentam na ideia de que uma abordagem sofisticada, ainda que
algo utópica, de engenharia social' poderia substituir, ou mesmo acelerar, um
processo de for mação do Estado que ocorre de forma mais orgânica e natural
(Krause e Jütersonke, 2005: 448). O que esta visão claramente sugere é que o
que está a ser concebido no quadro deste suposto consenso' em torno dos
objetivos de peacebuildinge do modelo de paz liberal associado é, na verdade,
um discurso hegemónico sobre paz que tem sido redefinido de modo a gerar um
maior acordo em torno das ideias de democratização, mercado liberal, direitos
humanos e desenvolvimento que irá, alegadamente, contribuir para a paz e
estabilidade em sociedades pós-conflito (Richmond, 2007: 80). Citando Oliver
Richmond sobre este assunto, a definição de paz liberal neste contexto
[ ] inscreve-se no consenso metodológico orientado para objetivos de
peacebuilding em que coexistem Estados, atores internacionais,
regionais e locais numa sociedade internacional ocidentalizada na
qual os Estados são democráticos, os direitos humanos são observados
e respeitados e a norma é o multilateralismo, exceto em
circunstâncias extremas. Esta visão de paz liberal fornece um modelo
para o que está a ser promovido em zonas de conflito através do
peacebuilding. (2007: 121)
Apesar de intervenções deste tipo em situações de pós-conflito violento virem a
ser encaradas pelos atores ocidentais como oportunidades fundamentais para a
(re)construção dos Estados e, em especial, a sua reforma, Robin Luckman afirma
que
O problema que permanece é o facto de a reforma tender a ser
concebida nos termos ditados pelos principais doadores e agências
internacionais, priorizando a fórmula usual de democracia liberal,
boa governação e liberalização económica. Enquanto elementos desta
fórmula são desejáveis em si mesmos, o pacote completo, e a maneira
como é promovido ou imposto a partir de fora, tende a inibir uma
reflexão profunda sobre a natureza e os objetivos de autoridade
política nos Estados em situação de pós-conflito. (Luckham apud
Karbo, 2008: 115)
A prevenção de conflitos e a (re)construção da paz tornam-se, assim, processos
largamente dirigidos a partir de fora que resultam, frequentemente, em
experimentações sociais controladas por atores externos e normalmente
desligados das sociedades que procuram (re)construir. Outros autores, como
Roland Paris (2004) ou Mark Duffield (2001), levaram este argumento mais além e
afirmam mesmo que os objetivos de peacebuilding no quadro deste modelo liberal
servem agendas externas que visam essencialmente transplantar modelos
ocidentais de organização social, económica e política para contextos de países
que experienciaram conflitos violentos com vista a controlar a violência nas
periferias do sistema internacional (Zeeuw, 2001: 27). De acordo com esta
visão, a maior parte dos esforços para prevenir e/ou gerir conflitos foram
cooptados por um regime de segurança global que recorre aos conceitos de
resolução de conflitos, reconstrução social e desenvolvimento simplesmente para
transformar as sociedades visadas à imagem dos agentes das intervenções sem
levar em devida consideração o seu verdadeiro impacto e eficácia em termos de
fomento e promoção de uma paz sustentável. O objetivo principal é, assim,
pacificar a periferia desordenada e manter o status quo e a estabilidade no
centro desenvolvido do sistema internacional (Ramsbotham et al., 2005: 120). De
facto, e mesmo que não queiramos levar o argumento a este extremo, deve ser
reconhecido que os modelos tradicionais de envolvimento externos em contextos
desta natureza tendem a depender grandemente dos interesses específicos de
atores também externos, sejam eles Estados ou organizações internacionais ou
regionais (que, por sua vez, respondem aos interesses dos Estados que as
compõem). Deste modo, quando experimentado e implementado em países que
recuperam de conflitos violentos, o modelo de paz liberal tende a deparar-se
com importantes desafios e obstáculos (Labonte, 2003: 261). Uma análise rápida
das intervenções passadas mostra-nos que os repetidos falhanços em reconhecer a
complexidade das atividades e dos objetivos de peacebuilding pode ter
resultados desastrosos do ponto de vista político, económico e até humano, se
pensarmos nas probabilidades de retorno ao conflito violento ou de emergência
de outras formas de violência. Uma vez que a maior parte dos programas e formas
de envolvimento é temporária e baseada em ajustamentos técnicos através de
políticas de desarmamento e de organização de eleições, a assistência externa a
países no pós-conflito tem sido frequentemente traduzida numa abordagem de
resolução rápida dos problemas (Zeeuw, 2001: 26). Os programas de reconstrução
assentam, na sua maioria, na construção de instituições democráticas e na
recuperação económica através de estratégias orientadas para o mercado livre,
assumindo frequentemente que tais processos culminam com o estabelecimento de
novos governos e pacotes de reformas económicas a eles associados, sem prestar
necessariamente atenção à forma como estes mesmos objetivos e tarefas poderão
ser prejudicadas pela inexistência de estruturas económicas e sociais capazes
de os suportar. Esta situação mostra claramente que não é dada atenção
suficiente aos contextos políticos, económicos, sociais e até mesmo culturais
que podem, de facto, pôr em causa a sustentabilidade destas estratégias de
(re)construção da paz (Jeong, 2005: 2). Neste contexto, e como refere Luc
Reychler, não tem sido possível (ou desejável) retirar lições positivas e
construtivas dos esforços de paz levados a cabo até ao momento em grande medida
devido à falta de interesses partilhados e da existência de visões
diferenciadas da paz e dos objetivos a alcançar com o modelo de paz a
implementar (Reychler, 2007: 153). Reychler sintetiza esta ideia da seguinte
maneira
Em primeiro lugar, existe o problema de compromisso com a prevenção
de conflitos e com os objetivos de peacebuilding. A propensão para
intervir está relacionada com a perceção dos interesses envolvidos.
