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EuPTHUAp2182-74352014000300001

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National varietyEu
Year2014
SourceScielo

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As estratégias de resposta a conflitos violentos e de (re)construção da paz: Uma análise crítica

Introdução Com o final da Guerra Fria, a prevenção e resolução de conflitos violentos, bem como a construção da paz em cenários de grande complexidade tornou-se, nas palavras de Roland Paris (2002), uma espécie de ‘missão civilizadora' nas mãos da comunidade internacional e em especial no quadro de regiões periféricas do mundo e requerendo intervenções ‘curativas' a partir do exterior. Na prática, tal significou que atores externos passaram a definir estratégias comuns e amplas, assentes nos princípios da paz liberal, de modo a lidar com os vários países em conflito violento interno. A particularidade destas estratégias assentava no facto de serem definidas com base no pressuposto de que formas liberais de governo seriam um elemento chave na promoção da paz e estabilidade internas nestes contextos (Richmond, 2007: 56). O objetivo do projeto da paz liberal é então o de transformar países ‘disfuncionais' e afetados por conflitos violentos situados na periferia do sistema internacional em Estados cooperantes, representativos e estáveis (Duffield, 2001: 11). Assim, foi implementada uma visão muito particular de como os Estados se deveriam organizar internamente, essencialmente baseada nos princípios de democracia liberal e de economia de mercado. Do ponto de vista político, tal significava democratização de acordo com uma lógica de democracia liberal. A reconstrução destes Estados de acordo com esta visão significava essencialmente que os atores externos tinham efetivamente criado standards de comportamento estatal apropriado, a partir do núcleo fundamental do Ocidente, para os Estados falhados da periferia do sistema internacional (Paris, 2002; Duffield, 2001).

Ainda de acordo com Duffield, a preocupação atual com questões de governação global é a de estabelecer uma paz de tipo liberal nas fronteiras turbulentas do centro do sistema internacional: resolvendo conflitos, reconstruindo sociedades e estabelecendo Estados funcionais com economias de mercado e democracias consolidadas, com vista a evitar o retorno à guerra (Duffield, 2008). Contudo, e apesar dos esforços na definição de vários instrumentos e políticas para prevenir e resolver conflitos desta natureza, os resultados nem sempre foram bem-sucedidos (Nkundabagenzi, 1999: 280), em especial à luz dos objetivos mais comummente estabelecidos, tais como prevenção e resolução de conflitos ou reconstrução sustentável da paz. De facto, e olhando para casos específicos como a Somália, o Ruanda ou a Bósnia, estes objetivos estão longe de ser alcançados com êxito.

Apesar de terem contribuído para a tomada de consciência sobre a multiplicidade e complexidade das causas dos conflitos, estes modelos e estratégias rapidamente se tornam dominantes e cristalizam uma agenda de prioridades bastante desequilibrada e limitada, favorecendo claramente os direitos e instituições de natureza civil e política e negligenciando garantias económicas, sociais e culturais fundamentais. Como resultado, a implementação destes modelos e estratégias em países em desenvolvimento e ditos ‘falhados', a passar por conflitos violentos e duradouros, tem-se confrontado com resultados muito díspares e contrários às expectativas, sujeitando-se a uma crítica intensa em virtude da sua aparente ineficácia e incapacidade em promover uma paz sustentável. Na nossa perspetiva, tal acontece, em parte, porque a ideia e o objetivo de resolver conflitos e construir a paz acarreta um sentimento de hegemonia por parte das potências dominantes que ditam o que deve ser feito e de que forma (John, 2005: 1), sem ter em grande consideração quer as verdadeiras causas do conflito, quer as reais necessidades no pós-conflito.

Contudo, a noção de que uma rápida liberalização política e económica ' em que se sustenta a ideia de peacebuilding' tem sempre e necessariamente efeitos pacificadores nos países afetados por conflitos violentos assenta, na sua essência, em pressupostos errados (Paris, 2001: 766). Na maioria dos contextos, em vez de eleições e economias de mercado, o imediato pós-conflito requer estabilidade política e crescimento económico, bem como estruturas institucionais que guiem um processo de reconstrução equitativo e sustentável de toda a sociedade (ibidem: 767).

