Perdidos no Mediterrâneo: Teorias, discursos, fronteiras e políticas
migratórias no Mare Nostrum
O olhar sobre o /Mediterrâneo/
Em Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism (O pós-modernismo,
ou a lógica cultural do capitalismo tardio), Fredric Jameson sublinha o modo
como, na análise dos conteúdos semânticos, a linguística se serve de um recurso
curioso que consiste em assinalar uma dada palavra como sendo palavra' ou
ideia', colocando-a entre barras oblíquas ou entre aspas, conforme o caso
(Jameson, 1991: 260). Este recurso, que Jameson lamenta não existir no âmbito
da análise ideológica, pode revelar-se de grande utilidade nesta nossa viagem '
ainda que breve e concisa ' pelo Mediterrâneo. Torna-se, assim, necessário
distinguir aquilo que a palavra /Mediterrâneo/ designa ' com as respetivas
raízes etimológicas e as diferentes flexões ao longo dos séculos ' do
significado do vocábulo Mediterrâneo tal como é entendido no contexto do
presente debate político-cultural. Distinguir estes dois níveis de análise, ou
seja, o nível simbólico e o nível real, poderá ser útil para evitar que a
análise se afunde em noções vagas e difusas, em que o Mediterrâneo enquanto
imagem, visão ou metafísica se sobrepõe a tudo o mais, por vezes a ponto de
fazer com que o /Mediterrâneo/ concreto, entendido como espaço físico e
temporal, acabe por se desvanecer.
Enquanto método de investigação, uma tal divisão do processo analítico poderia,
à partida, parecer fácil, capaz de esclarecer todas as contradições teóricas e
de resolver, como que por magia, muitas da dúvidas que nos assaltam. No
entanto, basta olhar para a bibliografia vasta e diversa recentemente publicada
sobre o Mediterrâneo para perceber que essa via será tudo menos simples. O
Mediterrâneo político-cultural amplamente referido nos textos dos
mediterranistas inspira-se e afirma radicar a sua força, validade e
justificação exatamente no /Mediterrâneo/ físico. Um dos pontos cardeais da
bússola interpretativa dos principais participantes do debate em causa
consiste, justamente, na análise das caraterísticas físicas, isto é, da própria
natureza do /Mediterrâneo/ concebido como uma realidade ontológica primária da
qual (quase) tudo depende, incluindo a humanidade. Com efeito, a antropologia
do Mediterrâneo é frequentemente vista como consequência direta e necessária do
/Mediterrâneo/ físico.
Fernand Braudel foi dos primeiros estudiosos a apontar essa ligação especial. O
Mediterrâneo de Braudel, que o autor começa por descrever como uma paisagem
multifacetada e irregular: Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma mas inúmeras
paisagens (1999: 7), vai crescendo e ganhando contornos cada vez mais ricos
até assumir a dimensão de um sistema, um sistema em que tudo, natureza e
humanidade, se concilia, proporcionando uma boa oportunidade de abordar a
história de uma maneira diferente e original.
Para Braudel, as caraterísticas do meio físico constituem o pressuposto
essencial e (quase) suficiente para a construção de certos traços de uma
determinada formação histórico-social. Posteriormente, outros estudiosos
importantes adotaram esta linha de pensamento. Para estes, o Mediterrâneo
também surge marcado por essa particular convergência entre natureza e
espírito, que advém da tradição filosófica mediterrânica. Essa ligação parece
ter dado origem a uma antropologia diferente, oposta à que foi gerada pela
modernidade, segundo a qual ' supostamente ' o domínio exercido sobre a
natureza por parte de um sujeito humano privilegiado só é concebível no que ao
sentido da visão e ao saber diz respeito. De acordo com estas teorias, o
homem gerado pela modernidade, inteiramente entregue à racionalidade e ao
progresso científico e privado dos demais sentidos do corpo, vê-se, assim,
obrigado a criar uma perspetiva abstrata, mecanicista e quantitativa da vida:
Graças à tradição das filosofias do Mediterrâneo ' que não termina
com o ponto de viragem gerado pela modernidade ', pudemos aprender
que existe uma dimensão espiritual do cosmos; que esta dimensão se
expressa na bìos e, por fim, que a prodigiosa criatividade da vida
forja e enrijece as formas da consciência. (Alcaro, 2006: 203)
A natureza, a localização geográfica, a configuração geofísica e as condições
climáticas do Mediterrâneo representam, portanto, a condição sine qua non, a
premissa necessária, o impulso de que se alimenta (Cassano, 2007: 79) o
discurso político-cultural sobre o Mediterrâneo:
Três continentes viveram, desde sempre, voltados de frente para o
Mediterrâneo, e essa sua convergência num único espaço acabou por
diluir as diferenças, dando lugar a uma hibridização do diferente,
esse grande antídoto contra os fundamentalismos e as purgas étnicas.
