As Guerras de Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas
imaginados
RECENSÕES
Meneses, Maria Paula; Martins, Bruno Sena (orgs.) (2013), As Guerras de
Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas imaginados
Carolina Barros Tavares Peixoto
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Colégio de S. Jerónimo,
Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal
carolinapeixoto@ces.uc.pt
As Guerras de Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas
imaginados. Maria Paula Meneses, Bruno Sena Martins
Meneses, Maria Paula; Martins, Bruno Sena (orgs.) (2013), As Guerras de
Libertação e os sonhos coloniais: Alianças secretas, mapas imaginados. Coimbra:
CES/Almedina, 191 pp.
Como uma prévia das comemorações pelas quatro décadas do 25 de Abril, data que
marcou o início do fim da Guerra Colonial/de Libertação Nacional travada entre
o Exército colonial português e os braços armados dos movimentos que lutavam
pela completa e imediata independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau,
veio a público "um livro pioneiro sobre a história recente de Portugal e
dos países que estiveram sujeitos ao colonialismo português" (p. 9), como
bem define Boaventura de Sousa Santos no prefácio da obra.
Aproveitando o término do período de quarentena de um vasto acervo documental
sobre o Exercício Alcora - "uma aliança nunca publicamente
reconhecida, estabelecida entre a África do Sul, a Rodésia e Portugal"
(p. 16) - outrora classificado de "Muito Secreto" ou
"Top Secret", um grupo formado por historiadores, antropólogos,
sociólogos e militares que são, antes disso, mulheres e homens nascidos em
Portugal, Angola e Moçambique no "tempo colonial", apresenta ao
público os resultados de suas pioneiras investigações exploratórias destas e
outras fontes de informações sobre a última fase da presença colonial
portuguesa em África. As análises críticas produzidas por estes investigadores
e reunidas neste livro contribuem para desvelar o que foi ocultado, tanto pelo
que foi dito como pelo que foi silenciado, na maior parte das narrativas
anteriormente escritas sobre a história contemporânea de Portugal e dos países
da África Austral.
Ao apresentar a temática geral tratada no livro e justificar a contribuição
trazida por cada um dos capítulos, como é de praxe numa obra coletiva, a
introdução "O Exercício Alcora no jogo das Alianças Secretas" (pp.
15-27), pela qual respondem os organizadores Maria Paula Meneses e Bruno Sena
Martins, cumpre a importante função de alertar os leitores de que muito
permanece por dizer não só sobre os contornos da Guerra Colonial e das lutas
nacionalistas, mas também e, principalmente, sobre suas implicações
geoestratégicas no palco africano em contexto da Guerra Fria. E esta talvez
seja uma das contribuições mais relevantes da obra em questão: enfatizar, para
resgatar do esquecimento, o fato de que "o palco africano foi um dos
espaços mais devastados pelos conflitos violentos da última fase da Guerra
Fria" (p. 16).
Verdade seja dita, cada um dos capítulos pode ser perfeitamente lido em
separado sem prejuízos de maior para sua compreensão individual. Entretanto,
explorar o livro como um todo é o que de fato permite ao leitor ter acesso ao
complexo panorama das Guerras de Libertação que se opuseram aos sonhos
coloniais na África Austral. Além disso, a complementaridade existente entre
alguns capítulos é notória. Por exemplo, os dois primeiros capítulos têm em
comum o tema da violência. Ambos contribuem para a desconstrução de narrativas
onde a ditadura portuguesa, bem como a sua política colonial, tem sido
retratadas como 'brandas' por refletirem a ideia de que Portugal
sempre teria sido 'um país de brandos costumes'.