A partir de um posicionamento crítico relativamente a este contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar as mudanças e evoluções teóricas e empíricas ao nível dos modelos e estratégias de paz dominantes, chamando a atenção para as suas prioridades limitadas e para a forma como o projeto de paz liberal subjacente tende a invisibilizar formas de desigualdade e dinâmicas muito mais complexas que sustêm e reproduzem o conflito e a violência.

O(s) consenso(s) em torno da reconstrução da paz: origens, ganhos e perdas Desde a sua criação, em 1945, que a Organização das Nações Unidas (ONU) tem estado ativamente envolvida, entre muitas outras atividades, em missões de prevenção e gestão de conflitos de características mais clássicas ou tradicionais. Contudo, o final da Guerra Fria trouxe consigo um aumento do número de conflitos essencialmente internos e particularmente duradouros e complexos. De acordo com Wallensteen e Sollenberg,

Entre 1989 e 2000 registou-se um total de 111 conflitos armados.

Destes, 33 estavam ainda ativos em 2000. Para todo este período registaram-se sete conflitos interestatais, dos quais dois ainda estavam ativos em 2000. A redução do número de conflitos armados não é suficiente para concluir que este decréscimo será ainda maior. Os conflitos têm-se tornado cada vez mais complexos no que se refere ao número dos atores envolvidos e às ligações regionais entre eles.

Existe uma maior proporção de conflitos armados novos e mais pequenos a serem resolvidos do que de conflitos longos e de larga escala.

(2001)1

Com esta crescente visibilidade e complexidade de conflitos armados internos tem vindo também a aumentar, nos círculos políticos e académicos, o reconhecimento da importância fundamental de definir uma resposta mais proativa a estes conflitos, em vez de uma mais reativa (John, 2005: 1) e tradicionalmente usada como resposta às crises. Progressivamente, emerge um novo tipo de preocupação no seio da comunidade internacional em geral, e na ONU em particular, relacionada com a necessidade e/ou obrigação de participar em e contribuir para a gestão de conflitos, bem como para a reabilitação pós- conflito violento neste contextos. Em resposta a uma reinterpretação das dinâmicas de conflito e à sua natureza cada vez mais complexa e diversificada, foi sendo posta em prática uma resposta mais multidimensional, essencialmente caracterizada por prioridades e instrumentos direcionados para cenários de conflito e pós-conflito violento e com vista a alcançar a paz.

Neste sentido, as ideias de paz liberal, intimamente ligadas à (re)construção de Estados territoriais soberanos e democráticos, tornaram-se a base através da qual seriam identificadas as ameaças à paz e se definiriam respostas mais eficazes (Richmond, 2007: 13). Incluídos nestes novos conceitos e práticas de envolvimento externo em cenários de conflito e pós-conflito interno, os objetivos de prevenção e gestão de conflitos tornaram-se uma assumida prioridade internacional. No seu sentido mais tradicional e comum, estes objetivos visavam essencialmente prevenir uma escalada dos conflitos sociais existentes e que estes se tornassem violentos. Neste contexto, o conceito de prevenção é normalmente dividido em duas categorias: operacional e estrutural.

De acordo com a Comissão Carnegie para a Prevenção de Conflitos, a prevenção operacional tem lugar através da ajuda externa quando os atores internos não conseguem assegurá-la por si mesmos, sustentando que nestas situações deve haver um país ou organização a liderar uma abordagem política, militar ou humanitária coerente e uma adequação dos recursos considerados necessários para os objetivos a alcançar (Carnegie Commission, 1997: xxi). Relativamente à prevenção estrutural, esta coloca a ênfase nas questões de segurança, bem-estar e justiça, bem como na implementação e/ou criação de sistemas e estruturas políticas e económicas capazes de promover e satisfazer as necessidades económicas e sociais da população (ibidem: xxviii). A prevenção estrutural procura então responder às causas mais profundas da violência, estimulando um processo de paz sustentável a longo prazo e contribuindo para a (re)construção de sociedades particularmente afetadas por conflitos duradouros e violentos.