A unidade física do Mediterrâneo não é uma invenção turística, mas
antes um cais ao abrigo das divisões, o cais físico e concreto de uma
grande casa comum, raiz feita de pedra e mar, mais forte do que as
diferenças das margens, do que a deriva continental, do que as
religiões e os orgulhos étnicos de onde, sem cessar, se ergue a
tentação fundamentalista. (Cassano, 2000: 19)
A unidade física do /Mediterrâneo/ torna-se, assim, uma unidade ideal. A
circunstância de muita gente viver voltada para um único espaço dilui as
diferenças e obriga, quase que espontaneamente, à hibridização, levando ao
reconhecimento mútuo e à aceitação das diferenças.
O atual debate científico em torno do Mediterrâneo centra-se precisamente
nesta ligação peculiar entre o ser humano e a natureza, que ali teria ocorrido
ao longo dos séculos. Acredita-se, nessa conformidade, que essa relação
estreita e imediata teria engendrado um desenvolvimento social e histórico
diferente, original e alicerçado na razoabilidade, por oposição às
formações sociais e históricas do Norte, as quais, fatalmente influenciadas
pelo clima severo e pela geografia, se teriam sobretudo alicerçado sobre uma
racionalidade (auto)destrutiva (Latouche, 1999).1
O Mediterrâneo tornou-se, deste modo, terreno fértil onde se produzem teorias
ético-políticas novas:
O Mediterrâneo é um espaço esquivo, com contornos nem sempre fáceis
de discernir. O Mediterrâneo é mais do que um simples mar entre
massas de terra, um continente' marinho com traçado fácil de
reconhecer no mapa, iludindo todas as tentativas de reducionismo
geográfico. Apela ao imaginário, formando um mundo constituído por
múltiplas narrativas, que despertam e ao mesmo tempo instilam em nós
uma certa inquietação política. Mistura geocultural cujas coordenadas
variam segundo o tempo histórico e os ritmos da memória, o mundo
mediterrânico desafia as regras aceites e os discursos arreigados que
nele não veem mais do que uma fronteira da Europa ou mesmo uma
espécie de arrabalde nebuloso. (Bechev e Nicolaidis, 2010: xi)
A presença e coexistência de numerosas culturas são caraterísticas da região
do Mediterrâneo, tendo-se transformado num leitmotiv do debate em curso. Dito
de outro modo, o Mediterrâneo é, assim, retratado como um verdadeiro
multiverso de civilizações, culturas, línguas, universos simbólicos e
expressivos, passível de ser contraposto como alternativa político-cultural às
derivas oceânicas' da globalização (Cassano e Zolo, 2007: 17).
Estas representações do Mediterrâneo (aqui expressas de forma necessariamente
sintética e, por conseguinte, com todos os riscos inerentes em relação ao que
seria a sua correta reconstituição) deparam com dificuldades lógicas evidentes
quando se considera que o conceito de natureza em que radicam continua
fortemente alicerçado apenas na natureza primeva, ou seja, numa natureza
naturalista, extra-humana e extra-histórica, que o mesmo é dizer, no reino do
puro acaso, de que estão ausentes a consciência e a intencionalidade. De facto,
não há uma preocupação com aquilo que, numa perspetiva historicista-dialética,
ou hegeliano-marxista, é a natureza enquanto segunda natureza, ou seja,
todo o conjunto de automatismos sociais ' como o mercado e a acumulação de
capital ' que, na época contemporânea, constitui algo que antecede, molda e
influencia o agir social consciente dos indivíduos ao mesmo tempo que escapa ao
seu controlo.
Há que dizer também que as premissas metodológicas e epistemológicas dessas
singulares representações do Mediterrâneo se revelam precárias quando se
considera o conceito de geografia ou de espaço a que se referem. O espaço
Mediterrâneo é frequentemente desligado das dinâmicas sociais e históricas, ou
seja, não se dá a ênfase necessária aos vínculos materiais existentes entre a
geografia e os processos político-económicos do Mediterrâneo. Com efeito, não é
dada a devida atenção ao facto de não se poder atribuir ao tempo nem ao espaço
significados objetivos independentemente dos processos materiais, e de só
através do estudo destes ser possível escorar devidamente as nossas conceções a
respeito daqueles (Harvey, 1989: 204). Assim, importa observar e analisar o /
Mediterrâneo/ com base nessa conceção materialista das categorias cognitivas,
segundo a qual as conceções objetivas de tempo e espaço resultam,
necessariamente, de práticas e processos materiais que servem para reproduzir a
vida social (ibidem).