Quando interesses vitais estão em causa, os doadores tendem a encetar
maiores esforços de intervenção do que no caso de considerarem que os
interesses são marginais. Em segundo lugar, quando não existe
consenso sobre o tipo de paz que se pretende alcançar, torna-se
difícil construí-la. (2007: 153)
Em suma, e apesar de a reconstrução pós-conflito violento ser hoje uma
atividade relevante e importante para muitos países, é geralmente definida de
forma muito limitada, numa perspetiva de curto prazo e demasiado fragmentada e
sem enquadramento macroestratégico ou conceptual. Além disso, também se baseia
normalmente num conhecimento insuficiente e inadequado sobre a história,
prioridades e dinâmicas dos países intervencionados. Tendo isto em
consideração, e apesar da crença num certo consenso', este é verdadeiramente
aparente e mascara dinâmicas mais obscuras de hegemonia no sistema
internacional (Duffield, 2001). Tal sugere que os processos usados para
construir a paz servem hoje os interesses de atores dominantes, mais do que
constituem as bases para uma paz assente num real consenso que envolva, desde
logo, os atores visados pelas intervenções (Richmond, 2007: 123). Neste
sentido, o que tem resultado destas práticas é um enfraquecimento dos objetivos
associados ao modelo de peacebuilding, que levam à necessidade de prestar maior
atenção aos conceitos e mecanismos usados para prevenir conflitos e construir a
paz (Richmond, 2004: 132). Deste modo, parece-nos que é de fundamental
importância que, em qualquer contexto de conflito ou pós-conflito, os atores
externos ' bilaterais ou multilaterais ' reconheçam que as estratégias de
intervenção bem definidas e implementadas de forma eficaz têm o potencial de
gerar um conjunto de benefícios que serão bem mais sustentáveis (Labonte, 2003:
271). Este reconhecimento é particularmente importante na medida em que ajuda a
perceber se o envolvimento e a intervenção internacional estão efetivamente
comprometidos ou não com a criação de estruturas sustentáveis essenciais para
alcançar uma paz igualmente sustentável. Por outras palavras, se encararmos a
paz apenas como a simples ausência de conflito direto violento, então
dificilmente teremos intervenções bem-sucedidas a médio ou longo prazo.
Conclusões
O final da Guerra Fria parece ter oferecido a oportunidade para que os atores
internacionais revisitassem as conceções dominantes de paz e desenvolvimento ao
nível internacional e formulassem instrumentos e políticas supostamente mais
coerentes para responder a conflitos violentos. Ao mesmo tempo, a fusão das
agendas de segurança e desenvolvimento com o conceito (e subsequente modelo) de
peacebuilding parece ter também ajudado a lidar com um conjunto de questões que
passam a ser vistos como ameaças à paz e segurança internacionais (Tschirgi,
2003: 1). O palco internacional foi assim moldado para dar prioridade a uma
abordagem holística face aos novos problemas e desafios identificados. Em
teoria, mecanismos de prevenção de conflitos e peacebuildingdeveriam ser
sustentados em pilares distintos, ainda que interligados: o pilar da segurança,
relacionada com todos os aspetos da segurança pública e visando criar um
ambiente seguro; o pilar da justiça e reconciliação, através de mecanismos
formais e informais e de um sistema legal imparcial e consolidado; o pilar do
bem-estar socioeconómico, para responder às necessidades fundamentais nesta
área; o pilar da governação e da participação com vista à criação de
instituições políticas e administrativas legítimas e eficazes de processos
participativos e inclusivos (Hamre e Sullivan, 2002: 91-92). Contudo, o tempo e
uma análise mais rigorosa da realidade têm vindo a mostrar que as missões de
peacebuilding,por muito importantes que sejam, não são um mero exercício de
gestão de conflito. São, acima de tudo, o reflexo de um modelo particular de
governação interna que é levada do centro para a periferia do sistema
internacional e que se baseia nos princípios de democracia liberal e de mercado
(Paris, 2002: 638).