Nesse sentido, estratégias eficazes de prevenção ficariam dependentes de uma identificação e análise corretas dos conflitos e das suas causas. No caso de conflitos internos, estas causas estão normalmente relacionadas com a cultura e estrutura política do Estado ' défice democrático, abusos dos direitos humanos, apropriação privada pelo Estado ', bem como com a estrutura da comunidade ' diversidade étnica ou religiosa, assimetrias e desigualdades de grupo ou culturas de violência. As tentativas de melhor responder a estas causas complexas foram progressivamente contribuindo para a definição e disseminação de um projeto de democracia liberal, mercado livre e economia globalizados, desenvolvimento e garantias de direitos humanos (Richmond, 2004: 132).2 É possível traçar as raízes teóricas e práticas do projeto de paz liberal nos trabalhos de filósofos como John Locke3 ou Immanuel Kant (Paris, 2004: 41). De acordo Locke (Two Treatises of Government, 1968), por exemplo, apenas um tipo de governo seria compatível com uma paz justa e segura: um regime baseado na lei, regido por regras constitucionais e estabelecido com consentimento popular. A criação de um governo que não correspondesse a estas características e estes imperativos e que, pelo contrário, violasse as liberdades e os direitos fundamentais contribuiria para o retorno ao estado de natureza e à lógica de violência e insegurança a ele associada (ibidem). Na mesma linha, o pensamento de Kant fornece uma representação de um projeto de paz liberal e de como este poderia ser promovido nos Estados modernos (Richmond, 2007: 25). O seu trabalho Projeto de paz perpétua(1975)4 previa as condições para uma união permanente a favor da paz e segurança (Kant, 1989). Estas condições estabeleciam que todos os Estados deveriam ser republicanos (democráticos), que a ordem internacional deveria assentar numa federação de Estados e que aos não cidadãos deveria aplicar-se o princípio da ‘hospitalidade universal'. em 1965, ao afirmar que a paz mundial deveria assentar nas fundações da liberdade política e que a precondição para a paz internacional era a estabilidade política entre Estados, garantindo os direitos das pessoas e a autodeterminação democrática, Woodrow Wilson tornou-se um dos primeiros chefes de Estado a articular o que hoje se conhece por tese de paz liberal. Esta tese foi progressivamente formulada, reformulada e abraçada por vários outros teóricos políticos, políticos e analistas internacionais. Neste sentido associava-se a paz à autodeterminação e democracia liberal (Richmond, 2007: 39) e estabeleciam-se claramente as bases para o entendimento e a implementação das ideias de paz liberal que hoje, em grande medida, sustentam o modelo contemporâneo desta. Neste contexto, e uma vez que a conceção liberal reconhece que a paz pode não ser uma condição natural, mas sim dependente do cumprimento de um conjunto de precondições políticas, económicas, sociais e culturais, ela tornou-se o core de várias formas de intervenção e envolvimento político, económico e social por parte de atores externos (ibidem: 52).

O conceito de peacebuilding,por exemplo, foi referido pela primeira vez em Uma agenda para a paz, apresentada em 1992 pelo ex-Secretário-Geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali e definido como

[ ] uma ação para identificar e apoiar as estruturas que tenderão a reforçar e consolidar a paz de modo a evitar o retorno ao conflito, reconstruindo as instituições e infraestruturas dos países dilacerados pela guerra civil e atacando as suas causas mais profundas: desespero económico, injustiça social e opressão política.