A conexão original' estabelecida entre humanidade e natureza mediterrânica,
entre bìos e espírito, e portanto entre o Mediterrâneo simbólico e o /
Mediterrâneo/ físico, evidencia fraturas diversas e significativas logo que o
olhar sobre o /Mediterrâneo/ adota a necessária perspetiva histórico-social.
Rapidamente esse Mediterrâneo ligeiro e fluido acaba por se revelar uma mera
excrescência ideológica, uma representação supérflua ou decorativa do /
Mediterrâneo/ concreto.
O policiamento das fronteiras do Mediterrâneo
Na verdade, ao invés de ser um espaço de encontro das diferenças, o
Mediterrâneo transformou-se numa fronteira permanente, móvel e envolvente, que
impede o encontro e divide as pessoas, especialmente os ricos e os pobres, os
que tudo possuem e os que nada têm de seu, os brancos e os de cor, a Europa
e a África. O Mediterrâneo de hoje assemelha-se mais a uma zona militarizada do
que a um lugar feliz ou um laboratório de práticas políticas novas e
inclusivas. Patrulhas militares usando balas reais contra homens desarmados,
mulheres e crianças escalando vedações de arame farpado, comandantes de
embarcações despejando a carga humana no mar quando detetados pela Marinha,
barcos abandonados à morte e deportações em massa em pleno mar alto: não são
cenas da Segunda Guerra Mundial, mas do Mediterrâneo dos nossos dias. Não
obstante as grandes empresas e a economia mundiais estimularem a transferência
ininterrupta de bens e dinheiro a nível planetário, e a elite internacional se
sentir igualmente à vontade em Roma, Lisboa, no Cairo, Marraquexe ou em Tunes,
aqueles que têm a infelicidade de haver nascido no lado errado da bacia, ou
simplesmente de pertencer à parte da humanidade que nada tem, confrontam-se com
enormes obstáculos à liberdade de movimentos.
As gentes do Mediterrâneo ' especialmente as de África ' vivem, no seu
quotidiano, presas numa permanente vivência de fronteira. Presentemente esse é
um espaço povoado por aqueles a quem é negado o acesso à Fortaleza Europa,
aqueles que se defrontam com fronteiras móveis que podem estar em qualquer
lado (Guild, 2003: 103).
Um universo de fronteiras, eis o melhor prisma para ver o Mediterrâneo
contemporâneo em toda a sua complexidade. Como refere Pierre Vilar, é a partir
da fronteira que melhor se pode observar a história do mundo (1985: 23),
porque as fronteiras deixam ver os fenómenos políticos, militares, culturais e
económicos (Pradeau, 1994: 17), ou seja, elas facultam uma informação mais
profunda sobre aquela segunda natureza (hegeliano-marxista) a que temos de
atender para compreender a natureza do Mediterrâneo e da Europa. Assim, é
observando e analisando o que se passa no Mediterrâneo que poderemos explorar
as novas dimensões da desigualdade, da dominação e da exclusão na Europa e na
região mediterrânica.
A criação da Frontex (2004) ' a Agência Europeia de Gestão da Cooperação
Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da UE ' e, mais
recentemente, da Frontex Plus ' a nova operação policial para a região do
Mediterrâneo, promovida por aquela Agência ' diz bem da obsessão da Europa
relativamente ao controlo das fronteiras e da sua incapacidade para encontrar
soluções diferentes para os problemas sociais (Jorry, 2007). A externalização
das fronteiras é resultado desta política. As parcerias e as iniciativas de
cooperação entre os países da UE e países terceiros abrangem um leque
diversificado de domínios que passam pela interdição, pelo controlo de
fronteiras, a readmissão, a dotação de capacidade de proteção, e a própria
negociação da ideia de centros off-shore para tratamento de situações de
trânsito' (Betts, 2006: 2). O que basicamente é pedido aos países não membros
da UE é que, a troco de ajuda financeira, contenham os migrantes em situação
irregular, impedindo a sua entrada no território europeu. Desta forma, o
controlo fronteiriço vai muito para além das fronteiras físicas da Europa. Como
assinala Balibar, as fronteiras já não ficam na fronteira (1998: 217-218);
pelo contrário, elas encontram-se dispersas (Balibar, 1999). Para Balibar, no
entanto, o facto de as fronteiras se encontrarem esbatidas não significa que
tendam a desaparecer. Pelo contrário, elas tendem, isso sim, a tornar-se
ubíquas (Coluccello e Massey, 2007; Paoletti, 2009).