Apesar de promovido como neutro, objetivo e benevolente, o modelo de paz
liberal é, ao mesmo tempo, acusado de promover e estabelecer práticas
insidiosas de intervenção externa (Richmond, 2007: 73), obedecendo aos
princípios e valores advogados pelos atores e instituições ocidentais como
sendo universalmente aplicáveis. Os valores e instituições das democracias
liberais e estabelecidas são, pois, transplantados para o contexto de países
periféricos e particularmente fragilizados por conflitos violentos (Paris,
2002: 638), num esforço de reconstrução dessa mesma periferia à imagem do
centro. Estes esforços são, no seu essencial, baseados não apenas numa ideia do
que poderá ou não funcionar num determinado contexto, mas mais importante do
que isso, no que será o produto final deste processo ' um Estado estável,
democrático, liberal e capitalista (Krause e Jütersonke, 2005: 451). Contudo, e
estando assentes na condicionalidade, os objetivos de paz liberal podem
igualmente gerar contradições internas complexas e problemáticas, uma vez que a
criação de um Estado soberano de acordo com tais princípios e valores nem
sempre é compatível com os objetivos de liberalização económica e política. Em
último caso, e como sublinhado por Duffield, tal pode significar que a paz
liberal promovida pode resultar em dinâmicas de exclusão e/ou seletividade
estimuladas por atores externos (Richmond, 2007: 83).
Como Jeong relembra também, as experiências dos anos 90 em lugares como a
Somália, Bósnia ou Libéria, por exemplo, mostraram que as ambições de paz
baseadas apenas em princípios de justiça podem ser ilusórias, se consideradas
na ausência de uma perspetiva de transformação estrutural e de longo prazo
(Jeong, 2005: xi). Neste contexto, e para que formas mais estruturais de
peacebuilding possam ocorrer e ser desenvolvidas, o enfoque deve residir no
combate às condições sistémicas e estruturais que fomentam o conflito violento.
A paz sustentável deve, portanto, ser construída a partir do reforço das
estruturas sociais, económicas e políticas que respondam às necessidades das
pessoas. Deste modo, as causas mais profundas da pobreza, corrupção,
discriminação e distribuição desigual de recursos devem obrigatoriamente ser
reconhecidas e combatidas (Karbo, 2008: 122). Neste sentido, a questão não é
tanto se a comunidade internacional deve ou não envolver-se no prevenção de
conflitos ou na reconstrução da paz em contextos de pós-conflito, mas antes
como é que esse envolvimento deve ser levado a cabo, em que circunstâncias e em
que condições. A nosso ver, o modelo de paz liberal que tem vindo a ser
promovido e implementado tem correspondido a uma estratégia que promove uma
agenda desequilibrada de direitos humanos e negligencia as causas mais
complexas e profundas que sustentam e reproduzem o próprio conflito violento.
Se as estratégias de paz dominantes não percebem as causas mais profundas e
menos visíveis da violência, dificilmente poderão ser consideradas eficazes ou
sustentáveis.
Em suma, é fundamental reconhecer que os diferentes contextos de pós-conflito
requerem prioridades e estratégias ajustadas às suas características concretas,
evitando-se assim modelos universais e limitados naquele que será o seu impacto
e contributo para a promoção de dinâmicas de paz sustentáveis. Na linha da
proposta teórica de Edward Azar (1985; 1990), as estratégias de
peacebuildingdevem implicar processos mais profundos do que a simples criação
de Estados politicamente estabilizados e organizados. Devem, acima de tudo,
estimular processos de transformação política, económica e social assente nas
noções de justiça, inclusão e bem-estar socioeconómico (Krause e Jütersonke,
2005). A estabilidade económica e política dependem, assim e em primeiro lugar,
da identificação do papel que as desigualdades mais profundas desempenham no
conflito e, em segundo lugar, de respostas eficazes e atempadas a essas mesmas
desigualdades. O maior desafio está, acima de tudo, em conseguir passar da
teoria à prática.