(1992)

Mais tarde, em 1995, o Suplemento de Uma agenda para a paz clarificava e alargava esta definição a

[ ] esforços alargados para identificar e apoiar as estruturas que contribuirão para a consolidação da paz e para a criação de um sentimento de confiança e bem-estar entre a população. Através de acordos que põem fim a guerras civis, tais esforços incluem o desarmamento das partes beligerantes e a restauração da ordem, a destruição de armas, o repatriamento de refugiados, a monitorização de eleições, a proteção de direitos humanos, a reforma ou o reforço de instituições governamentais e a promoção de processos formais ou informais de participação política. (Boutros-Ghali, 1995)

A preocupação subjacente a estes dois documentos remetia para a necessidade de incluir uma abordagem mais alargada e multidimensional nos esforços de prevenção e/ou gestão de conflitos, a partir da identificação das causas mais profundas dos conflitos violentos e do apoio a estruturas que pudessem contribuir para a consolidação da paz de forma realmente eficaz. Na tradição do projeto de paz liberal, o peacebuilding passa então a referir-se cada vez mais a um abrangente conjunto de intervenções e atividades definidas para facilitar o estabelecimento de uma paz duradoura e prevenir o retorno à violência. Tais intervenções incluem missões de paz, operações de apoio à paz, desarmamento, desmobilização, reabilitação e reintegração. Mas para além da garantia de uma dimensão de paz mais negativa (aproveitando a proposta de Galtung) deveriam ainda incluir uma componente de paz positiva, o que significa a ausência de formas de violência física mas também estrutural, procurando responder às causas e efeitos mais profundos do conflito, a partir do restabelecimento das relações destruídas, da promoção da reconciliação, da criação de instituições e da reforma política, bem como da facilitação de dinâmicas de transformação económica (Karbo, 2008: 115).

Apesar de este conceito ter sido expandido, desde então, para cobrir objetivos mais alargados com vista ao alívio dos efeitos mais negativos nas populações e à promoção de um desenvolvimento mais sustentável e a longo prazo,5 a prática e o envolvimento da ONU neste contexto acabaram por consolidar o que foi progressivamente ficando conhecido como o modelo estandardizado de reconstrução da paz (Ramsbotham et al., 1999).6 Neste processo, o trabalho crucial de desmobilização de ex-combatentes, reconstrução do tecido social, estabelecimento de instituições políticas e criação de formas de desenvolvimento económico e social capazes de gerir e, em última instância, prevenir conflitos violentos, tornaram-se o foco de trabalho de uma grande variedade de atores nacionais e internacionais de diferentes áreas (Krause e Jütersonke, 2005: 447). Roland Paris vai mais além e divide os mecanismos usados para promover estes modelos políticos e económicos liberais em quatro grandes áreas de ação: definição do conteúdo dos acordos de paz (de modo a incluir os objetivos de liberalização política);7 garantia de aconselhamento especializado aos atores locais durante a implementação dos acordos (guiando um processo de liberalização política e económica); imposição de condicionalidade económica e política nas reformas em troca de ajuda económica; apoio ao desempenho de funções de gestão e governação por parte de atores externos (Paris, 2002: 642-645). Neste contexto, as ideias de peacebuilding passaram a estar associadas a todo o tipo de iniciativas ao nível do ciclo do conflito, tornando-se um termo suficientemente abrangente para justificar o envolvimento de atores ' académicos e decisores políticos ', que tradicionalmente nada tinham a ver com o campo da prevenção e/ou gestão de conflitos (John, 2005: 3).