Ao longo das últimas décadas, os acordos sobre a gestão das fronteiras têm
estado no centro das políticas para o Mediterrâneo: Itália e Líbia, Itália e
Tunísia, Itália e Egito, Espanha e Marrocos, França e Argélia, França e
Tunísia, e Grécia e Turquia são apenas alguns dos numerosos exemplos desta
tendência, que acaba por reproduzir, no Mediterrâneo, a divisão Norte-Sul.
A retórica política e pública retrata os migrantes como sendo um perigo para a
saúde, a segurança, a identidade e o bem-estar europeus, uma presença inumana
que vai engrossando junto à fronteira sul da Fortaleza Europa. Assiste-se à
construção política de sentimentos hostis para com os migrantes, numa subtil
estratégia de manipulação social. Por toda a Europa se faz dos migrantes o bode
expiatório do desemprego, numa visão que os encara como uma espécie de agente
poluidor nacional. Daí também as reações primárias perante a insegurança social
e a crise económica, incentivadas pelo preconceito dos meios de comunicação
social e pelo discurso público (Basso, 2010).
Neste cenário, as fronteiras e as zonas raianas vivem num ambiente de
permanente crise e de emergência, de vigilância e controlo. O estado de exceção
é o paradigma dominante de governo em contextos de crise ou emergência. Por
força do estado de exceção, os migrantes deixam de ser considerados sujeitos de
direito, vendo-se assim reduzidos, na expressão de Agamben (2005), à vida nua,
vendo-se permanentemente proscritos:
[a] relação de exceção é uma relação de proscrição. Aquele que foi
proscrito, na verdade, foi não só colocado fora da lei e votado à
indiferença dela, mas efetivamente por ela abandonado, quer dizer,
deixado ao desamparo e às ameaças nesse limiar em que vida e lei, o
fora e o dentro, se tornam indistintos. (Agamben,1998: 27)
De facto, os migrantes que atravessam o Mediterrâneo têm vindo muitas vezes a
ser indiscriminadamente recambiados (quantas vezes para os mesmos sítios onde
antes sofriam os abusos, a prisão e a tortura), ou simplesmente abandonados a
morrer em alto mar,2 e algumas dessas vezes, por paradoxal que pareça, ao mesmo
tempo que, em nome dos direitos humanos, a apenas algumas milhas de distância
forças navais da Europa travavam uma guerra (como sucedeu contra o regime de
Kadhafi) ou efetuavam manobras militares. As palavras proferidas por Tineke
Strik, membro do Conselho da Europa, resumem na perfeição este imenso paradoxo:
Bem podemos falar sobre os direitos humanos e a importância de
cumprir as obrigações internacionais, mas se ao mesmo tempo deixamos
gente morrer ' talvez porque não lhes conheçamos a identidade, ou
porque sejam africanos ', fica a nu a falta de sentido dessas
palavras. (The Guardian, 2012)
Conclusões: será o Mediterrâneo simbólico uma alternativa efetiva?
Finalmente, após esta curta mas esclarecedora viagem pelo /Mediterrâneo/, é
tempo de voltar à questão das contradições entre o Mediterrâneo real e o
Mediterrâneo simbólico. Como já ficou dito atrás, o Mediterrâneo tornou-se
um local em que se produzem novas teorias ético-políticas, e há que enfrentá-
las. Não obstante o facto de o Mediterrâneo se ter praticamente transformado
num cemitério pós-moderno e não obstante a circunstância de o quotidiano dos
seus povos ser efetivamente marcado, ano após ano, por disparidades (entre as
margens Norte e Sul) no que se refere a mortalidade infantil, esperança de
vida, índices de analfabetismo, despesas individuais com saúde, percentagem da
população a viver abaixo do limiar da pobreza, e índices de desemprego, em
certos estudos culturais sobre o Mediterrâneo a região continua a ser
considerada um lugar privilegiado em que as diferenças e as pluralidades
coexistem em paz, o lugar onde diferentes civilizações triunfam sobre o
espaço e o tempo, dando, assim, origem a um multiverso cultural. Muitos
autores olham hoje para o Mediterrâneo como um lugar em que se jogam muitos
jogos no mesmo campo ao mesmo tempo (Cassano, 2007: 95), um laboratório
político-cultural, que não é passível de ser reduzido a universalismos e que,
por isso, estará em condições de desenhar o modelo social, político e
antropológico capaz de salvar a humanidade da intolerância e do
colonialismo.