No primeiro capítulo, "Violência, testemunho e sociedade: Incómodos e
silêncios em torno da memória da Ditadura" (pp. 29-39), Miguel Cardina
recorda aos leitores o fato de que a ditadura portuguesa, como qualquer outra,
também se ancorou "na censura, na limitação das liberdades e na
criminalização do político" (p. 32) aplicando uma cuidadosa gestão entre
'violência preventiva' - sustentada na intimidação, na
dissuasão e no medo, e 'violência punitiva', embora os casos de
repressão direta, incluindo prisões e recurso à tortura, incidissem sobre um
número mais escasso de indivíduos. Isto no que dizia respeito ao contexto
metropolitano, que é o abordado pelo autor.
Já o segundo capítulo, "O Olho do Furação? A África Austral no contexto
da Guerra Fria (década de 70)" (pp. 41-58), escrito por Maria Paula
Meneses, enfatiza a violência que atingiu a África Austral na segunda metade do
século xx, ou seja, no contexto da Guerra Fria. De acordo com a autora, trata-
se de "uma história de violência que não é separável dos dois projetos
expansionistas celebremente opostos - o bloco capitalista e o bloco
socialista" (p. 44). Para demonstrar a influência desta disputa global
nos conflitos que tiveram lugar no cone austral de África, Maria Paula Meneses
parte de uma detalhada análise das estruturas económicas e políticas ali
presentes nos finais da década de 1960. Altura em que, na África do Sul não só
a política, mas também a economia, em expansão e crescentemente ligada ao
capital internacional, eram controladas por uma burguesia branca, minoritária.
Na Rodésia a situação era semelhante. Neste contexto, a difusão de ideias
comunistas e nacionalistas na África Austral colocaram em causa o projeto de
dominação branca na região. Projeto que vários defensores do apartheid
consideravam ser um modelo de paz e progresso. Esta perspectiva encontrou forte
respaldo em Portugal e nos EUA, tanto que estes países transformaram a África
do Sul do apartheid num aliado poderoso nos confrontos da Guerra Fria. "E
aqui se pode encontrar uma das justificativas para o avanço do Exercício
Alcora" (pp. 51-52), afirma a autora, uma vez que a solução apostada para
travar o avanço dos movimentos nacionalistas na África Austral, considerados
como um inimigo comum pois reivindicavam a queda dos regimes minoritários, foi
o reforço das alianças económicas e militares entre Portugal, a África do Sul e
a Rodésia, oficializada discretamente através do Exercício Alcora. Reforço
porque, como as várias fontes citadas ao longo deste capítulo demonstram, mesmo
antes da constituição desta aliança secreta, a Rodésia e a África do Sul já
colaboravam com o Exército colonial português em operações contra os movimentos
nacionalistas que tinham lugar nos territórios angolano e moçambicano.
O terceiro capítulo, "Regressos? Os retornados na (des)colonização
portuguesa" (pp. 59-107), de Maria Paula Meneses e Catarina Gomes,
explora as complexidades inerentes à constituição e à dissolução das colónias
de povoamento português em Angola e Moçambique. Ao revisitar a questão da
identidade de retornado e observar os percursos de sujeitos socialmente
inscritos nesta categorização histórica elencando, em paralelo, a situação de
outros migrantes da descolonização que dela foram excluídos, as autoras
demonstram que "a problemática da descolonização portuguesa constitui
ainda hoje um vasto espaço para questionamentos múltiplos de cariz histórico e
sociológico" (pp. 106-107).
No quarto capítulo, "Exercício Alcora: um projeto para a África
Austral" (pp. 109-122), Aniceto Afonso apresenta uma visão panorâmica da
importância da instauração do Exercício Alcora para a manutenção da Guerra
Colonial, bem como do grau de sedimentação desta aliança - apesar da
condição de secretismo que os portugueses sempre fizeram questão de manter, e
de sua repentina dissolução, provocada pelo 25 de Abril. Esta visão geral aguça
a curiosidade do leitor sobre o tema que mais à frente, no sexto capítulo,
"Relações entre Portugal, África do Sul e Rodésia do Sul e o Exercício
Alcora: Elementos fundamentais na estratégia da condução da guerra -
1960-1974" (pp. 143-169), Amélia Neves de Souto explora em profundidade.