De acordo com Richmond, este tipo de ‘consenso' em torno dos objetivos de peacebuilding representa novos discursos e práticas tanto relativamente aos meios de intervenção como aos seus fins, incluindo mediação, missões de paz, prevenção e transformação de conflitos, bem como estratégias de desenvolvimento num processo (supostamente) multidimensional com vista à anulação do potencial de conflito (Richmond, 2004: 131). Pressupõe-se, aqui, a existência de uma base normativa e cultural universalmente partilhada em torno da ideia de paz liberal e que as práticas sejam apoiadas por todos os atores envolvidos (Richmond, 2007: 112). Ao mesmo tempo, este ‘consenso' parece indicar que, se o objetivo é prevenir o retorno ao conflito, certas formas de governo devem estar devidamente implementadas através de múltiplas intervenções (ibidem: 154), incluindo as de natureza mais humanitária ou militar. Tal ‘consenso', contudo, é por nós visto como sendo altamente contestado e questionado, além de baseado numa interpretação e avaliação limitada tanto das causas dos conflitos, como das medidas necessárias para os prevenir e/ou resolver. Prova destas limitações e natureza contestada é o facto de, apesar do sucesso relativo de muitas missões de peacebuilding das Nações Unidas, terem existido importantes e repetidos falhanços relacionados com o modelo em si (dos pressupostos e prioridades por ele previstos) e com a sua implementação, nomeadamente no que diz respeito à capacidade desenvolvida pelos atores internacionais para compreender os conflitos e apoiar o desenvolvimento de estruturas políticas, económicas e sociais sustentáveis em muitos países afetados por dinâmicas de conflito violento. Apesar de estes esforços de transformação de países destruídos pelos conflitos em democracias de mercado liberais terem vindo a ser desenvolvidos e implementados em vários cenários,8 na maior parte dos casos não foram bem-sucedidos. As perspetivas de paz e estabilidade, na grande maioria, tornaram-se, assim, ilusórias e vazias. Além disso, e embora pelo menos teoricamente, as Nações Unidas reconheçam o carácter único e específico de cada situação de conflito e pós-conflito, negando o tipo de one size fits all do modelo de peacebuilding, a prática tende a mostrar a imposição de um modelo neoliberal específico, traduzido nas exigências de cumprimento e respeito por um conjunto de direitos e princípios fundamentais do Estado democrático. Mais importante ' e, a nosso ver, preocupante ', é o facto de que tal é feito à custa de um desinvestimento deliberado nos direitos de natureza económica e social e de um ignorar das causas mais complexas e estruturais dos conflitos.

De facto, uma análise mais cuidada da maior parte dos processos de gestão de conflitos e peacebuilding em que o modelo tem sido, ou está a ser, aplicado revela que existe uma tendência preocupante por parte dos principais atores envolvidos, incluindo as Nações Unidas, em adotar uma abordagem estadocêntrica e impositiva em matéria de reconstrução pós-conflito (Ramsbotham et al., 1999: 198). Ao mesmo tempo, estas respostas e estratégias são frequentemente baseadas em pressupostos limitados e erróneos. Por exemplo, é assumido de forma praticamente natural que as ideias de paz liberal, obedecendo aos standards das instituições e dos Estados liberais, são garantidas de forma multilateral e democrática, incorporando mecanismos de prevenção e gestão de conflitos, implementação de direitos humanos e governação democrática (Richmond, 2007: 54). Em algumas circunstâncias, contudo, os esforços de prevenção e peacebuilding assentam na ideia de que uma abordagem sofisticada, ainda que algo utópica, de ‘engenharia social' poderia substituir, ou mesmo acelerar, um processo de for mação do Estado que ocorre de forma mais orgânica e natural (Krause e Jütersonke, 2005: 448). O que esta visão claramente sugere é que o que está a ser concebido no quadro deste suposto ‘consenso' em torno dos objetivos de peacebuildinge do modelo de paz liberal associado é, na verdade, um discurso hegemónico sobre paz que tem sido redefinido de modo a gerar um maior acordo em torno das ideias de democratização, mercado liberal, direitos humanos e desenvolvimento que irá, alegadamente, contribuir para a paz e estabilidade em sociedades pós-conflito (Richmond, 2007: 80). Citando Oliver Richmond sobre este assunto, a definição de paz liberal neste contexto

[ ] inscreve-se no consenso metodológico orientado para objetivos de peacebuilding em que coexistem Estados, atores internacionais, regionais e locais numa sociedade internacional ocidentalizada na qual os Estados são democráticos, os direitos humanos são observados e respeitados e a norma é o multilateralismo, exceto em circunstâncias extremas. Esta visão de paz liberal fornece um modelo para o que está a ser promovido em zonas de conflito através do peacebuilding. (2007: 121)