Esta aversão ao universalismo constitui, na verdade, um dos princípios
basilares do discurso teórico elaborado sobre o Mediterrâneo. As atitudes de
resistência suscitadas em conexão com o Mediterrâneo, recorrentemente
sublinhadas na bibliografia relevante, resumem-se a duas: a comunitarista e a
dialógica. A primeira apoia o seu eixo teórico na essencialização da cultura
e na defesa da cultura local, do folclore, como algo que é heterónomo e
resistente à globalização atlântica e como expressão máxima da autonomia do
sujeito. Quanto à abordagem dialógica, aparentemente oposta à primeira, tem
como palavras-chave a hibridação e a diluição das identidades, que no
entanto só poderão ser concretizadas na condição de se libertar as culturas
das relações de poder, isto é, do dilema entre a aceitação subalterna do outro
e a reação de alergia e intolerância para com ele (ibidem: 93).
Ambas as alternativas merecem alguns comentários. Primeiro que tudo, há que
fazer notar que, se atendermos ao conceito de cultura e de harmonia social
em que ambas assentam, elas encontram-se muito menos afastadas do que
normalmente se presume. Num e noutro caso, a cultura é tomada, antes de mais,
como uma essência preestabelecida ou já constituída, e na perspetiva
dialógica ' que contudo permanece não dialética ' as culturas limitam-se a
dialogar e (quase) só no campo cultural é que e se busca a harmonia.
Ultimamente, o movimento teórico subjacente à perspetiva dialógica, mais
difundida do que a perspetiva comunitarista (que parece tender mais para um
fechamento cultural), conheceu um assinalável desenvolvimento, tendo vindo,
com o tempo, a assumir uma importância crescente no âmbito do debate público.
Mas o sistema baseado no diálogo entre culturas ' quase equivalentes ', ou no
diálogo entre universos simbólicos diferentes, não parece constituir
alternativa real ao universalismo atlântico, uma vez que parece reproduzir,
ainda que em menor escala, condições idênticas àquelas a que se opõe. Com
efeito, no seio das culturas locais ' independentemente de entre si travarem
diálogo ou não ' funciona toda uma estrutura de poder que leva a cabo uma
idêntica dialética de normalização, disciplina e autodisciplina dos indivíduos
por ela abrangidos, levando consequentemente à quase radical exclusão de todos
os demais. Além disso, parece claro que uma visão assente no diálogo
cultural, e nomeadamente na tolerância do outro (um conceito clássico do
liberalismo atlântico, diga-se de passagem) não poderá senão encobrir as
assimetrias e os conflitos latentes, sem para eles achar qualquer tipo de
solução. Alguém afirmou, de facto ' se bem que com referência a uma perspetiva
de análise diversa ', que a tolerância não é concedida sem ceticismo e,
porventura, sem cinismo; ou sem a aceitação de um estado de conflito,
inclusivamente trágico, que é afinal uma intolerância interiorizada (Fortini,
1990: 88).
Assim, o multiversalismo mediterrânico não só não é um modelo alternativo e
de resistência ao processo atlântico/liberal de globalização económico-
cultural, como, pelo contrário, se lhe parece ajustar na perfeição. Na verdade,
se, como afirma Harvey, um determinado regime de acumulação, para existir,
necessita de um mecanismo de reprodução coerente, precisando portanto que a
materialização do regime de acumulação assuma a forma de normas, hábitos,
leis, redes de regulação, etc., que assegurem a unidade do processo, quer
dizer, a devida adequação dos comportamentos individuais ao mecanismo de
reprodução (1989: 122), o multiversalismo mediterrânico (visto como um
sistema que agrupa muitos universos simbólicos autónomos) surge como um
elemento necessário de um tal mecanismo de reprodução. A atual reorganização do
capitalismo, com a transição do fordismo para o pós-fordismo e a
descentralização das empresas, está efetivamente a ser exponenciada não apenas
pela pulverização das unidades produtivas mas também pela fragmentação do
cultural em segmentos isolados, que mal (ou só superficialmente) comunicam
entre si. O modelo económico do capitalismo tardio aproveita, deste modo,
práticas políticas e formas culturais que garantam a manutenção do seu
dinamismo extremo e, simultaneamente, a aquisição de caraterísticas cuja
combinação lhe permita um funcionamento coerente. Por outras palavras, parece
que ' graças à considerável impermeabilidade do esquema concetual em que cada
cultura (não obstante dialogar) supostamente assenta ' as teorias
multiversalistas do Mediterrâneo acima mencionadas conferem sustentação
apenas aos processos mais ínfimos e localizados da infindável acumulação de
capital.