Ao analisar um impressionante número de documentos relativos ao Exercício
Alcora, Amélia Souto esmiúça em detalhe o funcionamento desta aliança e as
particularidades da sua aplicação prática no terreno, com especial destaque
para o impacto da intensa participação de forças rodesianas em várias ações
militares, geralmente marcadas por excessos de violência que vitimavam
inclusive a população civil, realizadas em Moçambique.
Embora o quarto e o sexto capítulos apresentem uma maior conexão entre si, o
quinto capítulo, "A africanização na Guerra Colonial e as suas sequelas.
Tropas locais - Os vilões nos ventos da História" (pp. 123-141), da
autoria de Carlos de Matos Gomes, não merece passar despercebido. Depois de
resgatar os antecedentes que explicam em que bases esteve ancorada a estratégia
de 'africanização da guerra', isto é, de recrutamento local de
soldados para o Exército colonial português, que em Angola e Moçambique
chegaram a representar mais da metade do total de efetivos militares
mobilizados, o autor discorre sobre o modo como os novos poderes procedentes
dos movimentos de libertação lidaram com as estruturas coloniais e os seus
agentes, sobretudo os militares, após as independências. Uma leitura atenta
deste capítulo revela a necessidade de lançarmos novas perguntas ao passado com
a intenção de compreender, de fato, as múltiplas facetas da violência que
assolou Angola e Moçambique depois de conquistadas as independências.
O sétimo e último capítulo, "Estilhaços do Exercício Alcora: O epílogo
dos sonhos coloniais" (pp. 171-177), da autoria de Maria Paula Meneses,
Celso Braga Rosa e Bruno Sena Martins, anuncia a infinitude do fim do projeto
colonial sintetizado no Exercício Alcora, mas também do trabalho que deu origem
ao próprio livro. Ao lembrar que os efeitos da aliança entre Portugal, África
do Sul e Rodésia, mantida em segredo até há pouco tempo, se fizeram notar muito
para além da Guerra Colonial portuguesa nos conflitos que marcaram a trajetória
dos países da África Austral da segunda metade dos anos 1970 até ao princípio
deste século, os autores identificam um vasto campo de investigação que ainda
está por explorar. Assim sendo, é de se esperar que a divulgação deste livro
produza efeitos que reverberem muito para além dele.
Uma última qualidade do conjunto da obra aqui apresentada merece ser destacada.
É preciso reconhecer que o livro em questão presta um importante serviço de
utilidade pública, pois representa um contributo ao respeito pelo direito à
justiça histórica, uma vez que desmascara a inverdade fabricada pelas
narrativas estabelecidas que vendiam a imagem de um 'Portugal
orgulhosamente só' em África. A vasta documentação que serve de base para
as análises contidas nesta publicação não deixa espaço à dúvida quanto ao fato
de que, desde meados da década de 1950, Portugal sempre contou com uma rede
internacional de apoio na luta contra a expansão dos movimentos nacionalistas
africanos. Portanto, este discurso que enfatizava o suposto esforço solitário
do Estado colonial-fascista português para manter a nação-império não passava
de uma propaganda ideológica que contradizia a realidade.
Porque, como Boaventura de Sousa Santos chama-nos a atenção no prefácio,
"não se pode compreender o 25 de Abril sem a corrosão física e emocional
que a Guerra Colonial significou para os que foram parte da violência que foi
cometida em África; não se pode compreender a 'Guerra Fria' sem os
'momentos quentes' constituídos pelas guerras patrocinadas no Sul
global em nome da manutenção da presença colonial-capitalista; e não se podem
compreender as 'guerras civis' que continuaram a deflagrar na
África Austral sem referência à aliança colonial e aos interesses das potências
capitalistas globais que, naquela região, haveriam de sobreviver à queda do
Império português" (p. 11), a leitura desta obra recomenda-se.