Apesar de intervenções deste tipo em situações de pós-conflito violento virem a ser encaradas pelos atores ocidentais como oportunidades fundamentais para a (re)construção dos Estados e, em especial, a sua reforma, Robin Luckman afirma que

O problema que permanece é o facto de a reforma tender a ser concebida nos termos ditados pelos principais doadores e agências internacionais, priorizando a fórmula usual de democracia liberal, boa governação e liberalização económica. Enquanto elementos desta fórmula são desejáveis em si mesmos, o pacote completo, e a maneira como é promovido ou imposto a partir de fora, tende a inibir uma reflexão profunda sobre a natureza e os objetivos de autoridade política nos Estados em situação de pós-conflito. (Luckham apud Karbo, 2008: 115)

A prevenção de conflitos e a (re)construção da paz tornam-se, assim, processos largamente dirigidos a partir de fora que resultam, frequentemente, em experimentações sociais controladas por atores externos e normalmente desligados das sociedades que procuram (re)construir. Outros autores, como Roland Paris (2004) ou Mark Duffield (2001), levaram este argumento mais além e afirmam mesmo que os objetivos de peacebuilding no quadro deste modelo liberal servem agendas externas que visam essencialmente transplantar modelos ocidentais de organização social, económica e política para contextos de países que experienciaram conflitos violentos com vista a controlar a violência nas periferias do sistema internacional (Zeeuw, 2001: 27). De acordo com esta visão, a maior parte dos esforços para prevenir e/ou gerir conflitos foram cooptados por um regime de segurança global que recorre aos conceitos de resolução de conflitos, reconstrução social e desenvolvimento simplesmente para transformar as sociedades visadas à imagem dos agentes das intervenções sem levar em devida consideração o seu verdadeiro impacto e eficácia em termos de fomento e promoção de uma paz sustentável. O objetivo principal é, assim, pacificar a periferia desordenada e manter o status quo e a estabilidade no centro desenvolvido do sistema internacional (Ramsbotham et al., 2005: 120). De facto, e mesmo que não queiramos levar o argumento a este extremo, deve ser reconhecido que os modelos tradicionais de envolvimento externos em contextos desta natureza tendem a depender grandemente dos interesses específicos de atores também externos, sejam eles Estados ou organizações internacionais ou regionais (que, por sua vez, respondem aos interesses dos Estados que as compõem). Deste modo, quando experimentado e implementado em países que recuperam de conflitos violentos, o modelo de paz liberal tende a deparar-se com importantes desafios e obstáculos (Labonte, 2003: 261). Uma análise rápida das intervenções passadas mostra-nos que os repetidos falhanços em reconhecer a complexidade das atividades e dos objetivos de peacebuilding pode ter resultados desastrosos do ponto de vista político, económico e até humano, se pensarmos nas probabilidades de retorno ao conflito violento ou de emergência de outras formas de violência. Uma vez que a maior parte dos programas e formas de envolvimento é temporária e baseada em ajustamentos técnicos através de políticas de desarmamento e de organização de eleições, a assistência externa a países no pós-conflito tem sido frequentemente traduzida numa abordagem de resolução rápida dos problemas (Zeeuw, 2001: 26). Os programas de reconstrução assentam, na sua maioria, na construção de instituições democráticas e na recuperação económica através de estratégias orientadas para o mercado livre, assumindo frequentemente que tais processos culminam com o estabelecimento de novos governos e pacotes de reformas económicas a eles associados, sem prestar necessariamente atenção à forma como estes mesmos objetivos e tarefas poderão ser prejudicadas pela inexistência de estruturas económicas e sociais capazes de os suportar. Esta situação mostra claramente que não é dada atenção suficiente aos contextos políticos, económicos, sociais e até mesmo culturais que podem, de facto, pôr em causa a sustentabilidade destas estratégias de (re)construção da paz (Jeong, 2005: 2). Neste contexto, e como refere Luc Reychler, não tem sido possível (ou desejável) retirar lições positivas e construtivas dos esforços de paz levados a cabo até ao momento em grande medida devido à falta de interesses partilhados e da existência de visões diferenciadas da paz e dos objetivos a alcançar com o modelo de paz a implementar (Reychler, 2007: 153). Reychler sintetiza esta ideia da seguinte maneira

Em primeiro lugar, existe o problema de compromisso com a prevenção de conflitos e com os objetivos de peacebuilding. A propensão para intervir está relacionada com a perceção dos interesses envolvidos.