O multiversalismo nega, portanto, radicalmente a estrutura universal da
experiência humana, uma vez que a experiência é sempre considerada como estando
dependente de uma particular visão do mundo, que por sua vez decorre da
cultura de pertença. O facto de o multiversalismo à partida varrer do
horizonte teórico (e prático) a possibilidade de reivindicação uníssona, pela
totalidade dos seres humanos, de um sistema socioeconómico global diferente,
faz com que as questões de caráter coletivo desapareçam. A experiência humana
organiza-se na base de um determinado esquema concetual, e isso torna de facto
impossível a sua tradução para qualquer outro esquema, porquanto os dados
experienciais de um poderão não ter correspondência equivalente no outro.
Assim, com base nesta abordagem teórica não existe mundo, mas tão-somente
múltiplas representações dele, todas elas irredutíveis entre si.
Afigura-se necessário, portanto, determo-nos sobre mais um aspeto das teorias
multiversalistas: a relação entre o indivíduo e a cultura a que pertence e
a relação entre o indivíduo e os vários sujeitos pertencentes às diferentes
culturas. A negação da existência de um horizonte comum (mais ou menos amplo,
mas não inteiramente ausente) põe em causa qualquer hipótese de acordo e
interação entre os indivíduos. Com efeito, a relação entre estes seria sempre
profundamente influenciada pelos sistemas culturais constituídos pela cultura
de origem (temporal e espacialmente imutável) e portanto destituída de
qualquer hipótese real de reconhecimento através de estruturas de
relacionamento individual.
O que é negado, ou não levado em consideração, é a definição de subjetividade
através daquela particular dialética do reconhecer/renegar o outro que não eu.
Com efeito, ela acaba por se ver negligenciada devido à circunstância de o
sujeito
não ser nunca um pressuposto, como reclamam a metafísica do
liberalismo ' através da visão do indivíduo como sujeito original da
liberdade ' ou a metafísica cristã ' através da visão do ser humano
como criatura criada; o sujeito, pelo contrário, é antes um
posicionamento, isto é, o resultado de um devir e, concretamente, o
produto de uma conjugação de estruturas de relações. (Finelli, 2005:
26-27)
O sujeito que decorre das produções teóricas mediterranistas ' não obstante a
terapia do diálogo cultural', que funde as identidades e atenua as expressões
agressivas e grosseiras da cultura de origem' ' continua a ser um sujeito
presumido, incapaz de evitar o esquema de origem concetual, que
necessariamente o informará, e incapaz também, portanto, de estabelecer uma
relação dialética com respeito a outros indivíduos. Deste ponto de vista, o
multiversalismo mediterrânico não representa de todo uma alternativa efetiva
ao tsunami atlântico.
Por último, não pode deixar-se de fazer notar que das teorias mediterranistas
desaparece toda e qualquer referência a classes sociais, se bem que a questão
do diálogo entre culturas não pareça ser suscitada com relação aos sujeitos
das classes dominantes mais altas. Este grupo criou uma classe social
transversal, que não depende da pertença cultural, nacional e religiosa, e
que consegue, de um modo geral, desfrutar dos mesmos padrões e estilos de vida,
dos mesmos níveis de consumo e educação, e dos mesmos lugares de diversão e de
encontro. Trata-se, em suma, de uma classe que vive completamente à parte do
quotidiano vivido pelas pessoas comuns nos seus países.
É precisamente neste ponto que o atual debate sobre o Mediterrâneo revela
estar a uma distância intransponível relativamente à vida real e pertencer ao
mero domínio das superestruturas, enquanto a realidade /Mediterrâneo/ continua
a ser da específica responsabilidade de economistas, políticos, empresários
profissionais e, ça va sans dire, dos militares. O fosso existente entre o /
Mediterrâneo/ concreto e o Mediterrâneo simbólico não nos permite conhecer,
nem, por conseguinte, analisar, a realidade dos Mediterrâneos.