Quando interesses vitais estão em causa, os doadores tendem a encetar maiores esforços de intervenção do que no caso de considerarem que os interesses são marginais. Em segundo lugar, quando não existe consenso sobre o tipo de paz que se pretende alcançar, torna-se difícil construí-la. (2007: 153)

Em suma, e apesar de a reconstrução pós-conflito violento ser hoje uma atividade relevante e importante para muitos países, é geralmente definida de forma muito limitada, numa perspetiva de curto prazo e demasiado fragmentada e sem enquadramento macroestratégico ou conceptual. Além disso, também se baseia normalmente num conhecimento insuficiente e inadequado sobre a história, prioridades e dinâmicas dos países intervencionados. Tendo isto em consideração, e apesar da crença num certo ‘consenso', este é verdadeiramente aparente e mascara dinâmicas mais obscuras de hegemonia no sistema internacional (Duffield, 2001). Tal sugere que os processos usados para construir a paz servem hoje os interesses de atores dominantes, mais do que constituem as bases para uma paz assente num real consenso que envolva, desde logo, os atores visados pelas intervenções (Richmond, 2007: 123). Neste sentido, o que tem resultado destas práticas é um enfraquecimento dos objetivos associados ao modelo de peacebuilding, que levam à necessidade de prestar maior atenção aos conceitos e mecanismos usados para prevenir conflitos e construir a paz (Richmond, 2004: 132). Deste modo, parece-nos que é de fundamental importância que, em qualquer contexto de conflito ou pós-conflito, os atores externos ' bilaterais ou multilaterais ' reconheçam que as estratégias de intervenção bem definidas e implementadas de forma eficaz têm o potencial de gerar um conjunto de benefícios que serão bem mais sustentáveis (Labonte, 2003: 271). Este reconhecimento é particularmente importante na medida em que ajuda a perceber se o envolvimento e a intervenção internacional estão efetivamente comprometidos ou não com a criação de estruturas sustentáveis essenciais para alcançar uma paz igualmente sustentável. Por outras palavras, se encararmos a paz apenas como a simples ausência de conflito direto violento, então dificilmente teremos intervenções bem-sucedidas a médio ou longo prazo.

Conclusões O final da Guerra Fria parece ter oferecido a oportunidade para que os atores internacionais revisitassem as conceções dominantes de paz e desenvolvimento ao nível internacional e formulassem instrumentos e políticas supostamente mais coerentes para responder a conflitos violentos. Ao mesmo tempo, a fusão das agendas de segurança e desenvolvimento com o conceito (e subsequente modelo) de peacebuilding parece ter também ajudado a lidar com um conjunto de questões que passam a ser vistos como ameaças à paz e segurança internacionais (Tschirgi, 2003: 1). O palco internacional foi assim moldado para dar prioridade a uma abordagem holística face aos novos problemas e desafios identificados. Em teoria, mecanismos de prevenção de conflitos e peacebuildingdeveriam ser sustentados em pilares distintos, ainda que interligados: o pilar da segurança, relacionada com todos os aspetos da segurança pública e visando criar um ambiente seguro; o pilar da justiça e reconciliação, através de mecanismos formais e informais e de um sistema legal imparcial e consolidado; o pilar do bem-estar socioeconómico, para responder às necessidades fundamentais nesta área; o pilar da governação e da participação com vista à criação de instituições políticas e administrativas legítimas e eficazes de processos participativos e inclusivos (Hamre e Sullivan, 2002: 91-92). Contudo, o tempo e uma análise mais rigorosa da realidade têm vindo a mostrar que as missões de peacebuilding,por muito importantes que sejam, não são um mero exercício de gestão de conflito. São, acima de tudo, o reflexo de um modelo particular de governação interna que é levada do centro para a periferia do sistema internacional e que se baseia nos princípios de democracia liberal e de mercado (Paris, 2002: 638).

Apesar de promovido como neutro, objetivo e benevolente, o modelo de paz liberal é, ao mesmo tempo, acusado de promover e estabelecer práticas insidiosas de intervenção externa (Richmond, 2007: 73), obedecendo aos princípios e valores advogados pelos atores e instituições ocidentais como sendo universalmente aplicáveis. Os valores e instituições das democracias liberais e estabelecidas são, pois, transplantados para o contexto de países periféricos e particularmente fragilizados por conflitos violentos (Paris, 2002: 638), num esforço de reconstrução dessa mesma periferia à imagem do centro. Estes esforços são, no seu essencial, baseados não apenas numa ideia do que poderá ou não funcionar num determinado contexto, mas mais importante do que isso, no que será o produto final deste processo ' um Estado estável, democrático, liberal e capitalista (Krause e Jütersonke, 2005: 451). Contudo, e estando assentes na condicionalidade, os objetivos de paz liberal podem igualmente gerar contradições internas complexas e problemáticas, uma vez que a criação de um Estado soberano de acordo com tais princípios e valores nem sempre é compatível com os objetivos de liberalização económica e política. Em último caso, e como sublinhado por Duffield, tal pode significar que a paz liberal promovida pode resultar em dinâmicas de exclusão e/ou seletividade estimuladas por atores externos (Richmond, 2007: 83).

Como Jeong relembra também, as experiências dos anos 90 em lugares como a Somália, Bósnia ou Libéria, por exemplo, mostraram que as ambições de paz baseadas apenas em princípios de justiça podem ser ilusórias, se consideradas na ausência de uma perspetiva de transformação estrutural e de longo prazo (Jeong, 2005: xi). Neste contexto, e para que formas mais estruturais de peacebuilding possam ocorrer e ser desenvolvidas, o enfoque deve residir no combate às condições sistémicas e estruturais que fomentam o conflito violento.

A paz sustentável deve, portanto, ser construída a partir do reforço das estruturas sociais, económicas e políticas que respondam às necessidades das pessoas. Deste modo, as causas mais profundas da pobreza, corrupção, discriminação e distribuição desigual de recursos devem obrigatoriamente ser reconhecidas e combatidas (Karbo, 2008: 122). Neste sentido, a questão não é tanto se a comunidade internacional deve ou não envolver-se no prevenção de conflitos ou na reconstrução da paz em contextos de pós-conflito, mas antes como é que esse envolvimento deve ser levado a cabo, em que circunstâncias e em que condições. A nosso ver, o modelo de paz liberal que tem vindo a ser promovido e implementado tem correspondido a uma estratégia que promove uma agenda desequilibrada de direitos humanos e negligencia as causas mais complexas e profundas que sustentam e reproduzem o próprio conflito violento.

Se as estratégias de paz dominantes não percebem as causas mais profundas e menos visíveis da violência, dificilmente poderão ser consideradas eficazes ou sustentáveis.

Em suma, é fundamental reconhecer que os diferentes contextos de pós-conflito requerem prioridades e estratégias ajustadas às suas características concretas, evitando-se assim modelos universais e limitados naquele que será o seu impacto e contributo para a promoção de dinâmicas de paz sustentáveis. Na linha da proposta teórica de Edward Azar (1985; 1990), as estratégias de peacebuildingdevem implicar processos mais profundos do que a simples criação de Estados politicamente estabilizados e organizados. Devem, acima de tudo, estimular processos de transformação política, económica e social assente nas noções de justiça, inclusão e bem-estar socioeconómico (Krause e Jütersonke, 2005). A estabilidade económica e política dependem, assim e em primeiro lugar, da identificação do papel que as desigualdades mais profundas desempenham no conflito e, em segundo lugar, de respostas eficazes e atempadas a essas mesmas desigualdades. O maior desafio está, acima de tudo, em conseguir passar da teoria à prática.


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